Reparação Histórica

Reparação Histórica

Reparação Histórica

 

25/01/2025

Reparação Histórica

 

Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

 

Reparação histórica é um conjunto de ações para combater a discriminação e promover a igualdade social. São adotadas para diminuir as injustiças cometidas no passado contra determinados grupos sociais.

Segundo Thomas Piketty, em seu livro “Uma Breve História da Igualdade”, lançado em 2021, “a herança escravocrata e colonial nos obriga a repensar a articulação entre justiça reparadora e justiça universalista em escala planetária”. Dadas as compensações financeiras pagas aos proprietários de escravizados (e não aos escravizados), suscita a questão das reparações.

Os escravizados representavam cerca de um terço da população no sul dos Estados Unidos de 1800 a 1860. Essa proporção passou de cerca de 50% para menos de 20% no Brasil entre 1750 e 1880. Passava de 80% nas ilhas escravocratas das Antilhas Britânicas e Francesas em 1780-1830 e chegava até 90% em Santo Domingo (Haiti) em 1790.

Quando a proporção chega a 80% ou 90% da população, os riscos de revoltas se tornam altíssimos, seja qual for o nível de ferocidade do aparelho repressivo em vigor. O caso do Haiti é emblemático, não apenas por se tratar da primeira abolição da Era Moderna, em seguida a uma revolta de escravizados vitoriosa, e da primeira independência conquistada por uma população negra contra uma potência europeia, mas também porque esse episódio termina com uma gigantesca dívida pública. Impediu o desenvolvimento do Haiti nos dois séculos seguintes.

A França aceitou reconhecer a independência do país, em 1825, e pôr fim às ameaças de invasão da ilha pelas tropas francesas, somente porque o governo haitiano assumiu o compromisso de pagar à França uma dívida de 150 milhões de francos-ouro. Destinava-se a indenizar os proprietários de escravizados pela perda de propriedade.

Esse tributo representava mais de 300% da renda nacional do Haiti, em 1825, ou seja, mais de três anos de sua produção! A dívida haitiana, impagável em curto prazo, foi objeto de múltiplas e caóticas renegociações. Foi basicamente quitada (capital e juros) com um depósito médio de cerca de 5% da renda nacional haitiana por ano, entre 1840 e 1915, embora com atrasos. Depois, com o apoio do governo francês, os bancos cederam o restante do financiamento aos Estados Unidos.

Os norte-americanos, então, ocuparam o Haiti entre 1915 e 1934 a fim de restabelecer a ordem e salvaguardar seus interesses financeiros. A dívida de 1825, transferida de um credor a outro, foi oficialmente extinta e quitada em definitivo no início dos anos 1950. Comprometeu o desenvolvimento do Haiti até hoje.

Substanciais compensações financeiras também foram pagas aos proprietários de escravizados após as abolições britânica e francesa de 1833 e 1848, respectivamente. A alegação era não ter como agir de outra maneira, porque a escravidão fora implementada dentro de um quadro legal [?!].

Retrospectivamente, uma abolição justa teria implicado uma compensação, sob a forma de um pedaço de terra ou uma pensão paga pelos antigos senhores, para os escravizados pelas décadas de maus-tratos e trabalho não remunerado (e não para os senhores), financiada por todos os enriquecidos, direta ou indiretamente, devido à escravidão, ou seja, por todos os proprietários abastados da época. Mas as elites dominantes exigiram o respeito absoluto ao direito de propriedade privada de outros seres humanos por causa da etnia [?!].

A escravidão desempenhou papel central no desenvolvimento dos Estados Unidos. Em sua criação, eram uma república escravocrata.

Uma proposta de reparação foi transferir a maior parte das terras do Oeste para os escravocratas. Assim, eles se tornariam os grandes proprietários latifundiários ,nos novos territórios, mandando os escravizados de volta para a África [?!].

Sem acordo, houve o movimento de separação de 11 estados do Sul dos Estados Unidos da União, resultante na Guerra de Secessão, também conhecida como Guerra Civil Americana, entre 1861 e 1865. Foi um conflito armado entre os estados do Norte e do Sul, antagônicos diante a escravidão e a expansão territorial, com mais de 600 mil mortos, equivale ao total acumulado de mortos em todos os outros conflitos nos quais os Estados Unidos se envolveram no século seguinte.

Depois, os nortistas não consideraram os negros preparados para se tornar cidadãos norte-americanos – e menos ainda proprietários. Deixaram os brancos retomarem o controle do Sul e imporem um rigoroso sistema de segregação racial, o qual lhes permitiu conservar o poder por mais um século, até 1965.

Após os estragos causados pelos secessionistas, durante a Guerra Civil, seria incongruente pagar uma compensação aos proprietários de escravizados. Nos últimos meses da guerra, em janeiro de 1865, os nortistas prometeram aos escravizados emancipados, após a vitória, eles receberiam “uma mula e quarenta acres de terras” (cerca de dezesseis hectares). Até hoje os descendentes esperam.

No Brasil, com a abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, pela a promulgação da Lei Áurea, não houve indenização aos trabalhadores escravizados. Pelo contrário, o Estado brasileiro não implementou políticas públicas de reparação ou assistência aos ex-escravizados. Eles foram libertos sem terra, trabalho ou condições para reconstruírem suas vidas, em uma sociedade estruturalmente racista. Tiveram de se submeter aos antigos senhores de escravos ao entregar trabalho em troca do nível mínimo de sobrevivência.

Em compensação, os ex-proprietários de escravos exigiram indenizações pela “perda de seus bens”, isto é, os escravizados tratados como propriedade. No entanto, a Lei Áurea não incluiu nenhuma compensação financeira para os senhores de escravos, apesar das intensas pressões por parte das elites econômicas e políticas da época.

Isso gerou insatisfação entre a aristocracia rural. Foi um dos fatores para o desgaste da Monarquia e a Proclamação da República, no ano seguinte, em 1889.

Desde então, para manter a ordem estabelecida pela classe dominante, em defesa do direito de propriedade, houve 16 presidentes militares! O país passou por duas ditaduras militares (1930-1945 e 1964-1984) e várias intervenções militares diretas (1930, 1937, 1945, 1964) ou indiretas (1955 e 2022) na política brasileira. Para lhes servir, o serviço militar obrigatório no Brasil foi instituído formalmente com a promulgação da Lei nº 1.860, em 4 de janeiro de 1908. Obrigou todos os homens jovens brasileiros a prestarem serviço militar!

serviço militar obrigatório inclui uma remuneração simbólica, geralmente muito inferior à evolução do mercado de trabalho, sendo considerada insuficiente para sustentar os recrutas. Esse aspecto levanta questionamentos éticos sobre a exploração do trabalho juvenil em um contexto de obrigatoriedade estatal.

Em outras nações, aboliram a escravidão, como o Haiti e as colônias britânicas, houve indenizações, mas quase sempre destinadas aos proprietários de escravos, não às vítimas da escravidão. No caso do Brasil, a ausência de qualquer reparação aos ex-escravizados reforçou a marginalização econômica e social da população negra, cujos efeitos se perpetuam até hoje.

Nas sociedades coloniais pós-escravocratas, os mecanismos de desigualdade tomam outras formas, em particular por meio de um sistema jurídico, social, tributário e educacional extremamente discriminatório. Os proprietários aceitavam progressivamente reduzir a prática dos castigos corporais, comum durante a escravidão, mas com a condição de as autoridades judiciais os ajudarem a impor sanções financeiras de modo a produzir os mesmos efeitos de submissão.

Existe na prática um continuum entre a escravidão seguida à risca e as diferentes formas de trabalho mais ou menos forçado praticado sob forma legal. Por exemplo, o custo da viagem da migração para outras regiões e de alimentação é descontado por anos do salário de trabalhadores em condições similares à escravidão.

No sul dos Estados Unidos, a proibição às crianças negras de frequentarem as mesmas escolas das brancas definia o regime de discriminação racial legal vigente até 1965. No Brasil, a chamada Lei de Cotas só foi aprovada em 2012 no governo social-desenvolvimentista. Com ela, todas as instituições de ensino superior federais do país precisaram, obrigatoriamente, reservar parte de suas vagas para alunos oriundos de escolas públicas, de baixa renda, e negros, pardos e índios. O acesso à educação de qualidade e o microempreendimento são vistos como o caminho para a reparação e a mobilidade social dos descendentes dos escravos.

 

 

*Professor Titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Ex vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007). Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em: https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/.

Foto de capa: Matheus Pigozzi/Agência Pública

 

FONTE:

https://red.org.br/noticia/reparacao-historica/?fbclid=IwY2xjawIDg-JleHRuA2FlbQIxMQABHYgRXruNi676oVJ55Pnh_sG-xGoeMfq
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