Retomada das aulas e reprovação
A retomada das aulas no Brasil e a reprovação de alunos
Inicio esse texto reiterando uma posição contrária a quaisquer tipos de aferição de notas e de reprovação de alunos, em face da retomada das aulas da Educação Básica no Brasil, ainda no ano de 2020. Posiciono-me dessa maneira por entender que, em tempos de pandemia, o ideal não está no domínio do possível. Não podemos entender esse semestre letivo de 2020 como um semestre igual aos demais.
Recente reportagem da G1 -Educação (10/08/20) aponta que alunos da rede pública têm debatido reprovar, propositalmente, nesse ano letivo em curso, com o argumento de “aprender de verdade em 2021” ( ver matéria em https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/08/10/coronavirus-alunos-da-rede-publica-planejam-reprovar-de-proposito-para-aprender-de-verdade-em-2021.ghtml ). Um debate que nos provoca e que nos impulsiona a repensarmos a avaliação!
Por absenteísmo ou baixo desempenho escolar , uma avaliação com notas ou conceitos, que por ventura considere os estudos no ano letivo de 2020, será contraproducente, reforçará desigualdades sociais e virá na contramão dos esforços de profissionais e pesquisadores em Educação que visam a um acolhimento dos estudantes brasileiros, sem exigências excessivas que demandem recuperar uma aprendizagem prevista para um ano letivo que já está comprometido pela quarentena , tanto na carga-horária prevista na LDB/96, quanto na organização curricular das unidades escolares e seus conteúdos .
Entendam que não abdico das avaliações desses alunos. O que defendo e problematizo, nesse texto, é o sentido de avaliação com o qual operaremos ao retomarmos essas aulas (lembrando que algumas escolas já estavam em aula remota, desde o 1º semestre). A ideia ou defesa que trago é a de darmos feedbacks aos alunos de educação básica sem registrarmos notas ou conceitos que constem no registro escolar, acerca dos meses em que estivermos em ensino remoto. Retomando-se a aula presencial, diária, para todos os alunos, sem escalonamentos, retomaríamos, por conseguinte, as avaliações com nota.
Em minhas últimas discussões e/ou reflexões, venho endossando essa posição por considerar problemático as decisões de diversos munícipios e estados brasileiros para retomada das aulas presenciais da rede pública e particular, em meio à pandemia. O governo do Distrito Federal, por exemplo, no mês passado, no dia 13 de julho, informou a autorização para retomada das aulas presenciais nas escolas, inclusive alertando/ameaçando sobre uma possível reprovação de alunos por falta.
Embora seja contrário ao retorno das aulas presenciais nas escolas, ainda nesse semestre de 2020, me abstenho de fazer análises ou juízos de valor acerca dessas medidas governamentais em prol das aulas nas escolas , para me ater apenas às reflexões sobre os princípios e propósitos pedagógicos para a retomada das aulas de forma remota ou híbrida ( parte remota e parte presencial com escalonamentos).
Consideremos, pois, diversos aspectos relacionados ao estado psicológico e/ou possíveis transtornos mentais dos alunos que poderão influenciar em um desempenho ruim nos resultados das avaliações com nota. Os estudantes estão em processo de quarentena há alguns meses, distantes de parentes e amigos, privado de liberdades diversas, bem como testemunhando o adoecimento e morte de pessoas próximas.
Consideremos, igualmente, a assimetria de acesso de muitos dos nossos estudantes quando refletimos sobre o grande quantitativo daqueles que vivem em condições abaixo da linha da pobreza, em locais aglomerados e de difícil acesso, onde não há conectividade. E mesmo que o aluno possua uma devida estrutura para conectividade, dependendo de como se dá o momento de aprendizagem remota em sua casa, sem tranquilidade, com interrupções de barulho dos parentes e etc. podemos somar esse cenário ao conjunto de percalços ou dificuldades existentes no processo de ensino remoto.
Ao apontar algumas dessas dificuldades no contexto do ensino a distância e remoto, não desqualifico ou desconsidero a importância dessa modalidade para o processo de ensino-aprendizagem nesse ano letivo de 2020, muito menos deixo de reconhecer a emergência do uso das novas tecnologias e suas linguagens no interior das práticas curriculares (independentemente do contexto da pandemia do coronavírus).
Além disso, compreendo que a existência de avaliação com notas tem certo peso para requerer dos alunos mais responsabilidade com o processo de aprendizagem e uma postura deles para “levar a sério” a aula em curso e apresentar resultados mínimos acerca dos conteúdos e das expectativas de aprendizagem previstos. Contudo, não estamos renunciando à avaliação, mas sim questionamos que tipo de avaliação proporemos para esse semestre comprometido pela quarentena (e os propósitos dela).
Propomos avaliar sem registrar ou aferição de notas, com foco em um “feedback” acerca do que se está aprendendo, um feedback subjetivo, descritivo-argumentativo. Isso porque devemos considerar a ausência dos alunos que poderão apresentar dificuldades com acesso à internet ou com internet e conexão que oscila, bem como por conta de um possível baixo desempenho de muitos estudantes, diante da ausência de condições físicas e mentais substanciais para uma aula.
Não podemos desconsiderar as lacunas que a ausência da escola e da aula presencial deixa em no processo formativo desses alunos. Tanto no plano do afeto, da sociointeração, dos momentos de “tirada de dúvidas” durante a fala ou explanação do professor, dos trabalhos em grupo, das aulas de Educação Física e artes, quanto nos momentos informais na “bagunça do recreio” ou das “brincadeiras fora de hora” durante as aulas. O contato com o professor nesse processo de relação do aluno com o conhecimento escolar/científico é essencial (com as devidas exceções). O ato de ensinar, a docência, é um ato de um profissional. Ser professor implica em possuir formação inicial e continuada para lidar com o ensino. Por mais bem escolarizados que sejam os pais e mães de nossos estudantes, eles não são profissionais da educação.
É preciso dialogar com os gestores, tenho em vista a dificuldade que também se apresenta para eles no que concerne à tomada de decisões sem imediatismos. Quais os benefícios possíveis a partir de uma retomada remota e/ou híbrida? Qual o objetivo, afinal, de retomar as aulas em meio à pandemia? Dar conta de uma carga-horária prevista ou reconhecer a importância de dar continuidade ao processo formativo dos estudantes? Temos estrutura para todos aprenderem imersos aos estudos em ambientes virtuais? Como está sendo a preparação e o apoio aos professores para se adequarem aos ambientes virtuais, tanto em termos de domínio das ferramentas, técnicas, quanto no que se refere às ressignificações das linguagens no trabalho didático com conteúdos de suas áreas do conhecimento? Quem garante que os alunos com câmera e áudio desligado estão “presentes” na aula? Como faremos uma avaliação de forma remota, sem que os alunos acessem respostas no google ou peçam ajuda dos pais, em trabalhos a serem feitos de forma individual e sem consulta?
A proposta ora defendida, nossa aposta político-pedagógica, leva em consideração uma retomada exclusivamente remota, considerando os limites dessa modalidade e, sobretudo, enfocado o ensino como via de formação, caminho para aquisição de uma herança cultural, de estímulo a reflexões diversas e do pensar crítico em uma relação estreita com o conhecimento escolar/científico. Um processo formativo não atrelado a avaliações conceituais ou com aferição de quaisquer tipos de notas. Esta é uma proposta provisória em face da contingência, do emergencial.
Não existem receitas de bolo para esse momento, pois é difícil vislumbrar aulas e unidades escolares sem notas registradas. Contudo é preciso força de vontade, iniciativa e criatividade para pensarmos essas retomadas de aula de uma forma menos danosa e menos excludente possível. A existência de diferenças, de cenários plurais ou de uma maioria que tem acesso digital, não pode reforçar desigualdades sociais que distanciem a realidade de uma educação de qualidade para todos e do enfrentamento ao elitismo ou privilégios para o acesso ao conhecimento.
Luciano Freitas Filho, doutorando em Educação pela UFRJ. Professor do Instituto Federal da Bahia/IFBA e membro da Comissão Dom Helder Câmara de Direitos Humanos da UFPE