Super-ricos aprofundam a desigualdade

Super-ricos aprofundam a desigualdade

Super-ricos aprofundam a desigualdade e colocam a democracia em perigo. Entrevista especial com Pedro Abramovay

Para o advogado a alternativa para as encruzilhadas sociais, políticas e ambientais que vivemos passa por combater a insuportável desigualdade que caracteriza os tempos de hoje.

 

Por: Baleia Comunicação | 08 Abril 2025

Entre o final dos anos 1970 e 2008, quando houve a grande crise financeira internacional, o neoliberalismo viu sua curvatura ascendente como grande paradigma econômico, político e social. De lá para cá, o que se sucedeu foram sempre posturas ainda mais reativas a qualquer avanço social promovido pelo Estado, capturando-o em favor do sistema financeiro mundial. Hoje vivemos a aceleração radical disso com consequências políticas concretas em relação às populações vulnerabilizadas.

“A partir de 2008, com a crise financeira global, passou a ficar cada vez mais difícil defender a ideia de que era possível gerar prosperidade com um estado mínimo. Mas o debate se intensificou com a emergência da China como uma superpotência global, valorizando um modelo de desenvolvimento no qual o Estado tem um papel enorme na definição das prioridades do país e na implementação de políticas industriais”, pondera Pedro Abramovay, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Na contramão de um discurso ainda hegemônico que se deve reduzir impostor, Abramovay  demonstra que o único caminho possível é o contrário. “Reforçar a capacidade dos Estados de arrecadar recursos próprios é o ponto central para que os Estados possam ser soberanos e também para que a democracia possa fazer sentido. Pois tanto um estado mínimo quanto um estado profundamente endividado transformam a democracia em um esforço vazio, afinal a disputa política se dá em torno de uma instituição sem autonomia, sem poder”, propõe.

Casos como o de Elon Musk, herdeiro, extremista de direita e bilionário que após a vitória de Trump faturou milhões de dólares em ativos financeiros, são exemplares de como os super-ricos produzem desigualdades insuportáveis. “Claro que o caso mais gritante é o de Elon Musk, o homem mais rico do mundo, que praticamente comprou seu assento no Salão Oval da Casa Branca, nos Estados Unidos. Após décadas de discussão sobre os mecanismos de controle para que o dinheiro privado não pudesse controlar diretamente a política, todos esses mecanismos desabam e vemos o uso do poder beneficiando diretamente pessoas que compraram a acesso a ele”, acrescenta.

“A democracia não é um exercício simbólico. É uma forma de se decidir sobre o exercício do poder. As décadas de prevalência do neoliberalismo foram esvaziando o papel do Estado, tanto do ponto de vista decisório (com enorme pressão de organismos internacionais para a adoção de uma agenda ‘consensual’) quanto do ponto de vista de recursos”, sublinha o entrevistado.

 

Pedro Abramovay (Foto: @Eduardo Martino para Open Society Foundations)

 

Pedro Abramovay é advogado e vice-presidente de programas da Open Society Foundations. Formado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, possui mestrado em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília e doutorado em ciência política pelo IESP-UERJ.

 

Confira a entrevista.

IHU – Que tipo de mudança no sistema tributário internacional contribuiria para a redução da evasão fiscal global?

Pedro Abramovay – A globalização do capital financeiro provocou uma mudança profunda na capacidade de empresas e indivíduos evadirem tributação. Isso foi sempre tratado como uma consequência quase natural do movimento de livre circulação de capital. Mas isso não precisa ser assim. Esse movimento tornou o sistema tributário de vários países regressivos. Ou seja, a cooperação financeira entre países atualmente é um estímulo para os super-ricos não pagarem impostos.

Há dois exemplos importantes de mudanças que podem criar uma cooperação não apenas para favorecer a circulação de capital, mas também uma cooperação que torne o sistema globalmente mais justo e que aumente a capacidade fiscal dos Estados. Dois exemplos concretos são a taxação mínima para grandes corporações proposta pela OCDE. E a proposta de taxação dos super-ricos proposta pelo Brasil e apoiada por todos os países do G20.

 

 

IHU – O que é “capacidade fiscal” dos estados e como seu fortalecimento contribuiria para a criação de estados soberanos, capazes de enfrentar desafios econômicos e sociais globais?

Pedro Abramovay – Estamos num momento muito interessante do ponto de vista do debate global sobre o papel do Estado. A partir de 2008, com a crise financeira global, passou a ficar cada vez mais difícil defender a ideia de que era possível gerar prosperidade com um estado mínimo. Mas o debate se intensificou com a emergência da China como uma superpotência global, valorizando um modelo de desenvolvimento no qual o Estado tem um papel enorme na definição das prioridades do país e na implementação de políticas industriais. Além disso, também ficou claro que os grandes desafios globais (mudanças climáticas, pandemias, desigualdades) não serão resolvidos pelo setor privado, o Estado será o motor central dessas soluções.

Se isso é verdade, o Estado tem que ter capacidade para desenvolver esse papel. Essa capacidade pode vir de aumento da dívida ou aumento de impostos. Quando olhamos para países do Sul Global, países da África e alguns países da América Latina e Caribe são bons exemplos disso, fomos criando um modelo no qual o papel do Estado acaba sendo sustentado mais pelo aumento da dívida do que pelo aumento da arrecadação de impostos. Isso gera um modelo que não é sustentável e que impõe aos países uma enorme dependência de seus credores.

É esse ciclo que deve ser quebrado, com o aumento da capacidade fiscal dos estados. Reforçar a capacidade dos Estados de arrecadar recursos próprios é o ponto central para que os Estados possam ser soberanos e também para que a democracia possa fazer sentido. Pois tanto um   estado mínimo quanto um estado profundamente endividado transformam a democracia em um esforço vazio, afinal a disputa política se dá em torno de uma instituição sem autonomia, sem poder.

IHU – Pelo menos 60% da riqueza dos bilionários de hoje vem de herança, monopólio ou conexões com poderosos. O que isso diz sobre a moralidade dos ricos, milionários e bilionários do planeta?

Pedro Abramovay – É muito curioso ver emergir entre as elites um discurso defendendo a meritocracia, ou seja, a ideia de que a riqueza deve ser distribuída em função do mérito e não de qualquer outro critério, mas essas mesmas elites, não aceitam que se aumente o imposto sobre a herança, que é justamente um imposto para corrigir a riqueza que é distribuída apenas por razões hereditárias.

IHU – Diante do cenário atual, como enfrentar a questão da justiça climática?

Pedro Abramovay – A questão climática necessita de investimento de trilhões de dólares para ser enfrentada. É claro que será necessária uma colaboração entre os setores público e privado para que se possa transformar a economia global. Entretanto, o direcionamento destes recursos deve ser realizado a partir dos Estados.

É cada vez mais comum, no debate sobre o clima, uma ideia de que seria possível consolidar os investimentos necessários para a questão a partir do sistema financeiro. Ou seja, como se a agenda para o enfrentamento climático fosse absolutamente consensual e a chave agora seria apenas a mobilização desses recursos. Essa é uma meia verdade.

Há muitos investimentos onde há, sim, clareza sobre o que fazer, mas há uma série de ações que envolvem escolhas políticas sobre quais grupos vão ser beneficiados e quais serão prejudicados. Como lidar com os trabalhadores que perdem emprego com a transição energética? Como compensar países pobres que dependem da renda de combustíveis fósseis? Onde priorizar o investimento em adaptação?

Para responder a cada uma dessas questões, são necessárias escolhas políticas que não podem ser feitas pelo setor privado. Aumentar a disponibilidade de crédito para países ou para empresas para atuarem no enfrentamento da questão climática é uma parte da solução, mas as grandes escolhas devem ser feitas pelos Estados. E, neste sentido, reforçar a capacidade de investimento dos estados, por meio da arrecadação de impostos, é fundamental.

IHU – O mundo se aproxima do primeiro trilionário enquanto vê a desigualdade subir drasticamente. Como a concentração de riqueza gera também um monopólio de poder, com os bilionários exercendo cada vez mais influência nas decisões políticas globais?

Pedro Abramovay – Esse é um problema que vem se agravando. A quantidade de riqueza que se acumula na mão de pouquíssimas pessoas é obscena. E com esses recursos vemos também um poder brutal desses bilionários na definição de políticas globais. Isso se dá de várias maneiras.

Claro que o caso mais gritante é o de Elon Musk, o homem mais rico do mundo, que praticamente comprou seu assento no Salão Oval da Casa Branca, nos Estados Unidos. Após décadas de discussão sobre os mecanismos de controle para que o dinheiro privado não pudesse controlar diretamente a política, todos esses mecanismos desabam e vemos o uso do poder beneficiando diretamente pessoas que compraram a acesso a ele. Isso é, evidentemente, muito perigoso para a democracia.

IHU – Recentemente o senhor declarou que o mundo precisa de uma “reforma tributária global”. O senhor poderia nos explicar do que se trata a proposta?

Pedro Abramovay – O Governo brasileiro conseguiu incluir na declaração final da reunião do G20, no Rio de Janeiro, em novembro do ano passado, a ideia da taxação dos super-ricos. A riqueza dos ultrarricos, principalmente esses ligados às Big Techs, é construída globalmente, mas não é taxada globalmente. Isso significa que os países do Sul praticamente dão uma isenção de impostos para essas empresas, que impulsiona a riqueza extrema. Uma taxação mínima global para os super ricos assim como formas de garantir que toda riqueza gerada em um país possa pagar impostos naquele país são elementos fundamentais para alcançarmos uma justiça tributária global.

IHU – De que forma um sistema tributário mais justo contribui também para a defesa da democracia?

Pedro Abramovay – A democracia não é um exercício simbólico. É uma forma de se decidir sobre o exercício do poder. As décadas de prevalência do neoliberalismo foram esvaziando o papel do Estado, tanto do ponto de vista decisório (com enorme pressão de organismos internacionais para a adoção de uma agenda “consensual’) quanto do ponto de vista de recursos.

Se a disputa eleitoral é uma disputa por um espaço vazio, sem recursos e sem poder, a democracia não é séria. E, claro, a confiança na capacidade da democracia de transformar a vida das pessoas desaba. Assim, o enfoque em um sistema tributário que consiga sustentar um estado com capacidade de incidir nas transformações sociais é fundamental para sustentar a democracia.

Além disso, claro, o sistema tributário tem o poder de corrigir as profundas injustiças da nossa sociedade, podendo atuar como fator de distribuição da renda. Muitos aspectos do nosso sistema tributário vão na direção oposta. Cobram mais imposto dos pobres e menos dos mais ricos. Um sistema que não tributa lucros e dividendos e que não tem uma tributação mínima para os muito ricos coloca um peso gigantesco sobre a classe média e não cumpre o papel distributivo que deveria ter.

IHU – O governo brasileiro acaba de apresentar uma reforma tributária que busca reduzir disparidades do Imposto de Renda, que hoje é muito regressivo. Como avalia a proposta?

Pedro Abramovay – A proposta do Governo brasileiro é muito positiva. Ela tenta justamente retirar o peso da tributação da classe média baixa e transferir para os muito ricos. É interessante notar que esse esforço se coaduna com uma agenda nova da esquerda latino-americana. A primeira onda progressista na região se baseou na alta das commodities para, por meio de programas de transferência de renda e de aumento do salário mínimo, atacar de maneira mais séria a desigualdade.

Os atuais governos progressistas têm apostado em reformas tributárias para dar o passo seguinte na redução das desigualdades. É muito mais difícil realizar esse esforço redistributivo pelo lado da tributação, claro. Mas é certamente mais sustentável e capaz de gerar um estado apto a lidar com os desafios atuais.

IHU – Como foi sua participação no evento “Justiça Fiscal e Solidariedade”, realizado no Vaticano, em fevereiro passado?

Pedro Abramovay – O evento foi excelente. Com participação de vários governos, o presidente Lula e o presidente Sanchez, da Espanha, enviaram suas contribuições por vídeo. É muito interessante ver o Vaticano assumindo uma postura pública e propositiva na agenda da justiça tributária. Ali, no evento, vimos especialistas como o prêmio Nobel Joseph Stiglitz; o ex-ministro da economia colombiano, José Antonio Ocampo; e a economista indiana Jayati Ghosh fornecendo subsídios técnicos sobre como construir um mundo em que uma estrutura tributária mais justa possa criar estados mais propensos a gerar sociedades mais prósperas e menos desiguais.

 

 

FONTE:

https://www.ihu.unisinos.br/650494-super-ricos-aprofundam-a-desigualdade-e-colocam-a-democracia-em-perigo-entrevista-especial-com-pedro-abramovay?utm_campaign=newsletter_ihu__08-04-2025&utm_medium=email&utm_source=RD+Station




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