STF e o direito a creches

STF e o direito a creches

O STF e o direito a creches

O acesso à creche é reconhecido como direito fundamental e obrigação do Estado, independentemente de limitações orçamentárias.

Flávio Dino segunda-feira, 4 de agosto de 2025

 

É de uma beleza imensa e propulsor de esperança o bloco jurídico-constitucional que o Brasil construiu, ao longo das últimas décadas, para assegurar os direitos fundamentais das nossas crianças. Esse ordenamento jurídico é fruto de concerto entre as mais diversas correntes políticas desde a redemocratização, que deu origem à Constituição Federal, a qual consagra no artigo 227 o princípio da predominância do melhor interesse das crianças. Podemos citar, no plano infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e a LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, um constructo liderado por Darcy Ribeiro, um dos maiores intelectuais da história brasileira.

No que tange à educação infantil, sua imperativa efetividade é expressão direta dos compromissos constitucionais assumidos pelo país desde 1988. Não são meras aspirações utópicas; são obrigações jurídicas impostas aos três entes da Federação, com respaldo em diversos artigos da Constituição. O art. 6º da Carta Magna estabelece a educação e a infância como direitos sociais. Na sequência, o art. 7º indica que, entre os direitos dos trabalhadores, está a "assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas" (inciso XXV). Mais à frente, no art. 205, a educação é posicionada como um "direito de todos e dever do Estado e da família (...), visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". Por fim, no art. 208, inciso IV, a Carta Magna sustenta que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia da "educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade".

A LDB - Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 organiza a educação pública brasileira, com responsabilidades da União, Estados, Distrito Federal e municípios. Cabe aos sistemas municipais, em regime de colaboração, "oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas" (art. 11, inciso V). O art. 29 determina que a " educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade"; e o art. 30 separa a educação infantil em dois eixos: "I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade" e "II - pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade".

A eficácia dessas normas jurídicas tem sido uma grande preocupação marcada na jurisprudência do STF. O julgamento, em 2022, do Tema 548 de Repercussão Geral, de relatoria do ministro Luiz Fux, sedimentou o entendimento de que a oferta de vagas em creches não configura uma discricionariedade da Administração Pública, mas sim um direito público subjetivo das crianças e das suas famílias, exigível judicialmente. O plenário do STF, então, fixou a tese: "1. A educação básica em todas as suas fases - educação infantil, ensino fundamental e ensino médio - constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata. 2. A educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5 anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo. 3. O Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica".

O posicionamento da Suprema Corte afastou de vez qualquer concepção que enxergue a educação infantil, sobretudo a creche, como um serviço dependente da opção governamental. A fase inicial de educação da criança é essencial, cuja fruição é indispensável para o desenvolvimento pleno e, por óbvio, integra o mínimo existencial, um conceito jurídico indissociável da dignidade da pessoa humana. Os entes federativos, em qualquer instância, ao assumir o compromisso de proteção integral dos pequenos brasileiros e brasileiras, não podem subtrair-se desse dever fundamental, nem por argumentos puramente financeiros, nem por considerações sobre conveniência administrativa.

Sob a relatoria do ilustre e sempre decano Ministro Celso de Mello, a ARE 639337, que foi a julgamento na Segunda Turma, impôs ao Estado a obrigação de criar condições objetivas para atendimento de todas as crianças. Em seu voto, o Ministro Relator defendeu que "a educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental".

Vinculado a esses precedentes, em casos julgados desde 2024, tenho inclusive f ixado o dever de entes públicos custearem a matrícula em creches privadas perto da residência ou do local de trabalho dos pais - até que seja aberta a vaga adequada em instituição pública. Mais recentemente, o debate em torno da natureza das funções da creche foi objeto de apreciação no STF. O Município do Rio de Janeiro, ao opor embargos contra decisão em que reconhecida a constitucionalidade de lei sobre o funcionamento ininterrupto das creches, alegou que o serviço extrapolava a função educativa, criando, na visão do ente municipal, uma "colônia de férias" sem respaldo legal (ARE 1.416.033). Em meu voto, confirmado de forma unânime pela Primeira Turma, sustentei que, embora a creche esteja inserida no âmbito da educação, o cuidado e a assistência são elementos indissociáveis do processo educativo na primeira infância. Com efeito, o ambiente de uma creche abrange alimentação, segurança, socialização, cultura, afeto e estímulo cognitivo, além de suporte para as famílias que precisam se manter no mundo do trabalho nos primeiros anos da criança, sob pena de não conseguir atender as demais necessidades básicas do núcleo familiar.

Ao reconhecer a natureza de direito fundamental desse serviço, o STF visa assegurar às crianças brasileiras condições adequadas de vida, reafirmando que a proteção integral da criança, por intermédio do acesso às creches, não se submete a contingências orçamentárias ou a escolhas dos gestores. Em última análise, o que se extrai da jurisprudência da Corte é uma mensagem clara e contundente: no Brasil, criança deve ser prioridade absoluta, como um sinal de verdadeiro progresso. E o Poder Judiciário tem o dever constitucional de zelar por essa prioridade, sempre que os demais Poderes falharem em fazê-lo.


Flávio Dino
Ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi juiz Federal, deputado Federal, governador do Maranhão, senador e ministro da Justiça. Mestre (UFPE) e Doutor h.c. mult.

 

FONTE:

https://www.migalhas.com.br/depeso/435971/o-stf-e-o-direito-a-creches

 




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