Reaprender a ler
Reaprender a ler
Após inúmeras tentativas frustradas de avançar na leitura, o livro aberto na cabeceira da cama reclamou uma decisão: é preciso reaprender a ler!
Coluna da Appoa - 17 de dezembro de 2024
Volnei Antonio Dassoler (*)
Após inúmeras tentativas frustradas de avançar na leitura, o livro aberto, repousando sobre a sólida cômoda ao lado da cabeceira da cama, reclamou uma decisão: é preciso reaprender a ler!
Nos últimos tempos, em diferentes momentos, fui confrontado com uma condição inédita na minha relação com a leitura, experiência que sempre esteve associada à fruição prazerosa da imaginação e à busca por conhecimento: a dificuldade de manter a atenção. Relatos semelhantes, compartilhados em diversos contextos, refletem e confirmam a propagação desses efeitos em um número crescente de pessoas que enfrentam, além da falta de concentração, a incapacidade de reter o que foi lido (sem que isso se confunda com esquecimento) e a necessidade de um esforço considerável para sustentar o interesse durante o tempo prolongado exigido por certas leituras.
Esse fenômeno pode ser abordado de diversas perspectivas, algo comum quando se trata de uma realidade que é, ao mesmo tempo, individual e social, pois, como qualquer experiência humana, está sujeita às transformações históricas de cada época. Nos dias de hoje, o propósito da leitura – seja lúdico, informativo ou de aprofundamento em uma determinada área do saber – parece ter se precarizado, independentemente de o material a ser lido se tratar de uma produção jornalística, literária ou científica. As palavras se embaralham, os sentidos se diluem, e a mente vagueia errante e desconexa, ora vazia, ora confusa, tomada por um fluxo constante de imagens e pensamentos que se cruzam em uma dança sem ritmo e sem harmonia. Ligar uma palavra à outra, finalizar um parágrafo ou até mesmo uma página, lembrar o que foi lido, extrair um sentido, esboçar uma reflexão crítica… tudo isso tem se revelado uma tarefa desproporcionalmente árdua que parece estar além da capacidade do leitor e até do próprio desejo de se envolver com o texto.
Recomeçar a leitura, retornando ao início do texto com um novo esforço de concentração, nem sempre resulta em um empreendimento exitoso. Toda vez que o fracasso leva à desistência, ainda que temporária, a frustração se faz presente, especialmente para aqueles que, desde cedo, tiveram nos livros uma trincheira fortificada para fazer frente à angústia e uma companhia extraordinária, um farol que guiava suas buscas por utopias necessárias. Nesses momentos, perdido na relação de dependência recíproca que tem com o texto, soa estranho e descabido ao leitor celebrar como um feito raro a simples conquista de alcançar a última página de um livro.
Orientada pela lógica da linguagem, que abre portas para os mundos da imaginação e do conhecimento, a precarização da leitura – aqui destacada – afeta, entre outros vários aspectos, a capacidade humana de criar realidades. Essa capacidade universal concede, pela polissemia inerente à palavra e pela função poética que o discurso – nomeadamente o literário – comporta, certo grau de autoria ao leitor ou à leitora sobre aquilo que leem, justamente porque a significação é, em parte, um efeito gerado no próprio ato da leitura, que suscita em cada subjetividade emoções e sentimentos únicos.
Na atualidade dessa crise, é oportuno refletir sobre o ambiente das telas e sua contribuição para o estabelecimento desse cenário, inclusive pela substituição do dispositivo de leitura impresso – o livro – pelo recurso virtual – o chamado leitor digital. O modus operandi do mundo digital é regido pela aceleração do tempo e pela multiplicação de dados que comprometem as condições necessárias para o exercício do pensamento. Frequentemente, hoje, a prática da leitura consiste em passar rápida e superficialmente os olhos sobre o que está projetado diante de nós. Nessa dinâmica, é grande o risco de acontecer um curto-circuito do ponto de vista cognitivo e também uma diminuição da nossa capacidade de afetação pelo semelhante e da nossa sensibilidade em relação aos fatos do mundo, uma queda que ora se manifesta como falta de sentido, ora pelo efeito contrário, o excesso de sentido, fazendo com que perguntas fundamentais sobre as coisas que nos cercam muitas vezes nem cheguem a serem formuladas. As respostas são tantas e brotam de tantos lugares que sobra pouco ou nada de interesse pela potência das perguntas que podem advir das histórias cotidianas que falam dos sofrimentos de pessoas comuns, dos dilemas morais particularmente presentes nos romances e dramas amorosos, das sagas ambientadas em outras épocas e envolvendo diferentes problemáticas sociais, enfim, das belezas sensíveis – visíveis e invisíveis – que as narrativas ficcionais conseguem retratar.
Indiscutivelmente, o ato de ler foi profundamente afetado pelo processo de transformação que estamos vivendo, de maneira que, para muitos, a leitura se tornou uma experiência pouco estimulante. Para esses, a leitura não vai além dos atalhos oferecidos por resumos, manchetes e textos curtos; movidos por uma espécie de automatismo de (re)ação à miríade de letras que passam diante dos seus olhos, tais leitores e leitoras conseguem experimentar uma satisfação fugaz, mas não chegam a desenvolver um envolvimento mais efetivo. Por outro lado, aqueles que apreciam a leitura sentem que o cultivo dessa prática foi afetado pela concorrência crescente dos estímulos instantâneos e abreviados das atuais modalidades narrativas.
A contemporaneidade impõe um ideal de vida que se desenha pela redução do repertório linguístico como recurso de expressão e intervenção do sujeito e do mundo, enquanto, ao mesmo tempo, observamos a multiplicação ao infinito da imagem, cujo valor e importância acabam sendo comprometidos justamente por sua onipresença. Nesse contexto, é possível augurar o surgimento de duas consequências: a dificuldade de sustentar o desejo – ou a paixão – pela leitura e, nesse mesmo movimento, a restrição da função interpretativa e criadora como atributo do leitor, ou seja, o declínio da leitura como um recurso de vir a ser, de ser afetado pelas palavras e de vir a fazer coisas com elas e com a leitura.
(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
FONTE:
https://sul21.com.br/opiniao/2024/12/reaprender-a-ler-coluna-da-appoa/