Preço da da inteligência artificial
O preço oculto da inteligência artificial
No início, sentimos o conforto da ajuda da IA. No fim, o uso repetido atrofia nossa autonomia criativa e nos torna dependentes da ferramenta
Um executivo apresenta um relatório impecável gerado pela IA. O documento impressiona a diretoria, mas o executivo não consegue explicar as conclusões. O resultado está pronto, mas o conhecimento não ficou na empresa.
Este cenário, cada vez mais comum no mundo corporativo, revela um paradoxo: as ferramentas que prometem revolucionar a produtividade podem estar criando um efeito colateral perigoso. Segundo relatório do McKinsey Global Institute de 2023, a IA generativa pode adicionar entre US$ 2,6 e US$ 4,4 trilhões anuais à economia global. Mas pesquisas recentes sugerem que essa revolução tecnológica vem acompanhada de um custo oculto: a diminuição da capacidade de aprendizado e inovação dos profissionais.
No estudo Uso de IA no Trabalho: Efeito da Espada de Dois Gumes, pesquisadores chineses mostraram que, quando a inteligência artificial assume as partes centrais da tarefa, o trabalhador se torna alienado. Os efeitos negativos apurados vão ao encontro das conclusões do MIT, publicadas em 2024 no estudo The Cognitive Cost of Convenience, que investigou como diferentes tecnologias impactam a retenção de conhecimento. O experimento analisou três grupos: um que utilizou IA generativa, outro que usou apenas mecanismos de busca, e um terceiro que escreveu com base no próprio raciocínio. Um dos critérios avaliados pelos pesquisadores foi a aprendizagem.
Os resultados acenderam um alerta: a conveniência da IA vem acompanhada de perigosa redução no engajamento cognitivo. O grupo que usou o ChatGPT não se lembrava do que havia produzido. Já o grupo que escreveu só, sem auxílio da IA e do Google, manteve a lembrança do que havia feito, sinal de aprendizado.
Assim como as redes sociais, as ferramentas de inteligência artificial foram feitas para criar hábito. A interação contínua coloca nossa aprendizagem em risco. No início, sentimos o conforto da ajuda da IA. No fim, o uso repetido atrofia nossa autonomia criativa e nos torna dependentes da ferramenta.

Sem aprendizado real, as equipes se estagnam. Em vez de produzir soluções originais, os times passam a depender de respostas prontas, limitando-se a reproduzir o que já existe. O resultado é uma cultura corporativa cada vez mais reativa, com profissionais engessados e incapazes de gerar diferenciais competitivos.
John Dewey, filósofo do “aprender fazendo”, dizia: “o conhecimento nasce da ação, da experiência, da reorganização da realidade vivida.” O verdadeiro aprendizado acontece quando nos movimentamos em direção ao saber: refletindo, errando, reconstruindo. Ou seja, quando trabalhamos naquilo que fazemos.
Para a física, o conceito de trabalho é exatamente transferir energia para um corpo ou sistema. Quando a parte principal da tarefa é feita pela IA, não há esforço, não há transferência de conhecimento, não há trabalho. O texto pode ter a nossa assinatura, mas de nosso, nada tem. O resultado é só aparência. Não fomos nós que verdadeiramente o criamos.
Neste ponto, destaca-se o IKEA: a empresa sueca que conquistou os EUA não apenas pelo design ou preço, mas pelo valor simbólico do trabalho do cliente. Ao montar o móvel com as próprias mãos, o cliente vive o chamado “efeito IKEA”: quanto mais esforço investimos, mais valor atribuímos. Você monta. Você aprende. Você valoriza.
No mundo corporativo é igual. Conhecimento que não é vivido, questionado e construído não se transforma em produtividade, nem em diferencial competitivo.
Quando deixamos de buscar construir um raciocínio e entregamos à IA, perdemos a oportunidade de aprender fazendo. Isso representa um risco sistêmico: em vez de evoluir com os desafios, trocamos de lugar com a ferramenta e nos tornamos máquinas de copiar e colar – sem autoria, sem valor, sem crescimento.
E o mais preocupante: ao delegarmos nosso processo de pensar a poucos sistemas de IA, abrimos mão da nossa análise crítica da narrativa. No fim, quem controla a ferramenta, controla a versão dos fatos.
A geração atual que cresceu com livros e aulas presenciais, ainda consegue fazer um uso mais crítico da tecnologia. O perigo maior está nas futuras gerações. Um estudo de 2025, do Alan Turing Institute, do Reino Unido, revelou que 76% dos pais e 72% dos
professores temem que crianças se tornem excessivamente confiantes na IA, e deixem de pensar criticamente.
O pensamento coletivo, a vida e o trabalho estão sendo moldados pela Inteligência Artificial. O futuro sucesso ou fracasso da humanidade está sendo escrito agora, pela forma passiva ou ativa com que usamos essa tecnologia.
A IA avança em potência. O ser humano médio, em passividade. Enquanto isso, a sociedade corre por trilhos que nos aproximam dos enredos apocalípticos do cinema, nos quais, em troca de conforto, sem perceber, nos tornamos ferramentas ocas, dóceis – dependentes e controladas pelos donos das big techs.
Luana Ramos Sampaio é jurista, auditora do Tribunal de Contas do Espírito Santo, fez Mestrado em Direito na George Washington University (EUA) e na Universidade Federal do Espírito Santo. Professora, escritora e palestrante.
Liu, X.; Li, Y. Examining the Double-Edged Sword Effect of AI Usage on Work Engagement: The Moderating Role of Core Task Characteristics Substitution. Behav. Sci. 2025, 15, 206. https://doi.org/10.3390/bs15020206
MIT CSAIL (2024). The Cognitive Cost of Convenience. Disponível em: https://arxiv.org/pdf/2506.08872
The Alan Turing Institute (2025). Understanding the Impacts of Generative AI Use on Children. Disponível em: Hashem, Y., Esnaashari, S., Onslow, K., Chakraborty, S., Poletaev, A., Francis, J., Bright, J. (2025). Understanding the Impacts of Generative AI Use on Children: WP1 Surveys. The Alan Turing Institute. Disponível em: https://www.turing.ac.uk/sites/default/files/202506/understanding_the_impacts_of_generative_ai_use_on_children_-_wp1_report.pdf?
FONTE:
https://diplomatique.org.br/o-preco-oculto-da-inteligencia-artificial/