Profissão que pode virar um hobby

Profissão que pode virar um hobby

Professor: uma profissão que pode virar um hobby?

por Jelson Oliveira        3 de maio de 2021

A aparente democratização do saber desenvolvida pelas redes sociais e todas as tecnologias de informação e comunicação tornam cada cidadão um proto-professor

Professor uma profissão que pode virar hobby? A pergunta parece cínica, mas expressa uma preocupação e um risco cada vez mais notório. Como outras profissões, a docência vive hoje uma crise sem precedentes. Há muitos motivos para isso e, como tudo, uma análise profunda do problema deveria incluir o desafio da formação, o desempenho das casas de ensino, as transformações da sociedade global, o descrédito da educação formal, o novo perfil dos estudantes, entre outros aspectos desse emaranhado de esfinges que nos olham vorazes. Pensemos num deles: o impacto das tecnologias de comunicação e informação.

Sob esse aspecto, a explicação para a morte do professor é a mesma que se encontra quanto se pergunta sobre a míngua ou o desaparecimento de outras profissões, como o jornalista, o motorista, em certa medida o psicólogo e mesmo o escritor. O que há em comum nesses casos é o impacto que as tecnologias e os grandes monopólios de empresas como Google, Amazon, Facebook e Aple (a sigla já famosa é GAFA) têm sobre os modos de vida de quase todos nós. Franklin Foer, no seu livro O mundo que não pensa: a humanidade diante do perigo real da extinção do homo sapiens (Leya, 2018), não chegou a tratar da situação do professor, mas deu pistas para que sua descrição servisse como paradigma do que está acontecendo com a docência, explicando porque, afinal, a maior parte dos cursos de licenciatura estão fechando por falta de candidatos ou migrando (em ato quase desesperado, em busca de sobrevida) para o modelo remoto. Há quem ache que o discurso oficial e a falta de políticas públicas de valorização da carreira seja o grande motivo desse desânimo generalizado. Provavelmente isso seja verdadeiro. Mas não é tudo. Foer ajuda a entender que o trabalho de docência (que implica ensino e pesquisa) vem sendo diretamente afetado pelo avanço do que poderíamos chamar de uma nova economia, que vê no professor nada mais do que um agente daquela “doença dos custos”, que tem levado ao fim de muitas profissões. O professor, afinal, custa caro.

O bom professor (com titulação e formação adequada) custa bem mais e seu salário, embora não tenha aumentado nos últimos tempos de forma substantiva, tem sido um dos itens de despesas que mais pesam no orçamento das instituições de ensino e do governo. Do outro lado, o valor das mensalidades (no caso do ensino superior privado, principalmente) está cada vez mais baixo, dada a disputa de mercado. E ainda teríamos que contabilizar as despesas pessoais que incluem compra de livros, pagamento de taxas de internet, despesas com cursos de atualização, viagens para congressos e outras atividades, além de investimentos com equipamentos de trabalho (demanda que dobrou com a pandemia). Vale aqui o que Jason Epstein falou sobre os editores de livros: “se o maior objetivo dessas pessoas fosse dinheiro, provavelmente teriam escolhido outras carreiras”.

Ocorre que essa economia parece ultrapassada, quando comparamos com o novo sistema de tecnologia que vem diluindo o papel do professor para baratear o acesso ao conhecimento. Nesse modelo, a parte mais dispendiosa do processo, o docente, vem sendo substituído por uma série de outsiders que ocupam as redes sociais com “produtos” de todo tipo e que vão de blogueiros e youtubers a profissionais de todas as áreas vendendo seus cursos sobre temas variados, de forma direta, apelativa e, muitas vezes, competente. Cursos de curta duração são muito interessantes e representam alternativas viáveis para quem tem pressa e não tem paciência para os anos de cadeira que levam a um certificado que pode já nascer ultrapassado, diante das reiteradas novidades do mercado.

A aparente democratização do saber desenvolvida pelas redes sociais e todas as tecnologias de informação e comunicação, além disso, tornam cada cidadão um proto-professor, porque todos têm alguma coisa para ensinar e, na medida em que dispõem de uma ferramenta e podem angariar alguma audiência, de fato, ensinam. Nas suas mãos, o conhecimento perde qualquer aura de nobreza e deixa de ser um fetiche ou um artigo alcançado a duras penas, para ser oferecido em cada página do Facebook, a custo zero, por pessoas que no geral não dependem daquilo para viver e, por isso, oferecem seu produto de graça e seu trabalho caracteriza-se como um hobby e não como um emprego – o que de fato não é. Mina-se, com isso, o “prestígio” do professor, apelando para “tutoriais” de todo tipo: Foer, por exemplo, faz referência a um tutorial da Microsoft que ensina a dar palestra e a verdade é que podemos abrir agora mesmo a internet e acessar palestras, cursos, aulas, seminários, lives e todo tipo de ação na qual o conhecimento é distribuído de graça, por mero… prazer.

Na outra ponta da história, os conglomerados educacionais ameaçam as antigas instituições de ensino superior com matrículas em grande escala, celebrando a democratização da educação como um valor quase bíblico, embora com o custo do sucateamento dos salários e da qualidade geral dos cursos. Além disso, iniciativas dos gigantes da tecnologia invadem cada vez mais o mundo da educação. Um exemplo é o Google for Education, que promete integrar pessoas de forma colaborativa, por meio da tecnologia, tornando as aulas mais atrativas e tecnológicas, embora nem sempre saibamos do que se trata esse adjetivo portentoso. Outro é o MECFlix, que disponibiliza aulas online e gratuitas sobre inúmeros temas. As iniciativas são várias e deve-se somar a elas a crise do mercado editorial e os processos de difusão dos livros de forma gratuita, de forma legal ou pirateada (vale lembrar que o Google tem como meta escanear – e divulgar – todos os livros do planeta). Ocorre que, no geral, a sede por cliques é a lógica interna desses processos e pouco importa se tudo isso não passe de enlatados com alta concentração de gordura saturada.

Do ponto de vista do bem comum (uma sociedade mais educada e com mais condições de progredir), o resultado desse processo pode ser desastroso. Embora seja inegável que o acesso ao conhecimento deva ser democratizado, é também inegável que a exclusão digital e o déficit de competências digitais, têm impedido que as pessoas selecionem o que lhes interessa segundo os critérios do benefício e da competência do produto, provocando uma superficialização dos saberes, um descrédito das instituições de ensino e desmerecendo o trabalho árduo e complexo que envolve a preparação de uma aula, seja em termos de conteúdo, seja de metodologias. Sem o profissionalismo que envolve essa tarefa, a docência estará cada vez mais fadada ao fracasso e ao descrédito, enquanto crescem os lucros dos que celebram o número dos cliques nos painéis multimídia das empresas capitalistas que dominam a inteligência artificial por trás dos filtros e dos algoritmos.

A atual etapa de nosso drama inclui o esforço dos professores e professoras em se tornarem, eles mesmos, agentes tecnológicos das redes sociais, influencersyoutubers e coisas do gênero, que solenizam a “sabedoria das multidões”. É óbvio que podemos ter algum sucesso aqui e ali, mas o fato é que poucos de nós teremos chance nesse mercado tão complexo, instável e beligerante. Enquanto eles passam a ideia de que podemos ocupar esses ambientes e praticar nossa vocação como quem desfruta um hobby, a profissão do professor se esvai na névoa fria que confunde tudo e tira de muita gente a chance de fazer o que sabe e o que gosta, sendo pago por isso com o salário que, antes de tudo, é um reconhecimento de seu valor. Ou a sociedade salva o professor ou a sociedade não se salvará de si mesmo.

 

Jelson Oliveira é professor do Programa de Pós-Graduação e do Curso de Graduação em Filosofia da PUC-PR. Pesquisador da Fundação Araucária, coordenador do Centro Hans Jonas Brasil e da Cátedra Hans Jonas da PUC-PR e do GT de Filosofia da Tecnologia e da Técnica da Anpof. Também é co-editor da Revista de Filosofia Aurora.




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