Projeto de nação e revogação do NEM
O projeto de nação e a necessária revogação do Novo Ensino Médio e dos seus pilares – a BNCC e a BNC-Professores
Não se pode desprezar que a implantação do NEM ocorreu de modo subsequente ao golpe parlamentar-midiático que depôs o Governo Dilma Rousseff
por Lúcia Valadares Sartório
02/07/2023 - Redaçãojornalggn@gmail.com
Em breve será encerrado o processo de consulta pública[i] iniciado pelo MEC em 05 de abril para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio, com a definição de qual será o projeto educacional para o país nos próximos anos.
De modo predominante, estudantes, docentes, pesquisadores, instituições de pesquisa no campo da educação vêm apresentando posicionamento crítico e defesa da revogação, com destaque à falácia dos itinerários formativos e desestruturação da formação científica, como também apontamento ao contexto em que se deu a implantação do Novo Ensino Médio e os equívocos derivados da concepção em que estão assentadas as suas bases.
Apesar da insatisfação generalizada com o atual modelo do Ensino Médio, ainda ressoam vozes, como a de Maurício Holanda Maia[ii] e das fundações empresariais[iii], em defesa de um consenso que possa culminar em correções e ajustes para garantir sua efetivação. Todavia, como obter consenso diante de interesses completamente divergentes, balizados por princípios que culminam em finalidades antagônicas no que diz respeito à formação do indivíduo e à proposta de desenvolvimento para o país?
Não se pode desprezar que a implantação do Novo Ensino Médio ocorreu de modo subsequente ao golpe parlamentar-midiático que depôs o Governo Dilma Rousseff, período em que passou a ser aplicada a desestabilização das políticas públicas educacionais, que vinham num processo crescente de avanços e obtenção de bons resultados derivados das ações implementadas ao acesso e permanência dos estudantes na educação básica e no ensino superior.
Naquele contexto de ataques ao governo, o ex-ministro da educação Renato Janine Ribeiro, em sua brilhante atuação na condução da política educacional, publicou a Portaria 592, de 17 de junho de 2015, na qual instituiu Comissão para Elaboração de Proposta da Base Nacional Comum Curricular, envolvendo especialistas nas áreas do conhecimento e respectivos componentes curriculares pertinentes às etapas da educação básica, com as seguintes determinações,
Art. 1º Fica instituída a Comissão de Especialistas para a Elaboração da Proposta da Base Nacional Comum Curricular. § 1º A Comissão de Especialistas será composta por 116 membros, indicados entre professores pesquisadores de universidades com reconhecida contribuição para a educação básica e formação de professores, professores em exercício nas redes estaduais, do Distrito Federal e redes municipais, bem como especialistas que tenham vínculo com as secretarias estaduais das unidades da Federação. § 2º Participarão dessa comissão profissionais de todas as unidades da federação indicados pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação – CONSED e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – Undime.
A Portaria 592/2015 determinou que a elaboração da Base Nacional Comum Curricular deveria seguir os princípios estabelecidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais, aprovada pela Resolução CNE/CEB n° 2, de 30 de janeiro de 2012, assentados nos ideais de liberdade, solidariedade, tolerância, formação científica e cultural. O valor humano e formativo contido nos capítulos e incisos abriam caminhos para a elevação da qualidade do ensino e formação politécnica, favorecendo o desenvolvimento econômico, social e humano[iv].
Além da perspectiva humanista e do trabalho como princípio educativo, as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio estão perpassadas por orientações fundamentais de integração de conhecimentos gerais e técnico-profissionais numa perspectiva interdisciplinar (Inciso VI), reconhecimento da diversidade (Inciso VII), integração entre a educação e as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura (Inciso VIII), que estimulam a ampliação das capacidades humanas frente aos desafios postos no século XXI.
Num caminho diametralmente oposto, o ilegítimo governo Temer aprovou a Reforma do Ensino Médio, sob a Lei n° 13.415/17, e abriu as portas às fundações empresariais conduzirem a organização da Base Nacional Comum Curricular, com promoção da sua adequação à lógica de mercado e ao desmantelamento das disciplinas científicas, sob o falso argumento de que o Ensino Médio já não cumpria o seu papel[v].
Nessa situação constituída após o golpe, a Base Nacional Comum Curricular foi homologada pela Portaria n° 1.348, de 17 de dezembro de 2018, vale frisar, após homologação de três portarias derivadas de audiências públicas sem representatividade ocorridas entre 2017 e 2018 para forjar legitimidade ao processo.
Embora faça menção ao Plano Nacional de Educação (2014-2024), à LDB n° 9.394/96, e às Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (2013), no corpo do texto foi disposto um conjunto de orientações aos procedimentos pedagógicos para formação de competências. Observa-se que toda a formação assentada no desenvolvimento dos vários níveis de raciocínio e apreensão das diversas áreas do conhecimento à prática social fora subtraída por um modelo de educação direcionado a gerar resultados estreitamente vinculados à aquisição de habilidades, atitudes e valores, numa perspectiva de aprendizagem balizada no conhecimento adstringido e fragmentado. A BNCC traz uma concepção de mobilização de conhecimento que vincula tão somente conceitos e procedimentos, direcionada ao treinamento e à conformação de atitudes previamente delineadas.
Para os segmentos políticos e empresariais presentes na base de sustentação do poder constituída com o golpe de 2016, tratava-se de implantar mudanças profundas na sociedade brasileira capaz de apagar a história e irromper um novo percurso, assentado no anti-humanismo e inteiramente voltado aos interesses dos grandes grupos econômicos. Isto é, de um lado, ocupar os espaços presentes nas redes municipais e estaduais de ensino e abocanhar um grande filão mercadológico com a oferta de cursos de formação continuada e comercialização de livros e materiais didáticos. De outro, passar a determinar o conteúdo formativo nos marcos dos interesses empresariais e apagamento da memória social.
As políticas públicas delineadas à educação foram ficando cada vez mais claras com a indicação de um arcabouço ideológico articulado com vistas a suplantar uma trajetória formativa advinda da cultura greco-romana e consolidada no iluminismo, por uma perspectiva inteiramente contemplada pelos valores de mercado e desvinculada da base de sustentação da democracia, do direito, do respeito e da solidariedade humana.
Para construir o tripé de sustentação das reformas antidemocráticas na educação foi aprovada a Base Nacional Comum da Formação de Professores para a Educação Básica, pela Resolução 02/2019, que descaracteriza os cursos de licenciaturas por estilhaçar a formação teórica e pedagógica, que reduz a perspectiva profissional docente à aplicação de manuais, além de buscar adequá-los ao formato precarizado do Novo Ensino Médio, num contexto de autoritarismo e desconsideração sobre os estudos realizados no campo da educação.
Para completar o processo de desregulamentação da política educacional e subtração do ideário democrático, o Edital do Programa Nacional do Livro Didático publicado em 2021, para chamada de autores em 2023, apresentou um conjunto de alterações nos fundamentos que balizavam a seleção de livros que seriam adquiridos para as redes públicas de ensino da educação básica. A desregulamentação dos critérios de seleção do livro didático fez por eliminar as dimensões sociais, políticas e culturais da sociedade brasileira como requisito necessário à escolha do livro didático, assim como a referência à cidadania e aos valores democráticos, supressão de termos relacionados às questões de gênero, minorias, classes marginalizadas, raça e etnias[vi].
A política educacional estabelecida foi erigida à consolidação do arcabouço ideológico de sustentação de uma economia fincada no neoliberalismo e na formação adstringida de conteúdo humano, subtração dos valores democráticos de igualdade e liberdade. Portanto, não é possível vislumbrar a reconstrução do Novo Ensino Médio, mas a sua revogação, juntamente com a revogação da BNCC e a BNC-Professores, como também uma profunda revisão do Edital PNLD 2023, que entrará em vigor em 2025.
É imperativa a constituição de uma educação à altura de um projeto de nação voltado ao desenvolvimento econômico, social e humano, com vistas a construir um país soberano, que promova a superação das desigualdades, a inclusão dos povos tradicionais, elevação da qualidade de vida e das condições de trabalho da classe trabalhadora, onde a liberdade e o protagonismo sejam a ordem do dia.
Nesse contexto, as formações cultural e científica são imprescindíveis, e podem estimular “a capacidade do ser humano de criar e recriar, de inovar os sistemas produtivos. A reindustrialização pressupõe que a inovação tecnológica e a ciência e a tecnologia estejam no centro do processo”[vii], sem menosprezar os arranjos produtivos locais, a agricultura familiar e as potencialidades econômicas regionais.
Lúcia Valadares Sartório – Professora do Instituto de Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
[i] MEC prorroga consulta pública por mais 30 dias. Ministério da Educação. Disponível em <https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/mec-prorroga-consulta-publica-por-mais-30-dias> Data de acesso 06/06/2023.
[ii] Secretário da Secretaria de Articulação Intersetorial e com os Sistemas de Ensino (SASE), MEC.
[iii] Fundação Lemann, Fundação Airton Senna, Todos Pela Educação.
[iv] A esse respeito, vale observar o inciso III, do Artigo 3., Capítulo II das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, no qual é ressaltado “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” e o inciso IV, “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática”, pois se constituem em premissas elementares ao exercício das práticas sociais e organização de atividades produtivas.
[v] Em verdade, o Ensino Médio atravessava uma boa fase, pois seus bons frutos foram apresentados pelo Censo da Educação de 2011, com o crescimento de 5,7% de matrículas no ensino superior e aumento do percentual de negros matriculados de 1,8% para 8,8%. O Senso da Educação Superior de 2014 apontou avanços com a informação de que o número total de matrículas no ensino superior atingira 7,83 milhões, representando um crescimento de 7,1% em relação a 2013.
[vi] PNLD e BNCC do Ensino Médio: Fragmentação e Acumulação de Capital. Marco Mitidiero, 2023. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WSJj7KKWzbY>
[vii] Projeto Nacional e a construção do Brasil. Luiz Gonzaga Belluzzo. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=WTWaLd-Ef-E&list=PL4-Ftn7qHC1mJc_MpQMD-nTDsDiUQKXAk&index=2>
FONTE:
https://jornalggn.com.br/artigos/o-projeto-de-nacao-e-a-necessaria-revogacao-do-novo-ensino-medio/