Sem celular escola revive brincadeiras

Sem celular escola revive brincadeiras

Proibição do celular nas escolas revive brincadeiras antigas entre as crianças: "Não faz falta"

Pular corda, praticar esportes, brincar com bambolê e inventar jogos são práticas que ganharam força nos últimos meses

Isabella Sander - Repórter
Mateus Bruxel / Agencia RBS
Da esquerda para a direita: Eduardo, Matheus, Arthur, Bento, Felipe e Rafael criaram um jogo de cartas próprio. Mateus Bruxel / Agencia RBS

 

 

Jogos inventados, amarelinha, bambolê e idas à biblioteca são algumas das práticas que têm reaparecido nas escolas após a proibição do uso de celulares e outros dispositivos eletrônicos.  O tédio no tempo que, antes, era consumido por telas, virou ócio criativo, e os recreios têm sido mais barulhentos, movimentados e saudáveis para as crianças.

Eduardo Silva Pinto e seus amigos resolveram inventar o próprio jogo de cartas, com textos e desenhos feitos por eles, em vez de comprar um pronto. Os adolescentes de 12 anos estão no 7° ano do Colégio Anchieta, no bairro Três Figueiras, em Porto Alegre, e, apesar de já não gostarem muito de usar o celular na escola antes, sentiram o impacto da proibição neste ano.

— A ideia surgiu por causa do tédio que a gente estava tendo no recreio, porque a gente não fazia nada. Aí, a gente começou a fazer cartas e a colocar cards que tinham "HP", ataque, pra começar a fazer uma batalha. Tá sendo legal. A gente joga todo recreio. Não me sinto mais entediado como antes — conta.

O menino acha que as partidas ajudam no desempenho em matemática, já que cada carta possui pontos em aspectos como fraqueza e ataque, além do percentual de raridade. Felipe Machado Farina concorda e acha que o tempo tem sido melhor investido do que quando o celular era permitido.

— Eu ficava muito parado, não gostava. Eu não sei por que, mas, quando eu usava o celular, o tempo passava muito rápido — comenta o estudante.

 

 

Entre as alunas do 6° ano, tem de tudo: algumas meninas que se encantaram pelo vôlei, outras que se engajaram em partidas intensas de UNO, um grupo que se refugia na biblioteca para ler e fugir do barulho e os meninos que aproveitam o tempo para trocar figurinhas para completar seus álbuns.

— Eu acho que começamos a jogar mais vôlei porque não podia usar o celular, aí a gente começou a praticar mais esportes, achar coisas para fazer no recreio — conta Rafaela Arnhold Soares, 11 anos.

 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Isabela, Ana Beatriz e Rafaela se apaixonaram por jogar vôlei.
Mateus Bruxel / Agencia RBS

 

A demanda pelas quadras foi tanta, que o colégio precisou organizar um revezamento entre as turmas. Quando não jogam, Rafaela e as amigas, Isabela Barichello de Lima e Ana Beatriz Jaeger Porto, ficam conversando. O trio acha que a comunicação e as interações são melhores sem o celular por perto.

A biblioteca ganhou mais adeptos, que buscam lá um refúgio para o barulho do recreio.

— Na biblioteca tem gente que pinta, ou coisa assim, e a gente pode ficar sem a gritaria que tem lá embaixo. Às vezes, a gente tem a vontade de ficar o tempo todo lá, só lendo juntos — diz Helena Amaral, 11 anos.

A menina e seus amigos, que cursam o 6º ano, não tinham acesso ao celular até o ano passado, pois o Anchieta já tinha como regra não permitir o aparelho entre crianças até o 5º ano. Isso mudaria neste ano, mas, com a lei, os dispositivos seguem guardados na mochila – mas não têm feito falta.

 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Helena, Betina, Antônio e Cecília preferem ir para a biblioteca no recreio para
fugir do barulho. 
Mateus Bruxel / Agencia RBS

 

 

— Eu acho que não faz falta, porque a gente pode trocar o celular por diálogo, por ir à biblioteca, ler livros — avalia Antônio da Rosa Wünderlic, 11 anos.

Benjamin Dutra e Vicente Branchi, 11 anos, adoram colecionar figurinhas em álbuns de campeonatos de futebol. No recreio, a diversão é se juntar e trocar as que vieram repetidas. Agora, estão completando o do Mundial de Clubes.

— Eu comecei faz um mês e falta pouquinho pra eu completar. Sempre gostei de colecionar coisas, porque, no futuro, eu vou poder me lembrar das coisas do passado — explica Vicente.

 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Benjamin e Vicente trocam figurinhas para completar álbuns de campeonatos
de futebol. 
Mateus Bruxel / Agencia RBS

 

 

O hábito serve para conhecer times e fazer amigos. Além do intervalo, a gurizada às vezes vai a encontros de troca de figurinha, como os que ocorrem no Viva Open Mall e em uma banca de revistas na Rua José de Alencar.

— A gente combina de se encontrar em um lugar, todo mundo leva as figurinhas e a gente vai trocando. Tem bancas específicas que, todo domingo às 16h, vai um monte de gente lá pra trocar — descreve Benjamin.

Conhecido pela brincadeira que “desfaz amizades”, devido a cartas como o +4, que faz o oponente ter que rechear o baralho em suas mãos, o jogo Uno fez o contrário, no caso de um grupo de meninas do 6º ano: as uniu ainda mais para realizarem partidas épicas durante os recreios.

 

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Helena Ubatuba, Olivia, Marina, Giovanna e Helena Pilotto se aproximaram
jogando Uno. 
Mateus Bruxel / Agencia RBS

 

— Acho que o Uno ajudou muito a gente a se adaptar e fazer novas amigas aqui neste prédio — opina Marina Pilotto, 11 anos, se referindo à troca de prédio que acontece quando os alunos saem dos Anos Iniciais do Fundamental e iniciam os Anos Finais.

As estudantes temiam que, com a liberação para o uso de celular no 6º ano, as crianças que não tivessem o aparelho ficassem excluídas. Por isso, o veto foi um alívio. Mas, para Helena Ubatuba, 11 anos, o início foi difícil:

— Eu estava muito a fim de usar o celular, queria muito poder usar na escola, e daí deu essa lei. Eu concordo com essa lei, mas foi muito difícil no começo. Depois, a gente começou a jogar Uno e foi uma coisa muito legal.

A volta de brincadeiras antigas

Na Escola Municipal Jean Piaget, no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, as professoras também perceberam uma demanda maior pelo uso das quadras esportivas e a volta do interesse no bambolê. Outras práticas populares são pintar livros de colorir, como os amados Bobbie Goods, pular corda – o que reúne meninos e meninas – e pular amarelinha.

Nathalia Padrino Farfán, oito anos, nunca teve celular. No recreio, conta que, junto com os amigos, o tempo passa rápido entre as brincadeiras que se multiplicam a cada intervalo.

— A gente monta brincadeiras novas e é divertido — resume a pequena.

Entre os jogos preferidos da menina está o pega-pega zumbi:

— É assim: quem é o zumbi corre atrás de quem não é e tenta pegar — conta.

Ela também brinca de esconde-esconde, “o chão é lava” e pega-pega.

 

Jefferson Botega / Agencia RBS
Nathalia (à esquerda) adora criar brincadeiras novas.
Jefferson Botega / Agencia RBS

 

Já Nayane Paim da Silva, oito anos, conta que, mesmo tendo um celular em casa, "é mais legal inventar brincadeira". Ela joga amarelinha com o irmão, pula corda e brinca de telefone sem fio. A experiência, segundo Nayane, é melhor do que ficar sozinha mexendo no celular.

— Antes eu não tinha telefone, agora tenho um pouco, mas não posso trazer pra escola — completa a criança.

 

Jefferson Botega / Agencia RBS
Nayane é fã de pular amarelinha. 
Jefferson Botega / Agencia RBS

 

Erick Castro Santos, nove anos, se apresenta como o “melhor youtuber do mundo”. Ele gosta de gravar vídeos de desafios e construir casas com massinha e madeira, mas reconhece que, no ambiente escolar, é melhor deixar o celular de lado.

O aluno diz ter estranhado o fato de que, antes, os adolescentes podiam usar celulares e os menores não, mas aproveita o tempo longe da tela para se movimentar:

— Gosto mais de brincar de pega-pega, porque é pra correr e fazer exercício. Eu gosto de correr pra me exercitar e pra não ficar tão parado. Quando estou entediado, chamo alguém pra brincar, mesmo se eu não conheço. Faço pra pessoa não ficar tão parada como eu.

Jefferson Botega / Agencia RBS
Erick prefere fazer atividades que o movimentem do que ficar no
celular. 
Jefferson Botega / Agencia RBS

 

Para Erick, a diferença entre o recreio e a sala de aula é clara:

— Quando eu me exercito, eu fico mais concentrado. O recreio é pra brincar e na sala de aula é pra aprender e estudar — sintetiza, reconhecendo que o tempo sem celular melhora até a atenção nas aulas.

Lorenzo de Lima Silveira, nove anos, também gosta das brincadeiras tradicionais. Cabo de guerra e brinquedos de peças de madeira estão entre suas atividades preferidas.

 

Jefferson Botega / Agencia RBS
Lorenzo gosta de brincadeiras tradicionais e tem horário limitado para o
uso do celular. 
Jefferson Botega / Agencia RBS

 

— Nunca trouxe o telefone pro colégio — diz o estudante, ansioso para voltar a brincar de cabo de guerra com uma amiga.

O menino conta que prefere interagir com os colegas e se divertir com atividades físicas. Em casa, usa o celular para ver desenhos e jogar, mas com horário controlado.

— Tenho três jogos e posso usar só às sete horas. Depois vou pra casa da vó, vejo desenho e brinco — conta Lorenzo.

O “brincar” como elaboração psíquica

A psicóloga clínica e escolar Laura Graña ressalta que a capacidade de brincar espontânea e criativamente é um "indicador de saúde importante em qualquer momento da vida", sendo o brincar "constitutivo" da experiência humana.

— É pelo brincar que as crianças dão sentido às suas experiências e inventam o mundo, um processo equivalente à elaboração psíquica dos adultos — esclarece a profissional.

Laura ressalta que o brincar necessita de um ambiente favorável, que inclua uma condição hoje "bastante impopular": o tédio.

— Quando as crianças ficam entediadas, atravessando a frustração, elas têm a chance de inventar brincadeiras, criar histórias, imaginar mundos. Nesses momentos de ócio, a criança sente que consegue se divertir sozinha, descobrir interesses de forma ativa e desenvolver de forma lúdica recursos internos diante do vazio.

A psicóloga critica a tendência de preencher o tédio imediatamente com telas.

— Quando a criança se acostuma a depender do estímulo constante das telas, ela perde a oportunidade de desenvolver essa criatividade espontânea, de brincar livremente, de lidar com o tempo mais lento das coisas e perde, em especial, a oportunidade de criar intimidade com a solidão — pontua Laura.

A dependência pode levar à desorganização ao remover o aparelho. Para a profissional, o tédio não é um problema a ser eliminado, mas “um estado a ser atravessado” para o desenvolvimento da capacidade de brincar em grupo, o que desenvolve coordenação motora, linguagem, socialização, pensamento simbólico, raciocínio e compreensão do "eu" e do "outro".

Conforme a psicóloga, muitos estudos mostram que o excesso de tempo diante das telas está ligado a atrasos na linguagem, dificuldades de atenção, menor capacidade de controle emocional e até mudanças na estrutura cerebral, especialmente em áreas ligadas à memória e à cognição.

 

FONTE:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao/educacao-basica/noticia/2025/06/a-gente-joga-todo-recreio-brincadeiras-ressurgem-nas-escolas-apos-a-proibicao-do-celular-cmbv8yrtw00lv015btqnww57l.html?utm_source=salesforce&utm_
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