Prova do Encceja substitui do Enem
Aprovação aumenta após prova do Encceja substituir a do Enem para quem busca 'diploma' do ensino médio
'Taxa de aproveitamento' dos participantes foi de 14% em 2016, último ano em que o Enem foi usado para conceder a certificação. Com retomada do Encceja, percentual dos aprovados saltou para 36% em 2018.
Por Ana Carolina Moreno, G1
Quem te ensinou a escrever? Maria das Neves, de 55 anos, aprendeu o abecedário no chão de terra na zona rural da Paraíba, e ensinou a si mesma a ler aos 17 anos, quando pegou um livro nas mãos pela primeira vez; neste mês, ela começou a faculdade de pedagogia — Foto: Fabio Tito/G1
O percentual de aprovados em exames que dão o direito de tirar o “diploma” do ensino médio mesmo sem frequentar a escola na idade prevista passou de 14,3%, em 2016, para 36% em 2018. O salto ocorreu dois anos depois de o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) ser substituído por uma prova especificamente desenvolvida para esse objetivo: o Encceja(Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos).
O Encceja foi pensado para candidatas como Maria das Neves, que pisou em uma sala de aula pela primeira vez em 2010, aos 45 anos. Ela tentou em quatro edições do Enem obter os 450 pontos que eram necessários para obter o diploma, mas não teve sucesso. Só conseguiu o certificado quando a prova mudou.
Educação de adultos: A trajetória da alfabetização até o ensino superior
Dados analisados pelo G1 na série "Adultos sem diploma" mostram os motivos para as mudanças e seus efeitos:
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O Enem virou um "vestibular" com questões complexas, enquanto o Encceja tem enunciados mais simples e uma prova mais curta, avaliam especialistas;
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Se o Enem fosse uma "prova de conclusão do ensino médio", só 30,2% de todos os candidatos teriam sido aprovados em 2016 com 450 pontos ou mais;
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Enquanto entre os jovens é alta a taxa de evasão no ensino médio regular, cresce o interesse de adultos que não terminaram a escola. Eles têm duas formas de obter o diploma: uma é cursar o Ensino de Jovens e Adultos (EJA), a outra, a prova do Encceja;
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A busca pelo Encceja dobrou desde a retomada: foram 102.638 inscritos em 2017, contra 208.391 em 2018;
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As matrículas em turmas do EJA do ensino médio cresceram 5,1% entre 2014 e 2018. Enquanto isso, as matrículas no ensino médio regular caíram 7,1%
Para quem não concluiu o ensino médio no tempo previsto, há duas formas de obter o diploma. A primeira é frequentar o curso de Ensino de Jovens e Adultos (EJA) da rede pública, que tem avaliação presencial dos estudantes concluintes, válida para a emissão do certificado.
Quem não frequenta o EJA tinha a opção, entre 2009 e 2016, de usar o Enem. Mas, desde 2010, uma nota técnica do próprio governo já apontava as dificuldades de usar o Enem com esse fim, indicando que esse candidato acabava "submetido a condições inapropriadas de avaliação". O Encceja foi então retomado em 2017.
Uma comparação entre os resultados dos dois exames mostra, porém, que o Encceja tem tido procura mais alta de inscritos para pegar a certificação, além de mais candidatos que conseguiram a nota necessária em todas as provas.
Comparativo entre os exames: Encceja tem mais inscritos e maior aproveitamento que Enem — Foto: Arte/G1
Enem inadequado para certificação
Roberto Catelli Junior, coordenador adjunto da ONG Ação Educativa, comparou os dois exames durante sua pesquisa de doutorado e diz que a diferença entre eles é a função principal. “O Enem é uma prova de competição para cursos de alta concorrência”, explicou ele ao G1.
Isso exige que a prova tenha, entre outras características, um número grande de itens para poder classificar os milhões de candidatos em uma escala de proficiência. No Enem, são 45 questões, contra 30 do Encceja, por exemplo, que também tem textos de apoio mais curtos.
Questão da prova de matemática do Encceja 2017 (a alternativa correta, segundo o gabarito do Inep, é D) — Foto: Reprodução/Inep
“Achar que o Enem pode avaliar duas modalidades bastante distintas, o regular e o EJA, é um erro”, afirmou Timothy Ireland, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenador da Cátedra da Unesco em Educação de Jovens e Adultos.
O próprio Inep, em 2017, considerou a mudança uma melhoria. Em nota, a autarquia do MEC afirmou que o Encceja é um “exame mais adequado”.A reportagem do G1 pediu que Maria das Neves escrevesse uma frase na lousa. Ela decidiu citar o primeiro autor que leu, Érico Veríssimo: 'Felicidade é ter a certeza que a nossa vida não está passando inutilmente' —
Em sua pesquisa de doutorado pela Universidade de São Paulo, Catelli Junior, da Ação Educativa, analisou os dados dos candidatos do Enem 2013 e descobriu que, mesmo entre os candidatos do ensino regular, 62% dos participantes do exame não cumpririam as exigências impostas desde 2012 para pedir a certificação: 450 pontos nas quatro provas objetivas, e pelo menos 500 pontos na redação.
O G1 repetiu a análise com os dados do Enem 2016 e observou que, se o exame fosse obrigatório para todos os 5,8 milhões de participantes daquele ano, 69,8% estariam "reprovados".
Pelos microdados do Enem 2016, é possível comparar a nota dos candidatos à certificação segundo diversos aspectos socioeconômicos — Foto: Arte/G1
Já o Encceja exige que os estudantes acertem 50% das questões objetivas, e 5 de 10 pontos na prova de redação. Além disso, as provas são aplicadas todas no mesmo dia, de manhã e à tarde.
Segundo o professor Giuliano Rossini, coordenador de projetos sociais do Pueri Domus, as habilidades exigidas nas provas não são muito diferentes da matriz de referência do Enem, mas a abordagem das questões é mais adequada porque leva em conta a realidade do estudante jovem e adulto.
Questões da prova de ciências da natureza do Encceja 2017 (as respostas corretas, segundo o gabarito do Inep, são C e D, respectivamente) — Foto: Reprodução/Inep
“O Enem tem muito mais questões de temas que a gente não teve conhecimento, não chegou a estudar aquilo, então era bem mais difícil”, explicou ao G1 Maria das Neves, que fez os dois exames.
A pontuação de que ela precisava veio pelo Encceja, depois de quatro anos de experiências frustradas com o Enem.
Em 2013, na primeira tentativa, ela foi aprovada em todas as provas, mas, como só estava fazendo como experiência, a professora que a ajudou na inscrição não preencheu o campo pedindo a certificação, então a nota “não serviu para nada”.
No ano seguinte, ela fez as provas mais uma vez e passou mais uma vez em... quase todas elas, com exceção de matemática, por apenas 2 pontos. Em 2015, mais uma tentativa frustrada e, em 2016, ela precisou faltar às provas depois que uma cirurgia lhe deu complicações e um mês de internação.
Há dois anos, quando o Enem deixou de servir para a certificação, a babá então participou do Encceja. Finalmente, em janeiro de 2018, recebeu a notícia que mais esperava: poderia solicitar o certificado de conclusão do ensino médio.
“Eu tinha um sonho de entrar na escola e estudar, mas chegar à faculdade era um sonho grande demais para mim. Eu achava que era impossível”, afirmou Maria das Neves em entrevista ao G1.
Em fevereiro, o impossível virou realidade, e ela começou seu primeiro semestre na graduação em pedagogia pela FMU, em São Paulo.
Giuliano Rossini, coordenador de projetos sociais do Colégio Pueri Domus, com Maria das Neves, que é a ex-aluna do Projeto Aprender e, depois de se formar no curso, virou professora voluntária de adultos — Foto: Fabio Tito/G1