Realidade e a República de Gilead
A realidade e a República de Gilead
Foto: Hulu/ Divulgação
A realidade não se conforma apenas pelo dado objetivo, mas também como promessa e ameaça. Ela pressupõe, em síntese, uma interação entre o dado e o possível.
Assim, para que possamos nos situar em uma realidade concreta, é preciso identificar seus movimentos, suas contradições, e tentar perceber, tanto quanto possível, os cenários mais prováveis que podem se desdobrar a partir da nossa ação. Agir pressupõe, por isso, antecipar.
Nesse exercício, é preciso reconhecer fatos e lidar com evidências, de modo a reduzir nossa margem de erro. Toda antecipação envolve expectativas sobre as respostas prováveis dos demais atores sociais, o que acrescenta uma margem irredutível de incerteza sobre o futuro.
Uma das mudanças mais radicais nas disputas políticas contemporâneas deriva do fato de que a configuração da esfera pública passou a ser marcada por discursos proponentes da violência, pela reprodução de dogmas religiosos e pela reprodução, em escala nunca antes imaginável, de desinformação, preconceitos e intolerância.
O fenômeno é tão profundo que a grande maioria dos atores políticos atua sem compromisso com qualquer programa racional, o que se tornou possível por um conjunto de fatores, mas cuja base material é o “capitalismo de vigilância”, para usar o conceito de Shoshana Zuboff.
O que permitiu a mudança radical da esfera pública foi a emergência de um novo modo de produção, baseado no mercado de comportamentos futuros. Esse mercado é construído a partir do saque de informações pessoais via Internet sobre hábitos de consumo, gosto pessoal, desejo, inclinações político-ideológicas, frustrações, sentimentos, etc. de bilhões de pessoas por grandes empresas e se articula com a multiplicação de serviços e de espaços virtuais de interação “fechados” ao escrutínio público, onde a maioria passou a formar sua opinião.
O uso programado desses recursos para seleção de perfis influenciáveis na Internet e customização de mensagens, segundo características individuais, permitiu a oferta de produtos e ideias com um nível de sofisticação e eficiência sem precedentes. Desde então, a formação da opinião se cruzou com os algoritmos e tudo que era sólido se desmanchou no ar.
Fazer política em nosso mundo passou a exigir uma capacidade especial de trânsito nas redes sociais, uma sensibilidade radicalmente nova para a simbologia de gestos, palavras, entonações; uma nova compreensão a respeito da velocidade do fluxo de informações em rede e uma capacidade criadora que aproxima a intervenção política da arte.
Antes, as posições políticas apareciam nas interações face a face como discurso e nos veículos de imprensa na forma de texto, entrevista, debate, o que construía a imagem pública dos agentes e sinalizava caminhos. Agora, as posições políticas se traduzem em memes e stories, atingem públicos nunca antes envolvidos com política e o fazem a partir de códigos, linguagens e critérios totalmente diferentes.
No passado recente, campanhas eleitorais eram feitas com comícios, panfletagens e programas de rádio e TV, e era possível que uma liderança fizesse um pronunciamento em uma reunião reservada sem que milhões de pessoas fossem informadas sobre o que tinha sido dito.
Já há muitos anos, qualquer frase em qualquer evento, público ou privado, pode ser disseminada fora do seu contexto, o que permite a produção de conteúdos virais e a destruição de reputações. Com a emergência das técnicas de inteligência artificial de deep fake, esse quadro se agravará sobremaneira, e milhões de pessoas serão enganadas com imagens e discursos que nunca existiram.
Diante dessa base material, a ideia de que as pessoas tomam decisões políticas e definem seu voto com base em suas dificuldades econômicas, por exemplo, beira a ingenuidade. É óbvio que inflação, desemprego e precarização do trabalho produzem infelicidade e tensões de toda ordem, o que sugere um espaço amplo para mudanças políticas.
O problema é que é preciso que as pessoas identifiquem um caminho confiável para essa possibilidade de mudança. O ponto, então, é: o que pode fazer com que as pessoas confiem?
Nossa realidade e a República de Gilead
Quem leu a distopia O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), de Margareth Atwood, ou assistiu à série de mesmo nome, lembra que Gilead – nome de origem bíblica, que significa “monte do testemunho” – era o regime totalitário e teocrático que teve origem em um golpe de Estado perpetrado por extremistas que se autodenominaram “Filhos de Jacó”.
Na série, o golpe envolve o assassinato dos juízes da Suprema Corte e a atribuição dos crimes a grupos de radicais islâmicos. Diante da crise, as Forças Armadas assumem o controle do país, o que dá origem a uma repressão impiedosa aos opositores e a uma guerra civil.
Os novos governantes são chamados de “comandantes dos fiéis”, e as leis são o resultado de uma interpretação literal do Velho Testamento. A pena de morte, as amputações e a tortura são amplamente usadas, e as mulheres, salvo algumas privilegiadas, não podem trabalhar ou estudar, nem ler ou escrever, cabendo-lhes o dever da procriação.
O aborto e a homossexualidade são crimes punidos com a morte. Os comandantes, entretanto, não seguem as regras do regime. Na verdade, eles usam a fé cristã para legitimar seu domínio e assegurar seus privilégios.
Retomando o que assinalei no início, alguém entende que o “Conto da Aia” tem algo a ver com o Brasil e, mais precisamente, com as possibilidades trágicas presentes em nossa realidade? Em caso positivo, se você acha que há algo de grave emboscado no futuro do Brasil que pode lembrar aspectos da República de Gilead, o que cada um de nós pode fazer para impedi-la?
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe