Reprovar, reprovar

Reprovar, reprovar

Para ensinar, não é necessário reprovar, reprovar e reprovar

Se bem organizados, os ciclos de aprendizagem garantem a construção de saberes. Vale analisar o que ocorre na prática

Para ensinar, não é necessário reprovar, reprovar e reprovar. Ilustração: Benett

Atualmente, no Brasil, 24 capitais, 16 estados e o Distrito Federal adotam em suas redes de ensino algum tipo de progressão continuada na passagem entre uma série e outra. O que é isso? É aquele sistema aplicado em redes que não têm reprovação escolar anual. Com frequência, a progressão é associada ao sucateamento da Educação pública e à ideia de que, atualmente, as crianças não precisam se dedicar, pois serão aprovadas de forma automática. Mas o que está por trás dessa proposta, adotada na maioria das redes?

Para falar sobre progressão, primeiro é preciso entender o que é o sistema seriado. Ele tem como fundamento a ideia de o currículo escolar ser pensado segundo um fluxo determinado, de tal maneira que o estudante precisa ser aprovado em um ano letivo para cursar o seguinte. Esse modelo dá papel central à avaliação, uma vez que ela autoriza o aluno a progredir ou não nos estudos, podendo ficar retido.

Altas taxas de reprovação e evasão começaram a ser observadas no Brasil e iniciou-se uma discussão sobre novas formas de organizar a vida escolar das crianças, sem impedi-las de avançar. Surgiu então a progressão continuada, vista como solução à repetência. O modelo começou a ser implantado em diferentes anos em cada rede.

A ideia era que ele fosse aliado a uma nova organização do ensino, não mais pensado em séries, mas em ciclos de aprendizagem. Em vez de criar unidades divididas em anos letivos, conteúdo, turmas e professores teriam de ser reorganizados em um período maior de ensino e aprendizagem, de dois, três ou quatro anos. A proposta respeitaria o tempo de desenvolvimento de cada estudante, uma vez que indivíduos com idades semelhantes não necessariamente assimilam a mesma quantidade de informação em um ano. Na passagem de um ciclo para outro, poderia ocorrer a aprovação ou a reprovação, de acordo com o desempenho.

É comum entender a progressão continuada como sinônimo dos ciclos de aprendizagem, já que as duas propostas costumam ser implantadas em conjunto pelas secretarias de Educação. E é aí que reside o problema. Em alguns casos, o que recebe o nome de ciclos de aprendizagem nada mais é do que a reunião de algumas séries em grupos distintos, com aprovação automática entre elas. É importante, então, diferenciar as duas propostas: a progressão sugere um processo educativo contínuo e se contrapõe às reprovações, enquanto os ciclos dizem respeito à maneira de organizar o ensino, contrapondo-se ao tradicional sistema seriado. Para que os ciclos funcionem, é preciso haver uma reestruturação completa do currículo escolar, fazendo com que os processos educativos atendam às demandas de aprendizagem dos alunos em cada etapa maior.

Diferentes modelos de organização

No Brasil, encontramos sistemas que aplicam o ciclo somente na fase da alfabetização inicial (do 1º ao 3º ano), outros organizam todo o Ensino Fundamental em três blocos, muitos têm os anos iniciais em ciclos e os finais em séries, e outros contam com características específicas, como classes multisseriadas. Em geral, na troca entre um ciclo e outro, é adotada a reprovação. Atualmente, 11 redes estaduais e as municipais das capitais Rio de Janeiro e Rio Branco não adotam qualquer forma de progressão em suas escolas, ainda que a Rio Branco tenha regras diferenciadas para as escolas rurais (veja no mapa abaixo quais redes têm sistema de ciclos em uma ou mais etapas de ensino).

Redes que adotam os ciclos no período de alfabetização argumentam que cada criança tem o seu tempo de aprendizagem da leitura e da escrita, e condicioná-lo somente a um ano letivo seria injusto, visto que não aprender a ler e escrever impacta diretamente no futuro escolar. Quando se trata de idades menores, um ano faz bastante diferença no desenvolvimento. Se o aluno fica retido no 1º ano, perde a oportunidade de progredir com colegas da mesma faixa etária, o que é prejudicial especialmente nesta etapa.

Organização das redes
Estados com algum sistema de progressão

Estados com algum sistema de progressão

 

Críticas e dúvidas sobre a progressão

Mesmo sendo adotados em tantos lugares, os ciclos e a progressão continuada ainda são mal interpretados pela sociedade, inclusive por professores e membros das secretarias de Educação. A principal resistência está na ideia de que o aluno pode avançar de ano mesmo sem ter atingido as expectativas de aprendizagem de sua série. E que o melhor seria retê-lo para que tenha a oportunidade de sanar as lacunas e avançar.

O argumento não se sustenta quando analisamos o que ocorre com quem é reprovado. Em geral, estudantes que passam por isso ficam desmotivados e perdem o interesse pela escola. Voltar para a sala e rever um conteúdo com o qual ele já esteve em contato no ano anterior - da mesma maneira, muitas vezes com o mesmo material didático e sendo tratado como se estivesse vendo tudo pela primeira vez - não colabora para despertar o interesse. É comum que alunos repetentes diminuam ainda mais o rendimento, podendo ser reprovados mais de uma vez e desistir dos estudos.

Se, de fato, as crianças aprendem mais nos sistemas seriados, então a repetência não seria necessária, pois todos conseguiriam avançar e ter bons resultados. As taxas de reprovação em sistemas seriados mostram que não é bem assim. Em vários estados brasileiros que não adotam progressão, a reprovação nos anos iniciais ultrapassa os 10%, e nos anos finais chega a quase 20%.

O baixo rendimento escolar não é um problema solucionável com este ou aquele sistema educacional, mas reflexo da velha lógica de avaliar e dar notas, sem rever a prática pedagógica. No caso das redes sem reprovação, o problema aparece com outra roupagem: os alunos continuam avançando, mesmo com baixo rendimento, e concluem o Ensino Fundamental sem aprender. Se as escolas, sejam elas seriadas ou organizadas em ciclos, não prestarem atenção no estudante com dificuldades de aprendizagem, não há como reverter o quadro atual.

Não deve ser aceitável que uma criança chegue ao final do 5º ano com defasagens acadêmicas de anos muito anteriores. A equipe docente e a gestão escolar precisam acompanhar os estudantes de perto e identificar potencialidades e dificuldades deles ao longo da caminhada escolar. Assim, poderão lançar mão de estratégias, como programas de reforço no contraturno, caso haja necessidade de suprir defasagens de ensino. Essas práticas não podem se limitar a ações isoladas de um educador, sendo obrigação de toda a escola.

Com todas as particularidades dos sistemas de ensino, é difícil encontrar uma fórmula ideal de organização do conteúdo ou do fluxo - capaz de garantir a aprendizagem de todos. Embora os ciclos se mostrem como uma proposta mais adequada, temos, no Brasil, sistemas que aplicam a reprovação em todas as séries e conseguem alcançar ou superar as metas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), com baixos índices de reprovação e de evasão escolar.

Do mesmo modo, não é difícil encontrar redes que dizem adotar os ciclos, mas não garantem a aprendizagem. Se o modelo é colocado em prática sem uma reforma do currículo, formação adequada dos professores e acompanhamento e apoio pedagógico aos alunos, a proposta se restringe a um agrupamento de séries.

Pensando a Educação como direito, faz mais sentido que o país adote sistemas de progressão continuada e ciclos de aprendizagem bem estruturados, uma vez que essa proposta desonera o estudante da culpa de não ter atingido o patamar esperado para avançar de ano e transfere o problema a quem deveria ter condições de solucioná-lo: a escola e a rede de ensino. Pensar a escola como um ambiente democrático é ter em mente a heterogeneidade de saberes presentes na sala de aula. Os professores e a sociedade precisam estar preparados para lidar com essa realidade se quisermos que a Educação continue sendo, cada vez mais, acessível a todos.

 

http://revistaescola.abril.com.br/formacao/ensinar-nao-necessario-reprovar-reprovar-reprovar-820463.shtml?page=0 




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