Quanto vale a vida?

Quanto vale a vida?

Quando carro ou geladeira valem mais que as vidas sacrificadas em Brumadinho

Rompimento de barragem em Brumadinho

Mulher chora ao observar os estragos causados pelo rompimento da barragem em Brumadinho. 
PEDRO VILELA GETTY IMAGES

Aos que acompanhamos a tragédia da represa da mineradora Vale que desmoronou em Minas Gerais, e o número de vítimas mortais que aumenta a cada momento, só resta a indignação, a dor e a solidariedade com as famílias enlutadas. Indignação porque a catástrofe poderia ser evitada, como indicam todos os especialistas, e dor e solidariedade com as famílias em pranto.

Ficou evidente, apenas três anos depois do crime de Mariana, cujas feridas continuam abertas, que mais uma vez o lucro e a corrupção prevaleceram sobre a preocupação quanto a possíveis vítimas. E isso gera indignação e desespero para aqueles que se viram afetados e se sentem imponentes frente a esses gigantes complexos mineradores protegidos pela impunidade.

Em meio ao luto vivido pelo Brasil e ao sentimento de impotência que sacode as pessoas normais, a grande solidariedade das pessoas com as famílias atingidas serviu como único sopro de esperança de que a consciência solidária dos brasileiros não morreu e continua palpitando frente à dor causada pela avareza do capitalismo selvagem.

Em meus muitos anos de jornalismo, estou acostumado a relatar e analisar muitas outras catástrofes mundo afora, mas mesmo assim houve uma declaração de um político mineiro que me causou um mal-estar difícil de expressar. Eu a li no blog do jornalista, escritor e agudo polemista Reinaldo Azevedo. É um tuíte de Evandro Negrão Jr., vice-presidente do partido Novo no Estado de Minas, cenário da tragédia. Precisei ler várias vezes o texto, que Azevedo qualificou como “latrina”, para me convencer de que não estava alucinando.

Nele, o político, correligionário do atual governador de Minas, Romeu Zema, escreve que de fato os mortos de Brumadinho dão pena, mas que o importante é essa maravilhosa empresa que arranca minérios do coração da terra. Ou será que os brasileiros preferem ficar sem carros e sem geladeiras em vez de perder um punhado de vidas? E conclui que o importante é que a empresa retome sua atividade o quanto antes, para continuar produzindo materiais sem os quais ficaríamos privados de eletrodomésticos.

E as vítimas? Que a Vale pague uma multa. O político foi até generoso com os mortos: pede que seja uma “grande multa”. E a prisão para os possíveis responsáveis? Isso seria um castigo exagerado para uma empresa tão fantástica que, conforme escreve, torna o mundo “muito melhor”.

Não, não é uma fake news. Eis o texto literal:

“Lamentável, muito dolorido e MUITO sofrido o desastre de Brumadinho, mas n/ podemos demonizar a Vale. É uma baita empresa, sem minério n/ tem carro, avião, nem geladeira e o mundo é muito melhor c/ empresas como ela do q sem. Ela errou, deve pagar 1 grande multa e voltar a funcionar asap.”

Enquanto a vida de um só ser humano valer menos que um eletrodoméstico, continuaremos todos apanhados e sem esperança de redenção no túnel sem saída da barbárie. O texto do político do Novo é a melhor elegia do capitalismo em estilo puro, para quem o lucro é seu único bezerro de ouro digno de culto. O resto, o pranto das pessoas que tiverem que ser sacrificadas em seu altar, são um apêndice, um parêntese, uma insignificância. Menos que uma geladeira.

Afinal, o que são algumas dezenas de vítimas a mais ou a menos, em um país com mais de 200 milhões, frente à felicidade de poder ter nossas casas repletas de eletrodomésticos? Não se trata de condenar o sistema capitalista, sempre melhor que o da Coreia do Norte, mas sim de fazermos isso convencidos de que uma só vida humana sempre continuará valendo mais que todo o ferro e o ouro do mundo.

 

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/29/opinion/1548717380_699674.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM&fbclid=IwAR04IBSTa_WuERksTvP1U4AzdJSABu9vrvzV7ym2GlwrkHBAFi-cgSjuZfc 




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