Recompensa na educação
Os perigos da recompensa na educação
Educar não é treinar para provas ou condicionar por recompensas. A educação, como direito humano, deve garantir igualdade de acesso, permanência e qualidade
Por Gabriel Grabowski / Publicado em 2 de setembro de 2025

Para que serve a educação e a formação humana?
“Para educar humanos por humanos para uma
humanidade melhor”
(Mikhail Epstein)
Esta coluna se propõe a contribuir e ampliar a reflexão sobre o Programa de Reconhecimento da Educação Gaúcha, lançado pelo governo estadual em 13 de agosto, que ainda deve ser regulamentado e implementado a partir deste ano. A iniciativa, que não é novidade nem no âmbito internacional nem nacional, está gerando repercussões de diversas ordens.
Iniciamos retomando o que a nossa Constituição Federal de 1988, no Art. 205, estabelece como diretriz para a educação:
“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, e acrescenta, no Art. 206, que o “ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, entre outros.
Programa do Estado
O Programa de Reconhecimento estabelece reconhecimento e recompensa a profissionais da educação e estudantes pelo desempenho e frequência. Nosso propósito é destacar alguns questionamentos e dúvidas sobre o modelo de reconhecimento – baseado apenas no pagamento de valores em dinheiro – para professores, gestores e estudantes participarem dos exames e atingirem as metas.
Para profissionais da educação:
- 14º salário para gestores, professores e demais servidores, por resultados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb);
- Bonificação pela frequência escolar (Bônus 2025): gestores escolares serão valorizados de acordo com a frequência dos estudantes (75%). A premiação será proporcional aos resultados de cada escola.
Para estudantes:
- Premiação por desempenho no Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Rio Grande do Sul (Saers): alunos do 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio das escolas que fazem o Saeb. Os melhores colocados por turma no Saers receberão: 1º lugar: R$ 3.000; 2º lugar: R$ 2.000; 3º lugar: R$ 1.000.
- Premiação por participação no Saeb: sorteio de um aluno por turma – R$ 2.000, condicionado à participação no Simulado e à presença mínima de 80% da turma.
- Premiação por desempenho no Simulado Saeb (8 a 18 de setembro): alunos do 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio receberão: 1º lugar: R$ 2.000; 2º lugar: R$ 1.000; 3º lugar: R$ 500. Haverá sorteio de um aluno por turma – R$ 1.000, condicionado à participação no Simulado e à presença mínima de 80% da turma.
O Saeb é aplicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC). A avaliação tem como objetivo medir a qualidade do ensino oferecido nas escolas públicas e privadas de todo o país, por meio do desempenho dos estudantes em provas padronizadas.
Para o governador do Estado, “o objetivo não é reconhecer apenas quem alcançar 100% das metas, mas também valorizar todos que demonstrarem evolução nos resultados. Se a escola avançar, mesmo sem atingir a meta final, esse esforço será recompensado de forma proporcional. Queremos estimular a melhoria contínua, tanto no desempenho nas avaliações quanto na ampliação da frequência dos estudantes, porque cada passo à frente é fundamental para fortalecer a educação gaúcha”.
O CPERS-Sindicato, entidade representativa dos professores do RS, reagiu imediatamente e repudiou a lógica meritocrática anunciada pelo governo. Em nota, afirmou:
“Não é admissível remuneração diferenciada, como se sucesso ou insucesso fossem resultado apenas de qualidades e ações individuais. Meritocracia é competição em vez de cooperação; é a negação do reconhecimento da classe; é individualizar aquilo que se conquista coletiva e socialmente.”
Segundo a entidade, a política desconsidera a realidade das escolas e impõe aos professores e funcionários uma pressão desmedida, ignorando que a melhoria da educação exige investimentos estruturais, condições dignas de trabalho, redução da sobrecarga e apoio efetivo no ensino-aprendizagem — e não premiações pontuais e seletivas.
Interrogações pedagógicas
É pedagógico pagar e premiar para estudar e aprender? Incentivar os estudantes somente com dinheiro na aprendizagem é uma boa estratégia? Mercantilizar os processos, as relações e os resultados de aprendizagem contribui para a formação de pessoas sociais, colaborativas e solidárias?
A premiação não reforça a cultura da competição e da rejeição do adversário (colega)? Como medir o esforço e o desempenho de estudantes em condições sociais, econômicas, culturais e tecnológicas tão desiguais? Como avaliar o desenvolvimento e a aprendizagem de estudantes com deficiência?
A premiação acirra a competição entre os estudantes “nós e eles”, ou seja, entre os que aprendem e os que não aprendem, entre os inteligentes e não inteligentes? A arrogância e o ressentimento não emergem com a meritocracia potencializando a discórdia social?
A formação educacional não deveria equipar os estudantes somente para o mundo do trabalho, mas também preparar pessoas para que sejam seres humanos moralmente reflexivos e cidadãos democráticos efetivos, capazes de viver e deliberar sobre a vida e o bem comum? A severa pressão para desempenhar, realizar, alcançar o sucesso é uma das principais causas dos níveis exagerados de sofrimento emocional entre pessoas jovens, inclusive de famílias bastadas
Há recompensas que podem ser perigosas para as escolas e para os estudantes. Segundo os educadores António Nóvoa e Yara Cristina Alvim, aprender e estudar em comum é a melhor forma de promover uma vida em comum, uma sociedade convivial. Para isso, precisamos de uma educação pública que nos permita ir além do espaço que já habitamos, e chegar mais longe. Não há educação sem o desejo de poder ser outro alguém.
Premiar a Meritocracia
Há uma vasta e importante literatura sobre as premiações, lógicas de gestão empresarial e de valorização meritocrática no mundo do trabalho e na educação. Os EUA já praticaram há várias décadas e diversos estudos já produziram avaliações que revelaram seus limites pedagógicos, metas não atingidas e baixa eficácia no desenvolvimento e desempenho dos estudantes.
No Brasil, desde a década 1990, estas propostas de avaliações de desempenho e reconhecimentos aos segmentos escolares tem sido adotada e praticada por várias redes estaduais, municipais e instituições de ensino, tanto de educação básica como superior. Estados como Ceará, Minas Gerais, Espírito Santo e Alagoas, entre outros, bem como mais recentemente São Paulo e Paraná estão estabelecendo programas e metas na lógica mercantil e empresarial em instituições de ensino.
O Estado do RS decide adotar a estratégia de “reconhecer” esforços após vários anos que a educação da rede estadual apresenta indicadores altos de reprovação, abandono, diminuição de matriculas (ensino médio, EPT, EJA) e muita insatisfação dos professores, especialmente quanto a desvalorização da carreira docente no estado.
Visão especialistas
Muitos especialistas em educação e infância, entretanto, criticam estes mecanismos e programas de premiação, sejam no âmbito familiar ou em redes de ensino. Para eles, vincular a ideia de dinheiro e afazeres domésticos e escolares pode passar mensagens perversas para as crianças e adolescentes, gerando uma inversão de valores. “Se toda vez que uma criança tirar 10 ela ganhar determinada quantia, o que era fim, ou seja, aprender, se desenvolver cognitivamente e socialmente, acaba se tornando apenas um meio para outra finalidade – conseguir dinheiro”, explica Yves de La Taille, pesquisador e estudioso do desenvolvimento moral e professor do Instituto de Psicologia da USP.
Além disso, essa visão pode levar a criança ou o adolescente a crer que o dinheiro é a mediação de tudo e que as únicas coisas que valem a pena ser feitas são aquelas que são pagas. “Ficam de lado valores como a moral, a justiça, a solidariedade, que deveriam ser coisas importantes por si só, mas passam a ser caminhos para conseguir dinheiro. Por isso, acho muito perigoso esse “neoliberalismo” familiar e escolar, explica La Taille.
Para Cássia D’Aquino, especialista em Educação Financeira, dar prêmios conforme o desempenho escolar é outro erro grave. Quando se diz a uma criança que ela vai receber dinheiro se tirar tal nota, o que se está dizendo é que só interessa o resultado e não o processo. “Se ela vai colar, burlar as regras para atingir o objetivo não interessa desde que apareça com a melhor nota”, explica Cássia. Não existe presente maior, ela diz, para uma criança do que receber um abraço apertado ou dar orgulho aos pais. “É isso que ela deseja, que seu desempenho seja celebrado e não recompensado.”
Dentro desse panorama, a escola não deve replicar as práticas adotadas pela família como as mesadas e semanadas ou de empresas que distribuem bônus. Seu papel é ser mais um espaço para a discussão do assunto. “A escola pode mostrar como a economia está presente no nosso cotidiano, promovendo discussões que mostrem que a vida é cheia de escolhas, inclusive em relação ao dinheiro, e que eles devem escolher o mais pertinente aos seus objetivos e que sejam também capazes de arcar com as consequências dessa escolha”, afirma Cássia
Educação para além da polarização
Encontrar um caminho para além da política polarizada do nosso tempo exige levar em consideração o mérito. Entretanto, a meritocracia de hoje endureceu, tornando-se uma aristocracia hereditária. É o que diz Michael Sandel, respeitado filósofo de Harvard. Em sua obra A Tirania do Mérito: O que aconteceu com bem comum, ele faz uma análise reveladora da perversa injustiça de nossa sociedade, movida por míope e desonesta crença na noção de mérito. Oferece uma crítica profunda da meritocracia que deteriorou nosso espírito de comunidade e respeito mútuo.
Ao longo das últimas décadas a ideia do “merecimento” tornou-se o cerne do discurso público-privado. Dois aspectos precisam de nossa plena atenção: responsabilidade pessoal que tem acompanhado tentativas de dominar no Estado do bem-estar social e transferir os riscos e responsabilidades dos governos e empresas para os indivíduos e, a retórica da ascensão, a promessa de que as pessoas que trabalham e estudam duro e seguem as regras merecem ascender até onde seus talentos os levarem. Será?
Será que os méritos são somente individuais? A sociedade que estamos inseridos, as instituições que nos cuidam e educam (família, escolas, educadores, centros de cultura, meios de comunicação, etc) e as pessoas que estão conosco em todos os momentos da vida não são corresponsáveis pelas nossas aprendizagens, desenvolvimentos, talentos e conquistas? Eu não sou resultado de minhas relações, condições, circunstâncias, experiencias e convivências?
O comportamento humano é, também, o tema principal da obra O Animal Social, de Elliot e Joshua Aronson. Ao discutirem questões da atualidade, como preconceitos, cultura da violência e os efeitos da comunicação de massa, passando por temas como atração pessoal, bullying, política, propaganda, ética e polarização (relação “nós” e “eles”) revelam os padrões e as motivações que levam os seres humanos a agir de determinada forma.
Os estudos revelam que quando professores aplicaram dinâmicas competitivas em sala de aula, aqueles que erram quando são chamados, ou aqueles que levantam a mão para competir, tendem a se ressentir daqueles que acertam. Os estudantes bem-sucedidos, por sua vez, costumam menosprezar os estudantes que não acertam; consideram-nos estúpidos e pouco interessantes. Estes processos desestimulam a camaradagem e a compreensão e, tendem a criar inimizades.
Territórios da educação
Os territórios escolares e acadêmicos não podem serem transformados em espaços e relações de concorrência, disputa, ganhadores e perdedores, bem-sucedidos e malsucedidos, nós-e-eles, talentosos e improdutivos. A comunidade escolar e acadêmica é espaço público, coletivo e de aprendizagens colaborativas, juntos, em grupos de estudo e de pesquisa, de convivência saudável e feliz.
Pois, as aprendizagens mais significativas e progressos do desenvolvimento humano dos estudantes não é quantificável nem expresso em notas, metas ou estatísticas. Expressam-se nas relações humanas e na convivência com os outros, todos os outros, independente de qualquer talento, classe social ou gênero humano.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.
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