Tecnologia deve apoiar o ensino
"A tecnologia deve apoiar o ensino, e não substituí-lo", diz britânico que é referência em políticas públicas de educação
Pesquisador e professor do Boston College (EUA) e da Universidade de Ottawa (Canadá), Andy Hargreaves defende o investimento no ensino público e o uso da inteligência artificial nas escolas.
14/12/2023 - Isabella Sander
Hargreaves: "A educação pública precisa ser uma prioridade global"
Jonathan Heckler / Agencia RBS
Com 72 anos e mais de 30 livros escritos, Andy Hargreaves é uma referência nos estudos de políticas públicas educacionais. O foco de seu trabalho, no entanto, não envolve nenhuma metodologia ou prática específica. Para o professor e pesquisador britânico, a busca é pelo bem-estar nas escolas, o que envolve, no mínimo, três aspectos: a prosperidade para todos, o uso ético da tecnologia e o que ele chama de “natureza restaurativa”. Para além dos muros da Universidade de Ottawa, no Canadá, e do Boston College, nos EUA, onde leciona, Hargreaves leva suas reflexões para a ARC Education Collaboratory, projeto que reúne ministros e líderes da área da educação em diferentes países para trocar experiências sobre dilemas e soluções ligadas a políticas públicas educacionais. Em novembro, esteve em Porto Alegre para participar de um evento promovido pela Unisinos e conversou com GZH sobre, entre outros temas, formas de promover a equidade nas escolas e no uso da tecnologia nesses ambientes.
Como o senhor conecta bem-estar, prosperidade, tecnologia e natureza restaurativa?
Especialmente depois da pandemia, muitas pessoas têm abordado o bem-estar geral a partir de uma perspectiva individual: spas, academias, mindfullness, resiliência. Mas parte de se estar bem tem a ver com como somos enquanto comunidade. Quanto mais prestarmos atenção nisso, melhor as pessoas ficarão. No nosso livro (Bem-estar nas Escolas: Três Forças que Motivarão seus Alunos em um Mundo Instável, escrito em parceria com Dennis Shirley), falamos sobre três formas de pensar sobre como podemos melhorar o bem-estar, a partir da análise de comunidades e sociedades. A primeira é a prosperidade social. Desde a década de 1980, as nossas sociedades ficaram obcecadas com a economia, com o Produto Interno Bruto, com melhorias em indicadores de diferentes áreas. Isso criou muito estresse e pôs o foco nas conquistas, mas não na saúde. Nos últimos anos, cada vez mais sociedades – muitas delas com líderes mulheres – têm se concentrado na qualidade de vida, para além do desempenho ou da posição econômica. Nossa proposta é que, nas escolas, pensemos em como ajudar os jovens a refletir sobre a qualidade de vida deles e seus propósitos, sentindo-se parte de algo e fazendo a diferença. Projetos que se liguem à comunidade ou que se relacionem com o que pode ser feito em relação às alterações climáticas, por exemplo, são formas de as escolas abordarem essa questão.
O segundo ponto diz respeito à tecnologia, certo?
Sim. É claro que a tecnologia tem muitas, muitas vantagens. A inteligência artificial (IA) oferece muitas oportunidades para apoiar o trabalho das pessoas, mas também apresenta riscos enormes. A tecnologia pode distrair muito, dificultando o foco em tarefas mais longas. Pode causar grande ansiedade, principalmente nos adolescentes, em relação ao Instagram, ao TikTok ou a outra plataforma. Se os jovens passam muito tempo diante das telas, duas coisas acontecem: isso os deixa bastante ansiosos e também significa que não estão fazendo outras coisas. Eles não estão com as pessoas. Eles não estão na natureza. Precisamos do que a Organização das Nações Unidas chama de “abordagem humana para a tecnologia”, que é a forma como a tecnologia pode melhorar a nossa humanidade, e não substituí-la. Precisamos educar nossos alunos sobre isso e nos educarmos uns aos outros, como educadores, também.
No terceiro ponto, o senhor traz o conceito de “natureza restaurativa”. O que é isso?
Se você quer melhorar o bem-estar dos jovens, comece com o que diz o conhecimento indígena: somos parte da terra. Estamos conectados com a natureza. Podemos ter um sentido mais forte de espiritualidade, não necessariamente de religião, apreciando o mundo que nos rodeia. Há muitas evidências de que quando saímos e aprendemos ao ar livre, temos uma melhoria na cognição, nos sentimos melhor emocionalmente e nos movemos melhor fisicamente. Mas as nossas escolas, nos últimos 40 anos, aprisionaram nossas crianças dentro de caixas de metal e concreto. Não custa nada levá-las para fora. Não demanda novos recursos ou investimentos: só precisa de uma mudança de mentalidade. Repensar a nossa relação com a natureza faz com que as pessoas se sintam melhor e estabelece desde cedo uma conexão com o meio ambiente que as ajudará a pensar sobre as mudanças climáticas e a tornarem-se mais responsáveis por essas questões ao longo do tempo.
Nossas sociedades ficaram obcecadas com a economia. Isso criou muito estresse e pôs o foco nas conquistas, e não na saúde. Nos últimos anos, cada vez mais sociedades têm se concentrado na qualidade de vida, para além do desempenho.
No contexto urbano, é mais difícil levar as crianças para fora, não?
Depende de onde você está. Se você quiser percorrer um longo caminho, é claro que será mais difícil para as crianças e as famílias pobres do que para as crianças e as famílias ricas e com recursos. Mas estou trabalhando num projeto financiado pela LEGO Foundation. Nesse projeto, com meus colegas da Universidade de Ottawa, temos uma rede de 40 escolas em todo o Canadá, em todos os tipos de comunidades: indígenas, urbanas, de imigrantes, cidades pequenas, muitos, muitos tipos diferentes de comunidades. Oferecemos a essas escolas a oportunidade de focar em algo que fosse baseado em telas ou que envolvesse atividades ao ar livre. Poucas escolas escolheram a tela como foco. Muitas escolheram o verde. Isso envolvia simplesmente sair e construir abrigos, tendas ou fortes ao lado da escola, ou fazer trilhas na mata, na floresta, no parque vizinho, ou cultivar alimentos. Numa escola, eles fizeram os seus próprios painéis solares para manter aquecida a comida que cultivavam no inverno. Outros construíram torres de cultivo com cerca de dois metros de altura, que permitem que você cultive alimentos dentro de casa com luz, água e calor. Há muitas maneiras de nos conectarmos com a natureza. Isso não significa fazer uma excursão para passar um fim de semana nas montanhas. Pode ser exatamente onde você está. Claro, você pode conectar natureza e tecnologia e aprender com isso. Mas o problema é que a tecnologia, hoje, está servindo de suporte para o aprendizado, e não o impulsionando. Essa é a diferença.
Durante a pandemia, o ensino remoto foi muito utilizado pelas escolas. É possível um ensino remoto de qualidade, ou é só uma ferramenta de apoio aos professores?
A resposta é “sim” para ambas as questões. Na pandemia, foi incrível a rapidez com que os professores responderam ao ensino online, e quem tornou isso possível foram, principalmente, os professores que ensinavam outros professores o que podiam fazer com a tecnologia, e não os diretores, nem as pessoas do governo. Foi um exemplo fantástico de como os educadores podem aprender rapidamente para ajudar seus alunos. Por outro lado, aprendemos que, quando as crianças ficam muito em casa, sentem falta dos relacionamentos. O grupo que teve maiores problemas de saúde mental foi o dos adolescentes, porque, quando você vai para a escola na adolescência, você aprende conteúdos, mas também, com outras pessoas, aprende sobre si mesmo. Foi uma grande perda. A ideia de que podemos substituir os professores pela tecnologia é errada. Alguns alunos conseguem se autodirigir. Geralmente, eles têm apoio dos pais e são privilegiados. Outros não conseguem. Portanto, se recorrermos à tecnologia, criaremos desigualdades ainda maiores do que as que temos. Devemos tirar o que há de bom da tecnologia, usá-la para apoiar o ensino, e não para substituí-lo.
Na pandemia, foi incrível a rapidez com que os professores responderam ao ensino online. Por outro lado, aprendemos que, quando as crianças ficam muito em casa, sentem falta dos relacionamentos. O grupo que teve maiores problemas de saúde mental foi o dos adolescentes, porque, quando você vai para a escola na adolescência, você aprende conteúdos, mas também, com outras pessoas, aprende sobre si mesmo.
E a formação do professor? Pode ser feita por meio de educação a distância?
Durante a pandemia, muitos países não tiveram outra escolha a não ser certificar professores através da aprendizagem virtual. Eles não tiveram experiência em trabalhar com crianças reais em escolas reais. Ainda não sabemos se serão bons ou nem tanto, mas é difícil formar um profissional sem isso. Você certificaria um cirurgião para operar pacientes em um hospital sem ele nunca ter operado antes? Os professores não operam os corpos das pessoas, mas têm uma enorme responsabilidade pelas suas mentes. Se não virmos o que podem realmente fazer na prática, poderão prejudicar a vida das crianças no futuro. Podemos aprender algumas coisas online? Claro. Podemos aprender sobre psicologia infantil, desenvolvimento infantil, matemática e métodos de ensino. Mas, no final das contas, temos que ver como as pessoas que aprendem a ensinar conseguem fazer isso na sala de aula. Às vezes, essas pessoas descobrem, quando passam um tempo com as crianças, que aquilo não é para elas, e ainda têm tempo de sair e mudar para outra carreira. Se você certificar pessoas online, elas ficarão presas na carreira, e será tarde demais para sair. Isso não é bom para os alunos e também não é bom para os professores.
O senhor foi o primeiro de sua família a ir para a faculdade. Qual é o impacto potencial desse tipo de experiência na vida das pessoas?
Essa é uma pergunta muito interessante. Há uma questão pessoal e outra geral. A questão pessoal, para mim, é que eu realmente me importo com a equidade e com a justiça social. Eu tinha uma família que me amava, mas meu pai morreu quando eu tinha 12 anos e a minha mãe ficou muito doente. Éramos uma família da classe trabalhadora e, desde os 14 anos, meus irmãos trabalharam em fábricas. De certa forma, tornei-me adulto cedo, e isso afetou meu desempenho na escola. Eu costumava ser quase o primeiro da turma em tudo e, de repente, fiquei perto do último lugar, porque não conseguia chegar à escola antes das 11h da manhã. Quando pessoas de famílias trabalhadoras não têm sucesso, não é pela sua incapacidade: é pelas condições em que estão aprendendo, pelo apoio, pelas coisas com que têm que lidar. Por isso, sempre me preocupei com a equidade para as pessoas que vêm de famílias em dificuldades, pessoas imigrantes, outros grupos marginalizados, como pessoas LGBTQIA+, pessoas que são indígenas. É nosso trabalho como educadores fazer duas coisas. Uma delas é fazer com que essas pessoas se sintam incluídas na escola, que consigam ver, no currículo, a si mesmos e a sua formação. Em segundo lugar, é importante dar apoio às pessoas. Pode ser um apoio financeiro, pode ser coaching, aconselhamento ou alguma flexibilidade nos requisitos para se formar, por exemplo. Como algo pessoal para mim, isso me ensinou o valor da equidade e a importância do apoio da escola. Comecei a minha carreira me preocupando com pessoas como eu, e o que mais gostei nessa trajetória, nos últimos anos, foi aprender sobre pessoas que não são como eu, mas que também, em muitos aspectos, lutam, têm dificuldades e precisam de apoio.
Quando pessoas de famílias trabalhadoras não têm sucesso, não é pela sua incapacidade: é pelas condições em que estão aprendendo, pelo apoio, pelas coisas com que têm que lidar.
O senhor trabalha em um projeto de desenvolvimento de políticas públicas ao redor do mundo. Qual é a diferença entre planejar políticas públicas educacionais em países ricos e pobres?
Sempre tentei fazer um bom trabalho e comunicá-lo não apenas a outros pesquisadores, mas aos agentes públicos. Com o tempo, algumas pessoas na política partilharam dos mesmos valores e passaram a me ver como um parceiro e a pedir conselhos. Nos últimos 10 anos, trabalhei muito com pessoas da área da política. Quando países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que têm economias desenvolvidas, pensam sobre isso, a maioria consegue treinar e pagar bem seus professores. Como eles têm mais dinheiro, os professores têm melhores salários, mais tempo, mais oportunidades de colaborar e de ver o que os colegas estão fazendo em outras escolas. Nos países desenvolvidos, ainda que haja bons e maus governos e boas e más políticas, o que há em comum é uma capacidade maior de implementação. O Brasil é uma das maiores economias do mundo, portanto, não é uma economia emergente, mas, ainda assim, partes do Brasil têm dificuldade para financiar adequadamente a educação pública. Isso precisa de ser uma prioridade global. Por exemplo, o Banco Mundial fornece apoio à educação pública de diferentes formas, mas não para pagar os salários dos professores. Precisamos mudar isso e pressionar o Banco Mundial para que mude essa política, porque, se não pagarmos bem aos professores, será difícil atrair bons profissionais e mantê-los. Os professores, às vezes, têm que trabalhar em dois ou três empregos, ficam exaustos, não têm tempo para planejar e colaborar com outros colegas. Portanto, eu diria que uma das grandes diferenças entre as economias desenvolvidas e as menos desenvolvidas não é tanto a tecnologia ou mesmo os edifícios, mas as diferenças no apoio às pessoas que trabalham com as crianças. Precisamos ver a educação como investimento. Você quase nunca desperdiça seu dinheiro ao investir no aprendizado das pessoas.
Como é esse trabalho de aconselhamento aos países?
Por volta de 2015, eu trabalhava com vários países com bons líderes, que diziam que havia uma tendência global em buscar melhores indicadores em avaliações educacionais. Todos estavam obcecados em aumentar suas notas, o que gerou um ambiente muito competitivo. Teve ansiedade, estresse, perda de outras coisas nos currículos. Então, vários países começaram a dizer que precisava haver algo melhor do que aquilo. Eu concordei com eles, mas não tenho dinheiro, não tenho grandes empresas, nem grandes fundações por trás de mim. Então, com um colega da Noruega, criamos essa coisa que, originalmente, foi chamada de Atlantic Rim Collaboratory, ou ARC. Estabelecemos uma estrutura de valores humanitária, como equidade, excelência ampla, incluindo as artes e outras áreas, diferentes identidades e origens, bem-estar, democracia e direitos humanos. Através das nossas redes, atraímos ministros, funcionários públicos seniores e líderes sindicais de professores para se reunir uma vez por ano. Trazemos líderes inovadores muito famosos, que dão seu tempo de graça. Eles vêm e estimulam o grupo, seja qual for o nosso foco. Nosso último encontro foi na Noruega, sobre paz e democracia. O que fazemos é facilitar que os agentes políticos trabalhem em pequenos grupos com problemas que não conseguem resolver no seu próprio sistema. Eles não recebem conselhos nossos, mas de agentes políticos de outros sistemas, e tudo é confidencial. Portanto, há uma confiança muito elevada e uma grande abertura.
O Brasil é uma das maiores economias do mundo, portanto, não é uma economia emergente, mas, ainda assim, partes do Brasil têm dificuldade para financiar adequadamente a educação pública. Isso precisa de ser uma prioridade global.
Qual tem sido o resultado desse processo?
Já vimos muitos mudarem suas políticas. Aumentaram a atenção ao bem-estar em vários sistemas, por exemplo. Na pandemia, um participante decidiu construir salas de aula ao ar livre em todas as escolas primárias, para reduzir a infecção, e essa ideia se espalhou para vários outros. Aprenderam que as cadeias de abastecimento globais eram vulneráveis, o que tem se percebido agora, devido às mudanças climáticas e à guerra, que forçou os países a produzir mais perto de casa, o que significa que o ensino profissional é mais importante. A Islândia, por exemplo, fez do ensino profissional uma das suas prioridades, o que não acontecia antes de partilharmos essas ideias. Nesses encontros, também interagimos com as escolas locais. Isso gera um ambiente no qual você tem ministros conversando com os alunos. Os alunos lideram a discussão, e os ministros se juntam à mesa. E eles acham que essa é uma das coisas mais poderosas das reuniões.
Há possibilidade de participação do Brasil nesses encontros?
O número de sistemas de ensino que temos muda dependendo das eleições. Quando há eleições, o controle político muda, e há pessoas que estão dentro e querem sair, e pessoas que estão fora querem entrar. Temos sete sistemas, neste momento. Uma das razões pelas quais estou no Brasil é para me reunir com gestores de dois Estados, incluindo o Rio Grande do Sul, para explorar se querem fazer parte do grupo que se reúne em torno desses valores compartilhados. Podemos incluir agentes públicos estaduais, não só nacionais. No Canadá, temos 10 províncias. Toda a educação é decidida por elas; não há uma política nacional de educação. Temos muitos partidos políticos no nosso grupo, mas o que une as pessoas não são os partidos, e sim os valores, a crença em uma educação pública forte.
Qual o futuro da educação com a presença cada vez maior da inteligência artificial no ambiente escolar?
Meu filho, Stuart, é professor de Direito em Hong Kong e escreveu um artigo muito bom sobre IA e exames jurídicos. Ele usou IA para fazer diversos exames de Direito, e o que descobriu foi que, quando as questões são gerais e o exame é padronizado, a IA se sai muito bem. Porém, quando as questões são específicas, baseadas em problemas e locais, como a lei de Hong Kong, a IA tem um desempenho péssimo. Temos de – como acontece com todas as mudanças – descobrir onde estão as oportunidades e onde estão os riscos. As oportunidades são consideráveis. Meu colega cofundador da ARC tem uma empresa de tecnologia educacional que está desenvolvendo estruturas para que os professores usem a IA para planejar aulas simples, como ensinar equações quadráticas, por exemplo. A IA não pode ajudar a fazer um estudo da qualidade da água do rio local e de como ela muda ao longo do tempo, mas, se puder ajudar com o planejamento, especialmente em países onde os professores têm menos tempo, haverá mais tempo para investir em coisas mais complexas. A questão não é sobre se a IA deve substituir os professores, mas sobre qual a melhor forma de a IA apoiar o planejamento dos professores.
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