Ser negacionista?
O que faz alguém ser negacionista?

as vacinas nos salvaram de muitas doenças" | Foto: José Cruz/Agência Brasil
Encontrei um colega que eu não via desde muito tempo. Depois dos abraços de praxe, rola uma conversa fadada ao fracasso. Ele virou negacionista. Teme vacinas, a ciência, especialmente as humanas, e o avanço da esquerda no mundo. Objeto que as vacinas nos salvaram da covid-19, que a extrema direita está em alta com a eleição de Donald Trump e que as ciências humanas agonizam. Ele ri.
– Papo de comunista – diz.
Ele não falava assim. Era mais indireto. Agora está na fase “papo reto”. Fico pensando como alguém com boa cultura vira negacionista. Como alguém pode temer vacinas tendo sido criança numa época em que as vacinas nos salvaram de muitas doenças. Algumas foram erradicadas. Outras estão voltando por retrocesso na vacinação das crianças de hoje. A conversa com meu velho colega seduzido pelo bolsonarismo não deixa de ser esclarecedora. Existe uma lógica.
– A esquerda é ressentida com os bem-sucedidos – afirma.
Ele é bem-sucedido. Tem dinheiro no banco e imóveis. Acha que todo esquerdista tem inveja dele. O seu bolsonarismo é fruto dessa necessidade de estar entre gente que pense como ele. O passo seguinte se encaixa para elucidar o enigma do negacionista culto.
– A ciência virou ninho de esquerdista – garante.
Se as pessoas de esquerda acreditam na informação, no conhecimento, na ciência, nas demonstrações, valha a redundância, por evidências, então ele se coloca estrategicamente no campo contrário. Se um esquerdista vê a salvação em vacinas, ele, não podendo concordar com seus inimigos, passa a apostar no oposto. De grão em grão, nesse binarismo viral, atola-se no obscurantismo. Surge uma categoria paradoxal: o intelectual negacionista. A ideologia fala mais alto, a emoção domina a razão, o instinto de classe se impõe sobre qualquer racionalidade. Os fatos não existem.
Tanto as próprias ciências humanas falaram em relatividade da verdade que nenhuma verdade sobra. Para meu velho colega, tudo é narrativa. A ciência não passa de uma narrativa da esquerda. Claro que ele faz o seu check-up anual e segue as recomendações dos seus médicos. Caminha com o tênis adequado, mudou a alimentação, eliminou gorduras e espera viver até os cem anos por força da sua disciplina.
– É tudo ideologia – diz.
Há muito aprendi que ideologia é o pensamento do outro, deformado ou não. Ele se vê como um realista, objetivo, pé no chão, alguém acima de qualquer ideologia. Volto para casa reflexivo. O encontro no parque com esse colega de outra década me faz pensar sobre o buraco em que vivemos. Até a ciência virou separador social.
No campo da sexualidade o binarismo está em baixa. No campo político, social, ideológico, em alta. As redes sociais são binárias. Não suportam terceiras ou quartas vias, alternativas. É sim ou não, 0 e 1, esquerda ou direita. Comento meu encontro com outro amigo, que já beira os 90 anos e anda deliciosamente objetivo:
– Negacionista – diz ele – é só um tipo do contra.
– Do contra?
– Por medo do sucesso dos que sempre lhe serviram.
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