R Administrativa é Cavalo de Troia

R Administrativa é Cavalo de Troia

Para sindicatos, reforma administrativa é ‘Cavalo de Troia’ que visa aumentar influência privada no serviço público

 

O grupo de trabalho criado pela Câmara dos Deputados para discutir a reforma administrativa divulgou na última quinta-feira (2) um documento de 549 páginas com 70 propostas voltadas para a reestruturação do serviço publico no Brasil. Liderada pelo deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ), a reforma — dividida em uma PEC, um projeto de lei complementar e um projeto de lei — teria o objetivo de aumentar a produtividade do setor público nas esferas federal, estadual e municipal, bem como “atacar privilégios”. No entanto, entidades representativas de servidores públicos federais e estaduais no Rio Grande do Sul apontam que a reforma representaria, na verdade, um passo em direção ao “empresariamento” do serviço público.

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Em entrevista ao jornal Valor Econômico publicada na segunda-feira (6), o deputado Pedro Paulo afirmou que o projeto “ataca o coração da produtividade do setor público”, e olha para o cidadão e para o funcionário público. “Quando a gente ataca privilégios do andar de cima, permite que tenha recursos para remunerar a grande maioria dos funcionários públicos”, afirmou o deputado.

Entre as 70 propostas apresentadas, estão medidas que afetam áreas como os servidores terceirizados, concursos, remuneração, teletrabalho, combate a assédios e políticas para mulheres, divididas em quatro eixos:

  • Estratégia, governança e gestão, com foco no planejamento estratégico, no acordo de resultados e na criação de um bônus por desempenho opcional, mantida a diligência com as contas públicas por meio de revisão de gastos;

  • Transformação digital, para modernização da máquina pública e digitalização plena de processos e serviços;

  • Profissionalização do serviço público, com foco no planejamento da força de trabalho, na ampliação dos níveis de progressão da carreira, no remodelamento do estágio probatório, na adesão de municípios e estados ao Concurso Nacional Unificado (CNU) e na implantação de uma tabela remuneratória única; e

  • Extinção dos privilégios, para enfrentamento das desigualdades e excessos no serviço público.

Oficialmente, a questão da estabilidade dos servidores não estaria contemplada na reforma, mas este é um dos vários pontos de discordância apontados pelos servidores que conversaram com a reportagem.

Dirigente da CUT-RS e diretor de Comunicação do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal e do Ministério Público da União no RS (Sintrajufe/RS), Marcelo Carlini avalia que a reforma apresentada é um “Cavalo de Tróia”. “Na imprensa, toda a história vendida é de que é uma reforma para moralizar o serviço público, acabar com os penduricalhos, os super salários. E a gente sabe que, se o Congresso quisesse de fato acabar com isso, já teria votado, por exemplo, o projeto do Flávio Dino que acaba com a aposentadoria de juízes como forma de punição. Esse projeto já existe no Congresso Nacional”, diz.

Carlini também critica o fato de que a proposta vincularia diversos aspectos da remuneração dos servidores e da contratação de funcionários públicos ao cumprimento de metas.

“Para ter novos concursos, por exemplo, você precisa vincular isso a um projeto, a meta, e a gente sabe que essas metas têm duplo objetivo. O primeiro é criar um instrumento de pressão permanente sobre o serviço público. O segundo é mascarar os problemas reais do serviço público, que estão na falta de investimento, na falta de valorização dos servidores e na brutal privatização e precarização em todas as áreas do serviço público”, diz.

A reforma cria, por exemplo, um bônus de resultado para servidores que cumprirem os objetivos e as metas pactuadas no acordo de resultados. “Cada órgão receberá o equivalente a uma 14ª folha de pagamento, distribuída de forma meritocrática e transparente para as equipes que atingirem suas metas”, diz o documento apresentado pelo Grupo de Trabalho.

“Esse projeto vai permitir que um servidor chegue no final da sua carreira no mínimo em 20 anos. E como a progressão dele está vinculada à meta, esse servidor pode ser que não chegue no final da carreira depois de 20 anos. O que significa isso? Uma pergunta que eu acho que é justa: um servidor que faz greve, que mobiliza, que participa, que resiste à política dos governos, vai ser premiado por isso ou vai ser punido? Primeiro lugar. Segundo lugar, um trabalhador, professor da educação, na saúde ou mesmo no judiciário, que tem 20 anos de experiência, ele entende mais ou menos do que quem entrou naquele ano? Portanto, aquilo que parece ser positivo de valorização acaba sendo o contrário. Ele desmerece a vinculação da relação de trabalho e a experiência que esse servidor adquire dentro sua vida profissional e joga tudo para meta”, diz Carlini.

Presidente do Sindicato Intermunicipal de Professores de Instituições Federais de Ensino Superior (Adufrgs-Sindical), Jairo Bolter avalia que o foco da reforma no cumprimento de metas representa um “produtivismo” que pode resultar em maquiagem de indicadores. “Pensa o brigadiano que, quanto mais autuações ele fizer, mais ele vai ganhar. É lógico que ele vai ter autuação. Se estiver dentro da lei, ok, mas e nos casos em que não há uma infração, ele é estimulado a enxergar que há, já que o cara tem que atender uma meritocracia, tem que atender a um padrão meritocrático. E, dentro da sala de aula, o que vai ser avaliado? É a reprovação zero dos alunos e das crianças? Professores não vão mais reprovar alunos, vão jogar o problema para a frente, para o ano seguinte”, observa.

Além disso, ele avalia que a criação de bônus por metas pode levar a um cenário de “denuncismo” dentro do serviço público. “Como é que tu vai premiar um professor e não vai premiar outro? Tu vai ter competição, tu vai acirrar um problema de convivência nas instituições. Ou seja, daqui a pouco nós vamos ter brigas, um denuncismo exacerbado, um colega denunciando o outro porque talvez fez algo que não devesse ter feito para pegar o prêmio. Para nós, vai aumentar muito os problemas de convivência”, afirma.

Jairo avalia que, no cerne da proposta de reforma, está uma disputa sobre quem vai ofertar os serviços públicos, servidores ou iniciativa privada. “A disputa é pela terceirização, se vai ser público ou se vai ser terceirizado. E terceirizado sempre tem alguém por trás, sempre tem uma empresa, sempre tem um grupo, ou seja, sempre tem o lobby”, diz.

A reforma traz propostas de fortalecimento de direitos dos trabalhadores terceirizados e temporários, como a regulamentação de um marco legal que irá reger as contratações terceirizadas em todas as esferas e uma Lei Nacional dos Temporários. Em tese, são propostas que tratam de avanços, pois garantem, por exemplo, direitos a férias e licença-maternidade, bem como colocam um limite de cinco anos para contratos temporários e quarentena de 24 meses para recontratação, com o intuito evitar a perpetuação de contratos emergenciais, como ocorre, em especial, no setor da educação. No entanto, as entidades acreditam que a reforma traz embutido um estímulo à contratação de servidores não efetivos.

Para a presidente do Cpers, Rosane Zahn, a reforma pode representar o começo do fim da estabilidade no serviço público, mesmo o deputado Pedro Paulo alegando que o tema não está abordado nas propostas. “É o fim da estabilidade, porque hoje nós contamos com um número massivo de contratos emergenciais nas escolas, são mais de 60% dos funcionários. Houve um concurso público para suprir 6 mil vagas, mas hoje são 26 mil contratos emergenciais na escola gaúchas. Tu imagina se passa a reforma. É o fim do concurso público nas escolas, é a precarização e, principalmente, a terceirização que vai vir mais forte no âmbito da escola”, diz.

Ela também avalia que há vários pontos ainda incertos sobre a reforma, como o condicionamento a novas contratações pelos entes públicos à realização de um planejamento da força de trabalho considerando histórico e projeções de 10 anos.

Diz o documento apresentado pelo Grupo de Trabalho: “Hoje, as carreiras são normalmente definidas para a atuação em órgãos e entidades específicas, com a fixação de número de cargos sem efetiva correlação com as necessidades. É como se fosse colocada ‘a carroça na frente dos bois’, prevendo soluções dissociadas dos problemas reais. Com a Reforma, toda força de trabalho dos entes federativos deverá ser planejada, levando-se em consideração a evolução dos últimos 10 anos e a projeção para os próximos 10 anos.”

“Nós temos muitas dúvidas ainda em relação ao texto, mas isso mostra o quanto que pode abrir essa brecha da questão da estabilidade. Quando tu estipula 10 anos de contratação não por concurso, e sim uma uma contratação privada, são as empresas privadas que vão acabar entrando no espaço público”, diz a presidente do Cpers.

Além disso, Jairo Bolter acredita que o Congresso não vai abrir mão de discutir a estabilidade dos servidores públicos no âmbito da reforma. “Eu acho que a estabilidade não sai do horizonte, porque, sem o fim da estabilidade, a direita não tem interesse na reforma administrativa. Sem poder dispensar os funcionários, eles não têm interesse. O Lasier Martins tinha um projeto que era de avaliação. Se tu tivesse 3 anos de avaliação consecutiva ruim, era demitido. O que que significa 3 anos? É o período de um mandato de um secretário de saúde de qualquer município. Bom, não foram 3 anos, foram 5 anos sem ser consecutivos, isso é uma caça às bruxas dos funcionários públicos. Vereador e prefeito iam perseguir pessoas que eles conhecem, porque no município as pessoas se conhecem. Nos municípios pequenos isso ia ser terrível, porque o servidor público não tendo mais estabilidade, não tem segurança jurídica, inclusive de perseguição de desafetos políticos”, diz.

Presidente do Ceape, Hildebrando Pereira também não acredita que o tema da estabilidade vá passar em branco nas discussões da reforma. “Em todas as reformas administrativas, o que mais se pretende fazer é ou quebrar a estabilidade do servidor público, ou fragilizar essa estabilidade. E sempre tentando fragilizar os vínculos com o serviço público. Por isso que se fala tanto em contratos temporários, porque isso daí permite que o administrador do momento possa não só fazer apadrinhamentos, porque hoje nos cargos em comissão há limitações para isso, então eles querem utilizar uma outra forma de poder colocar no serviço público pessoas que, na verdade, às vezes não tem a menor condição técnica de estar ali”, avalia.

Hildebrando também expressa preocupação com medidas que considera serem de teor “fiscalista” da reforma, como as propostas para a criação de um Conselho de Gestão Fiscal (CGF) que irá fazer o acompanhamento e avaliação permanentes da política de gestão fiscal; a limitação das despesas de poderes e órgãos autônomos (Ministério Público, tribunais de contas e Defensoria Pública) de entes subnacionais; o estabelecimento de regras que irão reger a estrutura administrativa dos municípios, em especial os de menor arrecadação própria; e revisão de gastos (“spending review”) anual, realizada pelo governo federal, nos moldes das melhores práticas internacionais.

“São todas ações no sentido de evitar aumento de despesa com pessoal. E o que é aumento de despesa com pessoal? É a remuneração. Esse viés fiscalista da proposta vem no intuito de retirar direitos e achatar salários, porque isso estaria dentro de um projeto maior de controle fiscal”, diz. “Na verdade, essa proposta chamada de reforma administrativa é uma verdadeira transmutação do arcabouço fiscal nacional para um arcabouço fiscal para os servidores públicos, com o intuito de achatar cada vez mais salários, tirar qualquer tipo de direito que servidores tenham, fora os muitos já foram retirados”, complementa.

As entidades apontam ainda a falta de participação das representações de servidores na elaboração da reforma e no grupo de trabalho. “O que nos preocupava muito é que os trabalhadores, ao longo deste período, tiveram poucos espaços para se manifestar. A gente viu governadores, a gente viu prefeitos e nós vimos lideranças políticas em nível nacional trabalhando, participando desses momentos, junto com o sistema empresarial. O sistema empresarial acompanha muito de perto essa situação, Faria Lima, Federação de Indústrias e entidades que a gente compreende somente a partir de um contexto a vontade de participarem, que é a fragilização do Estado e, por sua vez, o fortalecimento do próprio serviço terceirizado”, diz Jairo Bolter, da Adufrgs.

“Foi um grupo de trabalho instituído pelo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Mota, mas que sempre houve uma reclamação geral das entidades sindicais, das federações sindicais e também dos próprios integrantes desse grupo de trabalho que não sabiam o que estava sendo discutido. Então, ele foi feito muito de forma sigilosa, não houve um verdadeiro debate, uma discussão e principalmente ouvindo as partes interessadas”, pontua Hildebrando Pereira, do Ceape.

Já Marcelo Carlini, do Sintrajufe, destaca que houve um grande espaço de interlocução e de apresentação de propostas para organizações não governamentais financiadas pelo iniciativa privada. “Não é coincidência que, na carta do Hugo Mota, ele copia trechos do Movimento Pessoas à Frente, que tem ligação com a Fundação Lemann, responsável por N ataques e pela instituição da meritocracia dentro do serviço público. Infelizmente, essa fundação, inclusive, tem instrumentos de ação dentro do Ministério da Educação. Você vê o quanto esses caras conseguiram infestar o serviço público. Então, o DNA dessa reforma é justamente o DNA das ONGs que tentam se apropriar ou no mínimo exercer o controle sobre servidores e serviços públicos”, afirma.

Diante do cenário, sindicatos representativos de servidores federais, estaduais e municipais de todo o Brasil estão convocando uma “Marcha à Brasília” para o dia 29 de outubro, com o objetivo de fortalecer a mobilização contra a reforma administrativa.

 

FONTE:

https://sul21.com.br/noticias/politica/2025/10/para-sindicatos-reforma-administrativa-e-cavalo-de-troia-para-aumentar-influencia-privada-no-servico-publico/




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