Proletarização dos professores

Proletarização dos professores

A proletarização dos professores universitários da rede privada

Pressão, adoecimento e desvalorização marcam o cotidiano de quem sustenta o lucro educacional

 08/08/2025 

Por Valter Mattos da Costa*


A sala de aula é o palco. Mas o espetáculo do Ensino Superior privado não se sustenta pelo brilho da educação. Mantém-se pelo suor de quem o sustenta com diplomas, notas, avaliações e promessas.

Atrás do quadro branco, há trabalhadoras e trabalhadores da docência universitária vendendo sua força de trabalho intelectual a preços cada vez mais rebaixados. Quem lucra com isso são os donos das universidades — empresários do setor educacional que transformaram o saber em mercadoria, e os professores em operários precarizados.

O estudante é convencido de que compra um futuro. Na realidade, adquire um produto simbólico — o diploma — que promete valorização social e econômica. Um capital simbólico, como diria Pierre Bourdieu. Mas o verdadeiro produtor dessa mercadoria é o professor, cujo trabalho gera valor que não lhe é retribuído.

A diferença entre o que o professor transfere e o que recebe — essa mais-valia educacional — vai parar no caixa da instituição.

Submetido à lógica da acumulação, o docente da rede privada é forçado a transformar o saber em serviço, o ensino em resultado, e a autonomia em planilha. A liberdade de cátedra cede lugar à pressão comercial.

A criatividade didática se curva às demandas do marketing. A crítica desaparece sob a vigilância dos coordenadores, pressionados por metas de retenção e aprovação. O conhecimento deixa de ser um fim e torna-se um meio de sobrevivência.

 

 

 

Sobrevivência, aliás, é palavra-chave. Os salários não acompanham a inflação. A sobrecarga é constante. A instabilidade do vínculo contratual impede qualquer planejamento de médio ou longo prazo.

Muitos professores atuam em mais de uma instituição, percorrem longas distâncias e ainda preparam aulas, corrigem trabalhos e alimentam sistemas burocráticos fora do horário. Não raro, a saúde física e mental colapsa: burnout, ansiedade, distúrbios vocais e musculares se tornam parte da rotina.

Os donos das universidades pressionam. Os coordenadores pressionam. Os alunos pressionam. Uns por lucro, outros por metas e cargos, outros por aprovação automática — confundindo consumidor com patrão.

Em todos os casos, a sobrecarga recai no professor. Uma engrenagem produtiva que precisa estar disponível, adaptável e em constante aperfeiçoamento, sem qualquer garantia de estabilidade. Quando adoece, atrasa ou reclama, é descartado sem cerimônia.

A pandemia escancarou e aprofundou esse quadro. Muitas instituições cortaram salários, aumentaram cargas horárias no ensino remoto (o famoso EAD) e demitiram centenas de professores.

 

 

 

Outras simplesmente faliram, deixando dívidas trabalhistas e um rastro de desesperança. A conta da crise foi repassada a quem menos podia pagá-la: o corpo docente e os demais profissionais da Educação. Enquanto isso, os sócios retiravam o capital, vendiam patrimônios e se protegiam juridicamente do passivo.

A retórica empresarial sobre “educação de qualidade” serve apenas como embalagem. A realidade cotidiana é a de um trabalhador expropriado de sua produção intelectual, submetido à lógica de mercado e tratado como peça substituível.

A docência, nesse modelo, é menos profissão e mais bico. O professor deixa de ser sujeito do saber para virar executor de demandas alheias. A universidade privada torna-se uma fábrica de certificações.

A lógica empresarial que transforma o ensino em produto mina também os fundamentos democráticos. A filósofa estadunidense Martha Nussbaum alerta que, ao subordinar a formação ao lucro, esvazia-se o papel da educação como promotora de cidadania crítica e de empatia.

“A educação não é útil apenas para a cidadania. Ela prepara as pessoas para o trabalho e, o que é fundamental, para uma vida que tenha sentido. Seria possível escrever outro livro inteiro sobre o papel das artes e das humanidades na promoção desses objetivos.” (NUSSBAUM, 2017).

Mesmo assim, a maioria resiste. Busca qualificação, participa de projetos de extensão, investe em pesquisa, muitas vezes sem remuneração. Luta para manter a dignidade diante do descaso. Apoia-se em redes de solidariedade e afeto para continuar. Há resistência, ainda que fragmentada. Mas não há política pública à altura. A precariedade estrutural é ignorada pelas autoridades. A legislação trabalhista, cada vez mais fragilizada, oferece pouca proteção.

Comparações com os docentes das universidades públicas são frequentes. E, em muitos casos, injustas. Não se trata de oposição entre categorias, mas de compreensão das diferenças estruturais.

Os professores do setor privado, ainda que igualmente qualificados, enfrentam condições mais instáveis, menores salários e menos prestígio. Isso não os torna menos professores. Torna mais urgente a defesa de sua dignidade.

A crise da educação superior no setor privado é, em grande parte, a crise da própria lógica que transforma o saber em mercadoria. A escola-empresa reproduz desigualdades, aliena sujeitos e esvazia o sentido da formação.

Enquanto isso, os professores universitários vivem a contradição de ensinar criticamente um mundo que os oprime, ao mesmo tempo em que são forçados a reproduzir esse mundo dentro das instituições.

Não se trata de nostalgia por um tempo que nunca foi ideal. Trata-se de denunciar a proletarização de um trabalho que deveria ser intelectual, emancipador e respeitado.

Enquanto a docência for tratada como mera prestação de serviço, a universidade será apenas um balcão. E o professor, um vendedor fatigado de esperanças. É preciso romper essa lógica. A educação não é mercadoria. E o saber, muito menos.

*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História Social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.

FONTE:

https://iclnoticias.com.br/proletarizacao-professor-universitario-privada/ 




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