Priorizar a alfabetização no 1º
MEC estuda priorizar a alfabetização no 1º, e não mais até o 2º ano do ensino fundamental
Rascunho da nova Política Nacional de Alfabetização obtido pelo G1 indica que mudanças defendidas pelo secretário de Alfabetização em suas redes sociais serão adotadas oficialmente pelo governo federal, mas algumas contradizem a Base Nacional Comum Curricular.
Nova Política Nacional de Alfabetização pode indicar a "priorização da alfabetização no
primeiro ano do ensino fundamental". — Foto: Colégio Uirapuru/Divulgação
O Ministério da Educação (MEC) estuda "priorizar" a alfabetização das crianças já no primeiro ano do ensino fundamental e não mais ao longo dos dois primeiros anos. A nova idade-alvo foi incluída em um rascunho da nova Política Nacional de Alfabetização ao qual o G1 teve acesso e que, segundo fontes, foi enviado há mais de um mês à Casa Civil.O texto foi elaborado pela Secretaria de Alfabetização (Sealf). O governo federal deve publicar um decreto no "Diário Oficial da União" até a próxima quarta-feira (10), quando se completam os 100 primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro.
A regra atual, que consta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em dezembro de 2017, recomenda que a alfabetização deve ser o foco nos dois primeiros anos do fundamental, ou seja, o aluno já deve ter desenvolvido essas habilidades até o segundo ano desta etapa de ensino.Os decretos dos ministérios são enviados à Casa Civil para a análise final e posterior encaminhamento para publicação no “Diário Oficial da União” (DOU). Após este rito, eles se tornam de fato oficiais.
O G1 procurou o MEC e a Casa Civil para confirmar se o rascunho já havia sido enviado de uma pasta à outra até esta quarta-feira (3), e se havia sofrido modificações desde que deixou o MEC. A Casa Civil informou que “informações a respeito serão divulgadas por meio de release na véspera do evento de 100 dias de governo”. O MEC não enviou resposta até a publicação desta reportagem.
A equipe de reportagem ouviu ainda pessoas envolvidas em etapas do processo de elaboração do texto, que falaram sob condição de anonimato, e pediu que alguns especialistas em educação analisassem o conteúdo da política proposta.Segundo eles, o rascunho tem pontos que merecem elogio, como deixar claro que haverá “integração e cooperação entre os entes federativos [municípios, estados e união]” e respeito à diversidade e valorização das tradições culturais brasileiras, mas peca em não deixar claro como vai implementar outros, como a valorização dos professores.Veja abaixo os principais pontos que constam no documento:
Priorizar a alfabetização no primeiro ano do fundamental é a primeira diretriz do rascunho. Se for oficializada como política, será a segunda vez em dois anos que o Brasil vai reduzir o prazo indicado nacionalmente para ensinar a maior parte das habilidades ligadas à leitura e escrita.Em dezembro de 2017, a BNCC já havia reduzido o entendimento anterior de que a alfabetização deve ser feita com mais calma, entre os 6 e os 8 anos, porque, antes disso, as crianças mais novas ainda não têm as habilidades necessárias para a tarefa.
O rascunho indica que o ensino infantil deve receber orientações para o ensino do alfabeto e outras habilidades “fundamentais para a alfabetização”. Este ponto é bem recebido por especialistas que seguem algumas correntes das ciências cognitivas, mas visto com preocupação por outros, que afirmam que nem todas as crianças de 5 anos, na idade em que estão na pré-escola têm capacidade de desenvolver atividades repetitivas e descontextualizadas.
Nenhum método específico de alfabetização foi explicitamente priorizado no texto, mas ele indica que algumas teorias devem ganhar espaço dentro das orientações do MEC. Elas estão citadas no rascunho como “ciência cognitiva da leitura”, definida como os estudos da aprendizagem e do ensino da leitura e da escrita, com base em evidências das áreas de psicologia, neurociência e linguística cognitiva.
Parte dessas evidências são usadas como argumentos pelos especialistas que defendem os chamados “métodos fônicos”, uma abordagem da alfabetização que, segundo afirmou Renan Sargiani, coordenador-geral de Neurociência Cognitiva e Linguística na entrevista ao MEC, se tratam da “recomendação de que o ensino de leitura e de escrita deve começar por instruções explícitas em uma ordem sequencial lógica das relações entre os grafemas e os fonemas, ou seja, das letras e seus sons”.Segundo ele, a “abordagem fônica sintética” da alfabetização é “reconhecida como a mais eficiente”. (Veja, ao final da reportagem, a explicação sobre os diversos métodos de alfabetização.)
Consultado pelo G1, o professor e filósofo Renato Janine Ribeiro, que foi ministro da Educação entre abril e setembro de 2015, afirmou que a Constituição Federal impede o MEC de impor um método único de ensino às redes estaduais, municipais e às escolas particulares. Segundo ele, o papel da União é fornecer diretrizes, articular especialistas e apoiar financeiramente os sistemas regionais e locais. “Ao mesmo tempo, a União não pode entrar no detalhe, não pode dizer que a metodologia é essa, que vai ser construtivista, fônica. Entrar nesses detalhes é violar a autonomia constitucional dos estados e municípios”, disse ele.
Já Fred Amâncio, vice-presidente do Conselho Nacional de Dirigentes de Educação (Consed), afirmou que os gestores não defendem um ou outro método, mas que são contra “a destruição de métodos”, ou seja, a imposição de apenas uma forma de ensinar. “Existem casos de sucesso e de fracasso com todos os métodos”, resumiu ele.
O primeiro objetivo indicado no rascunho é “erradicar o analfabetismo absoluto" (quem não sabe ler e escrever) e erradicar "o analfabetismo funcional” (dificuldade de compreender e interpretar textos).
Especialistas afirmam que, embora o objetivo seja nobre, ele esbarra em contradições dentro da própria política. Um dos problemas é o fato de que não é o MEC que executa as ações de ensino, mas sim os estados e municípios.Além disso, segundo a pesquisadora e professora Maria Carmen Silveira Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a ideia de “analfabetismo absoluto” já está ultrapassada, pois as pesquisas consideram que em sociedades como a nossa, onde os números e letras estão em toda parte, até mesmo a convivência diária com elas acabam gerando algum entendimento, ainda que mínimo, sobre o tema.
O conceito de “erradicação” também é cada vez menos usado, porque dá a entender que não ser alfabetizado é uma doença. “Há pessoas que não tiveram a oportunidade de estudar num país tão desigual como o nosso e não podem ser vistas como aquém da cidadania”, disse.
O rascunho também cita como público-alvo da política os jovens e adultos que nunca chegaram a ser plenamente alfabetizados, tanto os que estão matriculados no ensino de jovens e adultos (EJA) quanto os que estão “fora do ensino formal”, e estabelece como objetivo erradicar o analfabetismo funcional.Porém, especialistas ressaltam que nenhuma diretriz incluída aborda especificamente o problema dos adultos analfabetos, que exigem uma abordagem de ensino muito diferente. Além disso, segundo o Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) de 2018, três em cada dez brasileiros entre 15 e 64 anos eram considerados analfabetos funcionais.
Presente na BNCC, a palavra “letramento” não aparece no rascunho feito pelo MEC. O termo diz respeito ao ensino das funções sociais da linguagem e da escrita. Essa mudança contempla um dos argumentos que o secretário de Alfabetização do MEC Carlos Nadalim já tornou públicos em suas redes sociais. Em um vídeo publicado em 2018, batizado de “Letramento, o vilão da alfabetização no Brasil”, ele diz que considera o letramento “uma reinvenção construtivista da alfabetização”, que “sobrevaloriza o papel das funções sociais da linguagem”.
Ele argumenta, no vídeo, que os problemas enfrentados pelas turmas de alfabetização hoje indicam que as crianças “precisam de um ensino explícito da decodificação”.
Um termo que não está na BNCC e foi incluído no rascunho é a “literacia”. Apesar de ser considerada por alguns dicionários como sinônimo de “letramento”, a literacia é definida na proposta de decreto como o “conjunto das habilidades de leitura e de escrita que englobam a identificação e o reconhecimento de palavras escritas, o conhecimento da ortografia das palavras e a aplicação aos textos dos processos linguísticos e cognitivos de compreensão, bem como a prática produtiva da leitura e da escrita, que envolve atividades de aquisição, transmissão e produção de conhecimento”.
Na entrevista publicada pelo próprio MEC, Sargiani cita duas modalidades de literacia, a familiar, que, segundo ele, seria o que os pais fazem em casa para estimular o desenvolvimento da linguagem oral dos filhos, e a literacia emergente, que são habilidades desenvolvidas na pré-escola que ajudam no ensino de alfabetização no fundamental.
O rascunho foi elaborado por um grupo de trabalho (GT) da Secretaria de Alfabetização (Sealf), pasta criada em janeiro para dar ênfase à nova política. Segundo o MEC, o GT ouviu entidades de gestores estaduais e municipais. Em fevereiro, a secretaria realizou uma reunião para ouvir considerações de especialistas em diversas abordagens interdisciplinares. Seis deles foram chamados e tiveram cerca de meia hora para expor seus comentários e apresentar estudos a respeito do tema.
O G1 ouviu mais de uma pessoa presente na reunião. Segundo elas, o encontro durou cerca de três horas, nas quais os membros do ministério afirmaram que tinham o objetivo de publicar um decreto com a nova política de alfabetização dentro dos 100 primeiros dias do governo, mas não deram informações sobre o conteúdo do documento nem fizeram perguntas específicas.
O encontro contou com a participação de membros da Sealf e da Secretaria-Executiva, mas foi feito sem a presença do ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez e de representantes da Secretaria de Educação Básica (SEB), responsável pelas políticas de ensino infantil, fundamental e médio, o que inclui as séries envolvidas no processo de ensino da leitura e da escrita.
Fontes ouvidas pela reportagem afirmaram que a elaboração do rascunho também ficou restrita à Sealf e à chefia de gabinete do ministério, e não passou por análise da SEB antes de ser encaminhada à Casa Civil.
Esse não é o primeiro registro da falta de articulação entre a Sealf e as demais áreas do MEC. No mês passado, uma portaria publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) levou ao pedido de demissão da então secretária da SEB, Tania Leme de Almeida. A portaria adiava a aplicação da avaliação de alfabetização, o que não havia sido discutido dentro da SEB. No dia seguinte, o presidente do Inep, Marcus Vinicius Rodrigues foi demitido por, segundo o ministro, “puxar o tapete”. Por sua vez, Rodrigues disse que fez a mudança a pedido de Nadalim. O secretário de Alfabetização, porém, se manteve no cargo.
Segundo especialistas na área consultados pelo G1, os métodos de alfabetização dividem-se em dois grandes grupos:
a) sintéticos: O caminho do processo de aprendizagem começa das menores partes constitutivas da língua para, daí, caminhar para partes maiores. O professor pode optar por apresentar primeiramente as letras do alfabeto (método alfabético), os sons que cada letra representa (método fônico) ou as sílabas formadas (silábico). Só depois partirá para palavras, frases e textos.
b) analíticos: Nesse caso, o caminho é inverso. Os docentes começam com um texto (contos, histórias) ou com uma frase. A partir disso, apresentam as palavras, sílabas, sons e letras. Nesta categoria, entra o método global.Abaixo, veja resumidamente mais informações sobre cada método:
MÉTODO ALFABÉTICO
- Abordagem: Ele centra a atenção do aluno em unidades menores da língua: as letras do alfabeto. O professor propõe que as crianças aprendam os nomes das letras, reconheçam cada uma fora da ordem e soletrem os nomes dos colegas. Depois, incentivam que a turma encontre as vogais e consoantes em palavras ou textos.
- Críticas: O método é apontado como descontextualizado, já que inicia o ensino com letras – que, sozinhas, não têm significado próprio. Especialistas também afirmam que há o incentivo à memorização do alfabeto, em vez de estimular o uso social da língua.
MÉTODO SILÁBICO:
- Abordagem: Primeiramente, são ensinadas as famílias silábicas (ba, be, bi, bo, bu, por exemplo). Depois, as palavras. O aluno consegue, portanto, formar palavras e frases simples no início: “O bebê babou”. Depois, com mais sílabas apresentadas, as sentenças ficam mais complexas.
- Críticas: O fato de apenas poder formar frases com as sílabas que já foram aprendidas pode tornar o processo de alfabetização mecânico e descontextualizado.
MÉTODO FÔNICO
- Abordagem: Ele parte do ensino dos sons das letras. “O princípio do método é que uma das aprendizagens que a criança precisa ter para se alfabetizar é entender a escrita como um código”, afirma Alessandra Seabra, professora da pós graduação de distúrbios de desenvolvimento na Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP).
Os sons das letras são apresentados, por exemplo, junto a outros elementos. Em uma aula sobre “m”, o professor mostra imagens do “mmmacaco”, do “mmmartelo”, “do mmmenino”. “São desenvolvidos trabalhos de percepção de fonema”, afirma Seabra.Dessa forma, o aluno aprende que aquele som “mmm” é representado por uma letra chamada M. Quando for escrever “morango”, vai pensar nos sons que compõem a palavra. “Que letra tem o som mmmo? O M”.
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Críticas: A principal crítica ao método fônico é sobre focar em unidades muito abstratas da língua: os fonemas. O método tornaria a alfabetização um ato mecânico. Seabra rebate, dizendo que é possível apresentar os sons das palavras de forma lúdica, com leitura de contos, cantigas, nomes dos amigos da turma.
MÉTODO GLOBAL
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Abordagem: O método global parte do todo (texto, frase) para as partes (palavras, sílabas, letras, sons). Somente após um contato intenso com um conto, por exemplo, ele seria “decomposto” e a criança analisaria os detalhes. O foco, nesse caso, é a compreensão e a atribuição de sentido ao que é apresentado à sala. A ideia é ser um método que priorize a compreensão. É importante reforçar que, embora seja frequente a associação com o construtivismo, não há essa relação imediata ou obrigatória com a filosofia.
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Crítica: Apesar de o foco, em tese, ser a atribuição de sentido à alfabetização, alguns professores usam textos fora do universo infantil para apresentar a escrita e a leitura.