Temem os comunistas
Eles temem os comunistas, mas dependem do comunismo
O produtor de soja anticomunista vende para os comunistas, compra produtos dos comunistas e teme os comunistas
Por Moisés Mendes / Publicado em 20 de março de 2025

A China compra 70% da soja produzida no Brasil. Mas vá conversar com um agricultor gaúcho, de qualquer porte, e ele dirá o seguinte: o comunismo ainda é uma ameaça, principalmente para quem tem terras. É preciso temer o comunismo e o poder dos chineses.
Os chineses e seus representantes no Brasil querem qualquer pedaço de terra, mesmo metade de uma colônia, o que dá 12,5 hectares. É o que eles dizem. Não é caricatura. Os comunistas estão sempre de olho nas terras brasileiras.
O mesmo agricultor da zona da soja, pequeno, médio ou grande, compra chaleiras, tapetes e cuecas made in China nas lojas do véio da Havan. E vende soja para os chineses, desde muito tempo. Mas tem medo do comunismo, porque o véio da Havan é anticomunista.
Esse agricultor só não usa boné da América grande outra vez, da campanha de Trump, porque não deve encontrá-lo com facilidade. Se encontrasse, usaria, como Bolsonaro, os filhos dele e Tarcísio de Freitas usaram para festejar a eleição do fascista. Usaram e depois esconderam.
O agricultor que teme as esquerdas por causa das conexões imaginárias com o comunismo sabe, porque alguém um dia o informou, que foram os movimentos sociais mais alinhados às esquerdas, e não à direita, que criaram a base do que existe hoje na agricultura intensiva de exportação.
Foram os chamados movimentos de base, com forte participação da Igreja Católica, que ajudaram a criar as cooperativas. E foi a partir das cooperativas que a agricultura se modernizou e virou uma atividade empresarial também nos minifúndios.
Esse agricultor que teme o comunismo mas admira Trump, mesmo que venda soja para os chineses e saiba que Trump está sabotando os interesses do Brasil, esse agricultor deveria saber que até os comunistas brasileiros contribuíram para os movimentos que levaram à ideia do associativismo. E sem associativismo o minifúndio teria morrido.
Sem essa base cooperativada, não existiria a agricultura intensiva. Não teria acontecido, pelo modelo exportador, a conquista do mercado chinês. Mas o agricultor que teme os comunistas, reproduzindo agora os temores de grileiros do centro-oeste, deveria saber mais dessa história.
E agora ostento aqui meu lugar de fala. Porque vivi durante 11 anos na zona produtora de soja. Convivi, no auge da modernização da agricultura, com descendentes de colonos que temiam mais o comunismo do que o pulgão do trigo. Mesmo tendo construído tudo o que têm no associativismo, que permitiu, por décadas, a prosperidade em regiões da agricultura familiar.
Sim, o minifundiário que sabe de onde veio, desde os seus ancestrais europeus, e que tem discernimento suficiente para não ser apenas um anticomunista, esse minifundiário existe. Mas não é maioria, por mais que nos esforcemos para romantizá-lo como modelo de agricultor informado e politizado.
E assim, em meio à guerra declarada por Trump ao Brasil, à Europa e a todos os países não governados pela extrema direita, nosso agricultor anticomunista vai sendo cada vez mais anticomunista, porque Trump seria a única chance de conter a China.
Esse agricultor reacionário não é necessariamente alguém com base ideológica para defender o que pensa. Ele age como anticomunista por ter herdado medos atávicos dos que vieram antes, e não faz questão de se livrar desses temores.
O bolsonarismo, que finge ser anticomunista para ser na verdade negacionista, que odeia a ciência, as florestas, as vacinas e os gays, esse bolsonarismo ressuscitou o agricultor ultraconservador que teme perder 10 hectares de terra, se os amigos dos chineses abrirem as porteiras para o comunismo.
E assim, enquanto Lula o protege, o agricultor anticomunista vai vendendo sua soja para a China, comprando produtos chineses e ouvindo discurso reaça do varejista que importa jogo de chá dos comunistas enquanto exerce sua militância anticomunista e antiLula. Eles temem os comunistas, mas dependem da fome dos porcos do país que ainda leva adiante um comunismo do jeito que dá.
O que o agricultor ganha com isso? Ganha a sensação de que, mesmo com 10 hectares, pensa como o fazendeiro gaúcho e como o grileiro que tem 10 mil hectares na Amazônia. O pequeno agricultor anticomunista é como o pobre da cidade que defende as posições dos ricos.
Ambos, o agricultor e o pobre, são confortados pela sensação de que, ao avalizarem o discurso, os preconceitos e as atitudes dos grandes reacionários, também se tornam grandões.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.
FONTE: