Primeira-dama reborn?
Janja não é primeira-dama reborn
No Brasil, muitos ainda pensam que mulher não pode ter opinião ou influir nas decisões de um presidente
No intervalo de 20 dias, encontrei-me duas vezes com o casal presidencial. As suspeitas de que Janja é perseguida pela ciumeira da esquerda velha e de conservadores, que não veem possibilidade de uma esposa influir nas decisões do marido, se confirmaram.
Muitos não entendem Janja. Me diziam que ela afastou Lula dos amigos, que o fez parar com hábitos antigos, como beber e fumar charutos com alguns jornalistas, das entrevistas.
Lula me contou que parou de fumar porque ficou sem ar numa viagem e que quase não bebe, pois quer viver até 110 anos.
O primeiro encontro com o casal ocorreu em uma visita fora da agenda oficial. Eu estava em Brasília, Lula e Janja souberam, me chamaram, e fui rever o amigo de longa data; nos conhecemos quando ele era líder sindical. Naquela ocasião me dei conta de que ele é personagem das minhas três autobiografias, "Feliz Ano Velho" (1982), "Ainda Estou Aqui" (2015) e "O Novo Agora" (2025). Levei este último autografado.
Entrei no Palácio do Planalto assombrado pelas imagens da invasão de 8 de janeiro de 2023. Via os fantasmas dos golpistas, escutava bombas, sentia a fumaça, o medo dos poucos policiais que resistiam, o feromônio de destruição.
Vi intacto o Di Cavalcanti que fora esfaqueado e as mesas de vidro restauradas, assim como a escultura de Krajcberg e o relógio de mais de 200 anos. Cheguei a passar o dedo nele, buscando ranhuras de um restauro caseiro, daquela cola instantânea sempre na geladeira. Nada.
Entramos no gabinete com meu sobrinho Chico Rubens Paiva e Margareth Menezes, ministra da Cultura. Encontrei Lula feliz, saudável, magro, falante, gozador, afetivo, mais do que antes.
Me abraçava, me pegava, me olhava nos olhos, sorria, perguntava da minha vida. Sua pele estava mais bem cuidada do que a minha. Perguntei seu segredo. O quase octogenário presidente acorda às 5 da manhã e malha por duas horas, disse.
Mandou chamar Janja. Serviu suco de cupuaçu. Reclamou que para dar corda no relógio restaurado é preciso chamar um técnico com luvas e apontou para o hit do seu gabinete, uma caixa lacrada do tamanho de um Kindle, com poeira da Lua. Presente de Xi Jinping.
"Não abri, porque vai saber o que tem lá dentro...", gargalhou. Disse que iria se encontrar com o líder chinês e pediria para ele abrir a caixa na sua frente, para se certificar. Rimos.
Falamos do Corinthians, de Memphis Depay, da dívida impagável do clube, de passarinhos, das taxações de Trump e da missão do Brasil de encontrar com o Brics e a União Europeia uma fórmula mágica para diminuir a influência do dólar nas transações internacionais.
Janja chegou. Dividiram a mesma cadeira, diante de mim. Ele me confidenciou que tem lucidez para se retirar da vida pública, se a saúde física ou mental forem impedimentos. Lamentamos o melancólico fim da carreira de Biden.
Reclamou que o pessoal do PT o obrigou a se mudar para Alto de Pinheiros, em São Paulo.
"Queria me aposentar numa praia", disse. Lula sonha em se aposentar em Salvador. Janja topa, apesar de preferir o Rio de Janeiro.
Enquanto Janja me contava como teve que, após os ataques de 8 janeiro, implorar para o governo não assinar a GLO, Lula despachava com Margareth, cobrando a instalação dos Conselhos de Cultura e outras demandas.
A Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é um caminho provisório de policiamento feito pelas Forças Armadas para o restabelecimento da ordem pública, o que se propunha diante do tumulto golpista em Brasília. Caso autorizada, estaria dada a ordem para os tanques irem às ruas. Seria a institucionalização do golpe militar.
Janja me confidenciou que, depois de estudar ciências sociais na Universidade Federal do Paraná, e MBA em gestão social, foi trabalhar na Itaipu Binacional e admitida no curso de um ano da Escola Superior de Guerra, em que teve contato com as minúcias de uma GLO. Ao não assinar, Lula conseguiu barrar a blitzkrieg, que por pouco não atravessou a porta dos quarteis.
Certa vez, me descreveram Janja como a cuidadora de um velhinho. O que se percebe ali é um casal em plena harmonia, sintonia, saudável, feliz. Um parece adivinhar o que o outro pensa.
Por vezes, um completa a frase do outro. O que se vê ali é cumplicidade, com brilho nos olhos e amor. Quem está ao redor admira ou inveja. Por isso Lula quer viver 110 anos.
Vinte dias depois, 20 de maio, fui com meu filho Joaquim, 11 anos, ao Palácio Capanema, no Rio. A família implorara para ele ir com a camisa do Corinthians, mas não adiantou. Vestiu um impecável terno azul e gravata. Nos colocaram numa saleta da biblioteca. Faríamos uma surpresa.
Lula e Janja chegaram. Lula logo abraçou o menino e elogiou a elegância. Janja, de gozação, fez uma saudação como se ele fosse um príncipe. Contei que o apelido do moleque na escola é Putin.
Lula passou o dia gozando Joaquim, dizendo que ele era mais elegante que o líder russo, e que quando encontrasse o Putin real diria que conheceu seu sósia brasileiro.
Depois de anos fechado, ameaçado de ser demolido, para o terreno ser vendido pelo projeto liberal —que visa diminuir o Estado, se desfazer dos bens da União, se desfazer da memória, da mitologia, da cultura e da história—, o projeto arquitetônico premiado de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Le Corbusier, com paisagismo de Burle Marx, revestido por azulejos de Portinari, foi reinaugurado numa cerimônia plural: a entrega de Ordem ao Mérito Cultural.
Depois de anos massacrados pelo correntão de apagamento do governo anterior, que transformou o Ministério da Cultura na sombra da goiabeira de Jesus, o talento e a inteligência brasileiros recuperavam seu protagonismo.
Foram muitas as pessoas homenageadas na noite: Zezé Motta, Alaíde Costa, Liniker, Mônica Martelli, Alcione. Gilberto Gil recebeu a honra no lugar de sua filha, Preta Gil. Odair José, Tony Tornado, Armandinho, Lilia Schwarcz, Alice Ruiz, Paulo Betti, Bárbara Paz, que veio direto de Cannes para a cerimônia, Walter Salles, Fernanda Torres e eu, Daniel Munduruku, Chico César, Silvio Tendler, entre outros e outras, compusemos o leque da diversidade.
Mas nas manchetes dos jornais aparecia: "Lula concede a Janja principal honraria por mérito cultural do país". Quem concedeu foi o Ministério da Cultura, não ele.
Discursei, contando que a dedicatória do livro que dei para eles tinha uma só palavra:
"Resistam". Pelo visto, o amor entre eles resiste ao mau olhado dos invejosos.
Lula, o presidente dos Correios e eu deveríamos carimbar o selo em homenagem à Eunice Paiva.
Mas Janja e Lula mudaram o protocolo e fizeram Joaquim carimbar, diante da imprensa e dos homenageados.
Lula discursou, Janja lhe dava as folhas, lia antes, checava, deu uma folha errada, ele a corrigiu e sorriu, ela sorriu para mim, como se tivesse feito uma travessura. E eram o "gagá" Lula e a "metida" Janja que organizavam as fotos com os homenageados, diante da confusão do cerimonial e da imprensa. Ele se sentou no chão, fez pose, se levantou sozinho.
A má vontade com a esposa do presidente se tornou uma verruga jornalística. Se ela viaja com o marido, calculam o gasto, como se ela estivesse passeando com o maquiador. É Janja quem se reúne com a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) para debater iniciativas contra a fome e a pobreza.
Se ela fala num almoço privado, questionam se não deveria ter ficado quieta. A conversa foi vazada por um ministro. Isso sim deveria causar perplexidade. Mas o comentário de uma mulher, num jantar a portas fechadas, no país em que vazamento não existe como figura de linguagem, foi o assunto.
Não querem Lula na Rússia, nem na China, buscando redesenhar o comércio mundial. E querem uma primeira-dama reborn, um cabide sem voz, sem ouvido, sem olhos, porque no Brasil mulher não pode ter opinião, nem se meter em conversa dos maridos.
Resistam!
(*) Marcelo Rubens Paiva. Escritor e dramaturgo. Autor, entre outros livros, de "Feliz Ano velho", "Malu de Bicicleta" e "Ainda Estou Aqui"
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