Quando a violência invade a escola
Ninguém está seguro quando a violência invade a escola
O espaço escolar é um organismo vivo, um reflexo da sociedade que o permeia, em todas as suas dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas
Por Ânderson Barcelos Martins / Publicado em 16 de junho de 2025

“Os casos de violência nas escolas vêm explodindo no Brasil. Eles, no entanto, não surgem isolados nem têm origem apenas no ambiente escolar. São reflexos de uma sociedade que também é violenta” . Foto: Claudio Fachel/Palácio Piratini
Quem, como eu, foi criança entre os anos 1980 e o início dos anos 2000 e teve a oportunidade de frequentar a escola, certamente ouviu de seus responsáveis que a escola era uma segunda casa e que a professora era uma segunda mãe. Essas são duas grandes falácias que ainda nos afetam até os dias de hoje.
Primeiramente, é necessário esclarecer que a escola não é uma extensão do nosso lar. Pelo contrário, ela é um espaço coletivo, no qual imperam regras que buscam favorecer não apenas a minha individualidade, mas, sobretudo, o bem comum. Na escola, portanto, eu não sou um filho único; insiro-me em uma coletividade própria da cidadania, na qual existem direitos e deveres que dizem respeito a todos.
Da mesma forma, a professora – e, a partir dela, todos os demais educadores que exercem sua atividade profissional no espaço escolar – não são minha mãe, tampouco meu pai. Não terei deles uma atenção destacada e nem uma entrega que se aproxime da maternidade ou da paternidade. Essa compreensão equivocada apenas favorece a precarização da atividade docente, reduzindo o professor a um papel de cuidador, quando, na verdade, sua função é muito mais ampla e complexa.
A concepção da escola como extensão do lar e da professora como figura materna reforça, em última análise, uma pseudo-sacralidade do ambiente escolar. Essa visão nos impede de olhar criticamente para a escola, compreendendo os diversos atravessamentos que, cotidianamente, disputam espaço em seu interior.
Afinal, a escola é atravessada pela vida em toda a sua pulsão. O espaço escolar é um organismo vivo, um reflexo da sociedade que o permeia, em todas as suas dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas. Entre quadros, mesas e carteiras, o contexto educativo se entrelaça com a realidade mais ampla, moldando-se e sendo moldado por ela. Não há nada que aconteça na sociedade que não seja, de alguma forma, amplificado em nossas salas de aula.
Atualmente, por mais que nos custe reconhecer, nada deve nos alarmar mais quando o assunto é escola do que a crescente onda de violência, amplificada e incentivada por discursos de ódio que circulam livremente pelas redes sociais. Trata-se de um problema que afeta não apenas o Brasil, mas instituições de ensino em diversos contextos ao redor do mundo.
A escalada da violência
Em abril de 2025, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) divulgou uma pesquisa, realizada com base em dados nacionais, indicando que o Brasil enfrenta um novo cenário de violência nas instituições de ensino. Segundo o estudo, houve uma escalada nos casos de agressões na comunidade escolar ao longo dos últimos 10 anos (2013-2023), com um pico de registros entre 2022 e 2023.
Há, em toda a sociedade brasileira, uma grande dificuldade em encarar os dados que apontam para o aumento da violência nas escolas e, consequentemente, em enfrentar a realidade que eles evidenciam. Confrontar-se com esses números significa romper com as falácias que nos contaram na infância e com muitos outros mitos que estão profundamente enraizados em nossa cultura. Um desses mitos é o de que a escola, assim como o lar, estaria protegida de forças que provocam o ódio e a violência. Outro, igualmente delicado, é o de que crianças e adolescentes não cometeriam crimes – um tema que merece uma reflexão específica em outra oportunidade.
Os casos de violência nas escolas vêm explodindo no Brasil. Eles, no entanto, não surgem isolados nem têm origem apenas no ambiente escolar. São reflexos de uma sociedade que também é violenta. A escola é violenta na medida em que a sociedade o é.
Ainda em abril de 2025, o Atlas da Violência, ao analisar dados do Ministério da Saúde, revelou que, entre 2013 e 2023, o número de crianças e adolescentes vítimas de violência saltou de 35 mil para mais de 115 mil. Esse aumento expressivo evidencia uma crise que ultrapassa os muros das escolas e adentra os lares brasileiros.
É curioso observar que os dados sobre o aumento da violência, tanto nas escolas quanto nas famílias, apontam para o ano de 2013 como o início da curva de crescimento e para 2022/2023 como seu ápice. Em meio à expansão do acesso à internet no Brasil, junho de 2013 ficou marcado por uma série de protestos que, de forma simbólica, também sinalizaram uma mudança no uso das redes sociais, com o aumento da polarização e uma nova articulação da (ultra)direita no país.
Onda da polarização
De certa forma, 2013 pode ser visto como o marco inaugural de uma nova onda de polarização, que inicialmente tinha um viés político-ideológico, mas que, com o passar dos anos, avançou para todas as esferas da vida social, acompanhada de níveis crescentes de violência.
Os anos de 2022 e 2023, por sua vez, marcam o retorno presencial às escolas, com alunos letivos finalmente completos na presencialidade, após o período mais crítico da pandemia de covid-19 – um evento histórico que afetou não apenas o campo sanitário, mas também a saúde mental de crianças, adolescentes e adultos. Cabe perguntar: será que os impactos reais dessa experiência de quase-morte coletiva foram, de fato, compreendidos? Ou estamos lidando com ela apenas com um olhar superficial e desinteressado, como quem observa o passado sem a devida responsabilidade?
O fato é que os casos de violência, inclusive os de caráter extremo e com vítimas fatais, vêm se alastrando pelo Brasil. Esse aumento não pode ser explicado apenas pela polarização, especialmente nas redes sociais, e pela relativização dos discursos de ódio, como se fossem inofensivos. Embora a necessária regulação das Big Techs seja um passo importante, os fatores envolvidos são múltiplos e exigem análises que considerem sua complexidade.
Entre eles, merece destaque o já mencionado aumento da violência doméstica – que pode contribuir para a reprodução de padrões de comportamento violentos –; a constante desvalorização da profissão docente e o enfraquecimento público de sua autoridade; a falta de investimentos em formação de professores e em infraestrutura escolar, especialmente nas escolas públicas; as dificuldades no trato com questões de diversidade sexual, de gênero e racial, entre outras, além da crise na saúde mental, marcada por um expansão de diagnósticos e pela ausência de ações eficazes de mediação de conflitos.
Diante desse cenário, é urgente que abandonemos as visões romantizadas e ultrapassadas sobre a escola. Precisamos enxergá-la como o que ela de fato é: um espaço social em constante tensão, atravessado por conflitos, desigualdades e disputas simbólicas. Isso não significa, porém, que devamos sucumbir ao pessimismo. Pelo contrário, reconhecer os problemas estruturais é o primeiro passo para construir soluções coletivas, que envolvam escola, família, poder público e sociedade civil.
A construção de um ambiente escolar mais seguro, inclusivo e saudável passa, necessariamente, por políticas públicas robustas, investimento em formação docente, regulação das mídias digitais e, acima de tudo, pela disposição de olhar para a escola como ela é — um microcosmo da sociedade, onde os desafios se apresentam de forma ampliada, mas onde também pode florescer a esperança de transformações possíveis.
Conversa de Professor
O autor deste artigo é painelista do Projeto Conversa de Professor, da Fundação Ecarta, no dia 18 de junho, às 19h30min, com o tema Entre conexões e conflitos: a mediação docente no enfrentamento da violência escolar em tempos da cultura digital. Confira a programação.
Ânderson Barcelos Martins é mestre e doutorando em Educação pela Ufrgs, especialista em Orientação Educacional e Gestão Educacional pela Universidade La Salle; pós-graduado em Neurociência aplicada ao processo de aprendizagem pela Unisinos e bacharel e licenciado em Filosofia pela PUCRS. É pesquisador CNPq do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (Neccso/Ufrgs) e do Grupo de Estudos em Educação, Interdisciplinaridade e Tecnologias (Geedintec/Ufrgs).
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