Sobrou para o diretor e o coordenador
É, professor, também sobrou para o diretor e o coordenador
Pautadas por uma “Pedagogia da Métrica", Secretarias de Educação descem o sarrafo em geral
12/07/2025

Um dia comum de trabalho, e a professora, coordenadora de uma seção regional – responsável por dezenas de escolas – de uma das maiores secretarias de Educação de uma grande metrópole brasileira, dá os seus “bons dias”, dirige-se para seu gabinete. Não deu nem tempo de ligar o computador, quando se assusta com o som de um “pé na porta” de um agente do nível central, que anuncia: a senhora não é mais coordenadora geral, agora sou eu.
Só não houve o pé na porta (licença – não tão – poética), mas o restante foi muito parecido, segundo os relatos de vários profissionais de educação que assistiram, pasmos, tamanha grosseria. Isso mesmo, não houve nenhuma polidez protocolar, nenhum documento interno, nem um e-mailzinho no dia anterior. A professora soube no dia, pelas primeiras horas da manhã, que estava sendo exonerada do cargo comissionado, tête-à-tête, por aquele enviado pelo secretário de Educação para substituí-la.
Na prática, os gestores intermediários das redes públicas estão sendo moídos. Diretores, coordenadores e chefias regionais vivem pressionados por uma pedagogia perversa, aqui batizada como “Pedagogia da Métrica”: uma invenção não de educadores, mas de tecnocratas e financistas de gabinete.
O coordenador regional convoca todas as gerências de ensino e os diretores de escola com a intenção de cobrar os resultados dos alunos. Uma das principais gerentes de ensino, diretamente ligada às metas, recebe a maior carga de pressão, passa mal e é socorrida para uma unidade de saúde. Assim que ela é retirada da sala, o coordenador geral diz, sem cerimônia: “Vamos continuar a reunião.” (O ocorrido foi relatado por professores que estavam presentes.)
A “Pedagogia da Métrica” não ensina a pensar, apenas a entregar resultados. Seu ideal de excelência é o de uma planilha limpa, um gráfico ascendente, um índice que impressione Brasília.
São Paulo, laboratório do ultraliberalismo aplicado à educação, encabeça esse espetáculo. Seus bônus, índices e metas converteram o sistema educacional em uma engrenagem de desempenho – mas as peças humanas dessa máquina estão se desgastando e adoecendo.
No Espírito Santo, a conta chegou a R$ 48 milhões em bonificação. Em Goiás, os diretores vivem monitorados em tempo real por plataformas digitais. No Pará, a avaliação é a régua que define a existência do estudante.
A “Pedagogia da Métrica” é a pedagogia do mercado. Sua lógica é simples: se aprende o que é cobrado; e se não é cobrado, não vale. As humanidades? Obsoletas. Cidadania? Dispensável.
No Distrito Federal, em Minas e no Ceará, a lógica é a mesma: kits estruturados, contraturnos tutelados, reforços domesticados e ranqueamentos escolares como se fossem relatórios da Bolsa de Valores.

Pautadas por uma “Pedagogia da Métrica”, Secretarias de Educação descem o sarrafo em geral.
Nas salas de reuniões, chefes gritam; nos corredores, servidores choram. O assédio institucional se sofisticou. Já não é preciso punir diretamente, basta cobrar metas inatingíveis. O resto, a “máquina” resolve.
O problema não está na avaliação em si. O problema é a transformação do processo educativo em moeda política. E do professor – e agora também do coordenador – em culpado oficial do fracasso.
Karl Polanyi já havia alertado: quando a força de trabalho vira mercadoria, o que se vende não é só o suor, mas também a alma. A corrosão moral é inevitável.
No atual modelo de gestão educacional, o que se disponibiliza ao mercado é o tempo vital dos educadores, o sofrimento mental de estudantes e docentes e a falência simbólica da escola pública como projeto de sociedade.
O mais cruel é que essa pedagogia não forma pessoas. Apenas alimenta os mecanismos de ranqueamento que, por sua vez, abastecem os discursos dos gestores em busca de mais verbas – e mais poder.
E quando falta verba, vende-se a escola. Dando início à privatização da gestão de algumas unidades educacionais, o governador paulista, por exemplo, não economizou em eufemismos para anunciar o que, no fundo, é a terceirização da escola pública como política de Estado.
Chamaram de “retrofit estrutural” (reforçar ou modernizar uma estrutura antiga – mais uma desculpa para a privatização). Mas não se enganem: é um leilão disfarçado. Em nome da eficiência, transforma-se o espaço escolar em objeto de concessão. Como se a escola fosse uma rodoviária.
Disseram que só a parte “não pedagógica” será entregue à iniciativa privada. Como se fosse possível fatiar o chão da escola. Como se o pátio, o banheiro, a merenda não educassem.
A suspensão da terceirização, por liminar, foi um sopro de lucidez. Mas basta acompanhar o Diário Oficial para ver que a engrenagem não parou. Ao contrário, segue firme – azeitada com grana e marketing.
A “Pedagogia da Métrica” é a antítese da escola democrática. Ao reduzir o ato educativo a desempenho, esvazia o sentido do trabalho docente e enfraquece o tecido social que sustenta a escola.
Coordenadores, diretores, professores: estão todos na mesma armadilha. Uns com mais crachás, outros com menos. Mas todos pressionados a transformar crianças em dados. E dados em medalhas.
Quando a escola se ajoelha diante dos números, a educação já perdeu a alma. E quem fica com a glória da vitória – e os bônus – é sempre quem nunca entra em sala.
No fundo, essa pedagogia tecnocrática não só desumaniza: ela disciplina. Seu espírito autoritário tange a lógica da obediência cega. Afinal, como disse Plínio Salgado, ideólogo do integralismo: “Obedeçam, sem discutir!”. Pois é exatamente isso que esperam – de professores, diretores, estudantes… e agora também dos coordenadores.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.