Relatos assédio e violações ao ECA
Alunos trancados em sala de aula e descaso com situações de abuso
Em 2022, a professora de história Alice Toldo foi contratada como “líder” pelo Instituto Alicerce. “Trabalhei lá por pouquíssimo tempo, mas na minha cabeça, parece mais. Chegava em casa chorando todos os dias, era uma rotina infernal”, revela.
Nos dois meses em que assumiu turmas de contraturno no município de Esteio, ela passou por duas escolas – sem receber qualquer treinamento do Instituto. “Existe um treinamento online, de um turno durante 5 dias. Seria um pré-requisito para que os líderes começassem a trabalhar nas escolas, mas isso não é verdade. Eu mesma entrei em sala sem passar por ele”, relata Alice. A licenciatura que ela cursava em História à época contribuiu para a sua atuação, mas o Alicerce contrata pessoas vinculadas a qualquer graduação.
O próprio termo de fomento firmado entre a prefeitura da Capital e o Alicerce descreve as atividades como “atendimento educacional de reforço”. Mas o Alicerce contrata como “líderes” (isto é, professores) pessoas com mais de 18 anos, formadas ou graduandas de qualquer curso superior. O programa Porto do Saber, que trouxe o Alicerce para Porto Alegre, prevê que o projeto atenda até 10.162 alunos da rede pública municipal.
“Vários colegas meus eram de áreas sem qualquer conexão com a educação. Meu coordenador cursava hotelaria”, exemplifica Alice. Bastou responder um formulário, fazer uma entrevista e uma prova de conhecimentos básicos de inglês, português e matemática para que ela fosse contratada.
Graduada em ciências sociais, Mariana Pahim também foi líder do Alicerce, de março a outubro de 2022. Ela passou pela prova online, preencheu o formulário e fez uma dinâmica de grupo virtual. “Foi um processo bastante diferente de qualquer seleção para trabalhar em uma escola que eu já tinha visto. Parecia que eles estavam mais preocupados com a opinião dos candidatos a respeito de opiniões polêmicas e com sua forma de se portar diante de qualquer conflito em sala de aula: a dinâmica envolvia falar como eu responderia caso os alunos perguntassem sobre questões como racismo e LGBTfobia”, explica Mari.
Para ela, a metodologia do Alicerce considera os alunos com necessidade de reforço como problemas a serem resolvidos, em vez de estudantes com dificuldades. Em sala de aula, os profissionais utilizam um aplicativo próprio do Alicerce, que disponibiliza exercícios com tempo cronometrado, que devem ser realizados pelos alunos. “A lógica era bem produtivista. Tínhamos que aplicar o plano das disciplinas naquele tempo exato, isso era muito cobrado. O plano de aula era enviado pela plataforma e tínhamos que tirar foto de todas as atividades para provar que foram realizadas”, conta Mari.
Tanto Alice quanto Mari recordam que era orientação dos coordenadores manter as crianças trancadas em sala de aula durante todo o turno. “A orientação era clara: manter os alunos dentro da sala, inclusive nos intervalos, e deixar ir ao banheiro só se estivessem muito apertados. Os coordenadores faziam um terrorismo quanto a isso. Como era um projeto de turno inverso, muitas escolas não tinham estrutura para receber os alunos no contraturno, nem se responsabilizar por eles. O resultado era centenas de crianças presas na sala, intrusas na própria escola”, relata Mari. Em Porto Alegre, o Alicerce prevê alugar imóveis próximos às escolas para realizar as atividades de contraturno, ou instalar uma sala nova na própria escola.
Para Alice, a desconexão entre o Instituto e as escolas trazia riscos para as próprias crianças. “Suspeitei que um dos meus alunos sofria algum tipo de abuso sexual em casa, a partir de vários indícios em sala de aula. Relatei essa situação para meu superior do Alicerce, buscando ajuda e dizendo que ia contatar o SOE [Serviço de Orientação Educacional], e ele disse que eu não deveria fazer isso porque não era problema do Alicerce, que eu deveria me contentar em aplicar a apostila”, lembra. Ela acabou buscando ajuda do corpo psicopedagógico da escola, mas foi repreendida por isso. “O que resultou em uma série de assédios (por parte da coordenação do Alicerce)”, denuncia.
As professoras relatam que tais situações não foram formalmente denunciadas porque elas não tinham registros para atestar as orientações dos coordenadores do instituto.
Representantes de professores criticam terceirização e buscam suspender contrato na justiça
O exercício ilegal da profissão é uma das preocupações da Associação dos Trabalhadores/as em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa). “É um crime: o poder público vai pagar alguém que não é da área para exercer ilegalmente a profissão de professor. Ninguém que vai a um médico aceita ser atendido por um estagiário, um professor… Mas esse governo não parece achar isso grave”, defende a diretora administrativa da Associação, professora Rosele Bruno de Souza.
O Conselho Universitário (Consuni) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) também emitiu uma moção de repúdio ao programa Porto do Saber, que gerou a contratação do Alicerce. Nesta segunda-feira (18), a Matinal mostrou que o Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa) solicitou uma investigação no Ministério Público (MP-RS) para apurar a irregularidade do edital: o contrato com o Alicerce foi firmado antes mesmo do prazo final do credenciamento de interessados. Outra irregularidade é que o Alicerce teve seu registro indeferido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), por não ter sede em Porto Alegre.
No termo de fomento firmado entre a prefeitura da Capital e o Instituto, uma cláusula prevê que os recursos da administração pública só podem ser usados para, dentre outros custos com infraestrutura, remunerar a equipe – incluindo despesas com impostos, FGTS, férias, décimo terceiro salário e encargos trabalhistas. Mas o folder de divulgação de vagas do Alicerce cita um pagamento de “R$ 2,3 mil mensais, podendo ser acrescido de vale transporte, contratação PJ”.
A mensagem, difundida em aplicativos e redes sociais, menciona ainda turnos de trabalho de “seis horas e meia, de segunda a sexta, dependendo da disponibilidade do candidato, pode fazer mais horas e receber mais”. A representação enviada para o MP-RS pelo Simpa alerta para a possibilidade do município acabar arcando com ações trabalhistas devido à “pejotização”: a atividade de trabalho desenvolvida com hora marcada, presencialmente e com subordinação – como é o caso no Alicerce – constitui vínculo trabalhista segundo a lei.
Além da representação enviada ao MP-RS pelo Simpa, a Atempa também deve judicializar a seleção do Alicerce para assumir o contraturno na capital. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, determina que a formação de docentes para atuar na educação básica deve ser feita a partir de cursos de licenciatura, ou de magistério para a educação infantil e ensino fundamental I.
O desvio da profissão é somado a outros problemas. Segundo Rosele Souza, diretora da Atempa, com a opção pela terceirização, o município acaba abrindo mão dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). “Quando o aluno está em turno integral na escola, o governo federal repassa um valor equivalente. Ao contratar o Alicerce, eles abrem mão desse recurso, que serviria para qualificar o atendimento aos alunos, já que o turno integral é feito com professores”, explica.
A professora Márcia Velho, diretora do Instituto de Letras e presidente do Consuni da UFRGS, também vê uma subutilização de recursos com essa terceirização. “Todas as escolas contam com espaço para laboratórios de aprendizagem, para reforço no contraturno. Em vez de investir em melhorias, optam por mandar os recursos para o setor privado. Porto Alegre ainda não cumpre os 25% que devem ser destinados à educação, e sequer usa totalmente os recursos do Fundeb”, alerta.
A preocupação com o desvio da função docente também motivou a publicação da moção de repúdio pelo Consuni. “Na Ufrgs, nossos alunos passam três semestres em estágios na licenciatura, só em preparação para entrar em sala de aula. Não se trata só de transmitir conhecimento, há toda uma dimensão do contexto escolar. Sequer fazemos ideia da metodologia de ensino usada pelo Alicerce. É antipedagógico, em todos os sentidos”, aponta Márcia Velho. “É uma política neoliberal e autoritária, lembrando que a Secretaria da Educação (Smed) não dá mais autonomia para a comunidade definir quem são os diretores das escolas, e insere agora esse projeto que serve ao mercado”, defende.
Alunos de diferentes faixas etárias devem ser alocados nas mesmas turmas
No plano de trabalho enviado para a Prefeitura, o Instituto Alicerce afirma que promove o protagonismo individual dos alunos e a personalização do ensino. Mas o projeto prevê alocar nas mesmas salas de aula alunos de 6 a 13 anos, de 9 a 15 anos e de 13 a 18 anos, de acordo com grupos etários definidos pela Osc.
Esse esquema já ocorre nas cidades onde o Alicerce atua, como Esteio. “A sala de aula não é homogênea. O Alicerce busca ter 20 alunos por sala. Eu tinha, na mesma sala, alunos do 5º ao 9º ano, em níveis de desenvolvimento sociocognitivo completamente diferentes. Uma pessoa só tem que aplicar atividades diferenciadas para elas o tempo inteiro. É óbvio que é impossível”, relata Alice Toldo.
Uma fonte que preferiu permanecer anônima por questões de segurança e atua na rede municipal de ensino em Esteio, onde Alice trabalhou, relata que o projeto segue da mesma forma no município. “A turma da manhã do Alicerce atende alunos do primeiro ao quarto ano, à tarde, do quinto ao nono. Antes, a própria administração tinha um projeto de incentivo à aprendizagem, feito com professores contratados. Em 2023, implantaram o Alicerce”, conta.
“A escola não consegue dar direcionamento pedagógico. A própria metodologia do Alicerce difere da aplicada nas aulas regulares, o que não contribui”, explica. Além da alta rotatividade – só em 2023, cinco líderes passaram pela escola que ela menciona –, ela confirma o tipo de situação relatada por Alice. “Seguindo as regras do programa, uma líder do Alicerce já chegou a dizer para os alunos que eles não deveriam levar questões para a direção, para que o Alicerce não tivesse problemas. Mas a comunidade, que é muito presente na escola, veio reclamar. Os pais deixam seus filhos aqui e entendem, claro, que a responsabilidade é da escola”.
Solicitamos um posicionamento à Smed, que em resposta, enviou apenas uma nota, relativa à representação movida pelo Simpa no MP. As demais questões sobre a atuação do Alicerce no município não foram respondidas.
A Secretaria de Educação de Esteio respondeu aos questionamentos da reportagem que há acompanhamento do Serviço de Orientação Escolar (SOE) e das equipes diretivas das unidades escolares ao projeto desenvolvido pelo Instituto Alicerce desde 2022. “Sobre denúncias de suposto assédio moral a profissionais, orientação para trancar alunos em sala, falta de treinamento e impedimento de repassar informações ao SOE, a secretária da pasta, Rosemary Kennedy, afirma que os oficineiros recebem capacitação do Instituto Alicerce e que todas as informações sobre frequência e desenvolvimento das turmas são repassadas ao SOE, garantindo acompanhamento constante do programa. Durante o período de descanso após o almoço, os alunos permanecem em sala sob supervisão, garantindo segurança e organização, conforme orientação do instituto”, declararam.
Solicitamos também um posicionamento ao Instituto Alicerce, que não se manifestou até o horário de fechamento desta matéria.
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