Tortura durante o Regime Militar

Tortura durante o Regime Militar

O QUE FOI A TORTURA DURANTE O REGIME MILITAR? REFLEXÃO HISTÓRICA NOS 46 ANOS DO ASSASSINATO DO JORNALISTA VLADIMIR HERZOG PELA DITADURA

– 25/10/1975 (Fatos históricos e personagens do Regime Militar Brasileiro de 1964 a 1985)

Por MARCOS NAPOLITANO

É fácil explicar a tortura pelo descontrole do aparato policial-militar da repressão ou pela autonomia do porão em regimes autoritários. Costuma-se explicar a tortura até pelo emprego de indivíduos sádicos e psicopatas na repressão, que cometeriam excessos, sobretudo nos casos mais atrozes de violência. Mas nenhuma destas explicações dá conta do fato de que a tortura é um sistema. Como sistema, não é o torturador que faz a tortura, mas exatamente o contrário. Sem o sistema de tortura, organizado, burocratizado e abrigado no aparelho civil e militar do Estado, o indivíduo torturador é apenas um sádico errante à procura de vítimas. Dentro do sistema, ele é um funcionário público padrão. Obviamente, a tortura nunca foi assumida pelo alto escalão militar que comandava o regime como uma política de Estado.

Aqui não se trata apenas de um parti pris ideológico. Qualquer Estado quando atacado pela insurgência tende a reagir, inclusive aplicando meios militares. Tampouco trata-se de confundir a tortura com ‘excessos de energia’ policial, como gostam de dizer as autoridades, ou mesmo com matança de combatentes em situação de conflito. Portanto, nem os argumentos da ‘guerra suja’, em si muito frágeis, justificam a tortura.

A tortura é um sistema, integrado ao sistema geral de repressão montado pelo regime militar brasileiro, que combinou suas facetas ilegais e legais. Os procedimentos da repressão brasileira se pautavam pela combinação de repressão militar (interrogatórios à base de tortura ou execuções dentro da lógica de ‘não fazer prisioneiros’) e rituais jurídicos para imputar culpa, dentro dos marcos da Lei de Segurança Nacional.

Quando um militante ‘caía’, preso em operações militares, ele não era colocado imediatamente sob tutela da autoridade judicial. Via de regra, estas operações eram insidiosas, emboscadas que pareciam mais sequestros à luz do dia. Não havia mandado de busca ou de prisão. Tratava-se de uma operação militar travestida de operação policial. Normalmente, a equipe que capturava o militante não era a mesma que o interrogava. Tratava-se de equipes diferentes, porém coordenadas. Os chefes dos interrogadores eram oficiais superiores (majores, por exemplo), enquanto os chefes dos captores poderiam ser um capitão ou um tenente. Os interrogatórios eram monitorados e gravados.

As regras de exceção do regime permitiam a prisão temporária por trinta dias, sendo que por dez dias o preso ficava incomunicável. Mas, na prática, a repressão tinha grande autonomia e liberdade de ação. Era nesse período que o sistema DOI-CODI (Destacamentos de Operações e Informações-Centro de Operações de Defesa Interna) atuava na forma de interrogatórios para extrair informação. Havia até uma senha para que agentes infiltrados não fossem torturados por engano.

Se sobrevivesse, o preso era entregue à autoridade policial para abertura de inquérito, ao que se seguia a abertura de processo pela justiça militar, posto que os crimes de subversão estavam sob sua alçada, e não da justiça civil. Mas nem sempre este ritual se cumpria. Houve, em algum momento, a inflexão na direção do extermínio e desaparecimento, que na prática implica maior autonomia das equipes de captura e interrogatório, ou mesmo a mescla entre as duas.

Os saudosos do regime militar gostam de dizer que a repressão no Brasil foi branda e restrita, perto de outros regimes similares. Em outras palavras, matou e prendeu pouco, o que para alguns nostálgicos pode ser até motivo de arrependimento. Mas além de o argumento quantitativo não diminuir o caráter da violência e das tragédias humanas produzidas sob o signo da tortura, o fato é que o martelo de pilão estava ativo e poderia ter feito quantas vítimas fossem necessárias. Os homens estavam bem-dispostos para continuar seu trabalho, como atesta a onda repressiva pós-guerrilha. Mas o sistema foi enquadrado politicamente, quando foi preciso, sem obviamente nenhum tipo de punição aos ‘excessos’. No máximo, troca compulsória de comandos militares.

A opção policial em moldes semiclandestinos e ilegais atingiu seu ápice no combate à guerrilha, mas começou a ser desmontado a partir de 1976, pois seu custo político era grande para o projeto de ‘normalização política’ e institucionalização do ‘modelo político’. A utilização de quadros policiais civis, a começar pelo delegado Fleury, envolvido com o esquadrão da morte na mira da justiça paulista da época, era outro problema. O regime até poderia protegê-lo por um tempo, como demonstra a alteração do Código de Processo Penal para impedir sua prisão em novembro de 1973. Mas ele era um quadro vulnerável, até pelo seu envolvimento com o esquadrão da morte. Mesmo os grupos civis liberais que aplaudiam a dureza em relação à luta armada não podiam mais fazer vistas grossas ao funcionamento do martelo de pilão da repressão. Que, aliás, poderia atingir qualquer cidadão (vide o jornalista Vladimir Herzog).

A tortura não é apenas uma técnica de extrair informações, mas também uma forma de destruir a subjetividade do inimigo, reduzir sua moral, humilhá-lo. A invenção do ‘desaparecido político’ alimentava ainda mais o trauma coletivo criado pela tortura. Sem corpo, não há superação do luto e do trauma, familiar ou social. Sem sepultura, o ciclo da memória fica incompleto. A eterna ausência-presença do desaparecido foi uma das invenções mais perversas do sistema de repressão, mas, ao mesmo tempo, politizou as famílias que lutam por informação sobre seus parentes. O argumento da ‘guerra suja’ para justificar o desaparecimento forçado não satisfaz, pois, mesmo ao fim das guerras, os prisioneiros e os que tombaram são devolvidos às suas famílias.

Os quadros recrutados, a começar pelo delegado Fleury, fizeram escola nos esquadrões da morte, bandos tão imorais e violentos que a própria cúpula do regime permitiu que a justiça os combatesse, apesar de uma parte da sociedade considerá-los justiceiros. O esquadrão da morte, entretanto, estava mais preocupado em vingar policiais mortos e vender proteção a bandidos que pudessem pagar, sem falar na participação nos lucros do tráfico de drogas (as milícias não surgiram ao acaso). Apesar dessa evidência, a extrema-direita soube capitalizar a ação dos esquadrões da morte para justificar os seus valores (vide os discursos do grupo bolsonarista atualmente). Era o primeiro capítulo da bem-sucedida luta da extrema-direita contra os direitos humanos no Brasil, antes mesmo de essa expressão se disseminar.

  • Referência:

    NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo, Contexto, 2016.

 

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