No dia em que foi lançada uma frente de esquerda, Zero Hora publicou a réplica à minha resposta ao texto de André Cauduro D’Angelo, Um problema de ancoragem. A coincidência não é à toa: ambos estamos colocando em questão os efeitos da reforma trabalhista e administrativa que serão pauta das próximas eleições.

D’Angelo inicia seu texto usando o 38º estratagema de Shopenhauer em Como Vencer um Debate Sem Ter Razão, o de passar do objeto do debate ao contendor, o que o autor faz ao expor-me como servidor público, o que não fiz com sua posição de professor de universidade privada. Essa é sua forma de acusar-me de escrever minha réplica por minha condição, como se não tivesse o direito de me defender de seus ataques ao serviço público. Os servidores públicos não são um grupo marginalizado apenas por seus baixos salários, produtos de anos sem reajuste: o são também pelo desejo de mantê-los em lugar silencioso, como a proposta de privação do direito de greve do autor propõe. O tiro sai pela culatra: ora, segundo a filósofa Djamila Ribeiro, o meu lugar de fala é sim como servidor público, que me traz a consciência das lutas de minha categoria e que me permite falar com propriedade porque eu falo a partir de minha localização social, ao contrário do que sugere nas entrelinhas o autor, a negação de meu lugar de fala, de que não tenho o direito de falar porque sou servidor público.

O autor diz que não ataca, mas que “critica” o serviço público. Não é bem assim, basta ler o texto. Críticar é analisar qualidades e defeitos, fundar critérios passíveis comuns de discussão; atacar é iniciar uma ação ofensiva contra alguma coisa, expresso na forma do desdém ao servidor, como se vê em “comemorar vitória acachapante, a sua”, “vips” e por aí vai.  Ele parte de dois pressupostos equivocados. O primeiro é considerar que os direitos dos servidores são equivalentes a privilégios, quando não são. Direitos são  estabelecidos em leis e Planos de Carreira; privilégios são vantagens estabelecidos para outras pessoas por indicação pessoal, exatamente com o que sonha os empresários das grandes corporações de plantão que defendem o fim do concurso público. O autor afirma que meu discurso é retorico, mas, quando Aristóteles definiu Retórica no livro que dedica ao tema, queria ir contra seus predecessores que tinham a debilidade de juntar em seus tratados um excesso de considerações no lugar do que deveria ser essencial, exatamente como faz meu crítico que menciona inclusive direitos que já não existem mais, como licença-prêmio e aposentadoria integral, cujos destinos fazem parte do debate eleitoral. Estamos de acordo que o serviço público não é imune a criticas, o problema é o linchamento moral que seu texto faz e que oculta o desejo do desmonte do serviço público, o que combatemos.

O segundo pressuposto é sugerir que vejo em andamento um complô neoliberal contra servidores públicos, o seu pressuposto mais nefasto. A filósofa Donatella Di Cesare já demonstrou que a defesa do estratagema do complô é um artificio do qual o poder se serve, uma visão política onde o mundo é ilegível e possui um lado escondido que arquiteta planos e manipula informações. Minha visão complotista seria um fenômeno patológico, um desvio da verdade,  da qual D’Angelo seria portador. O argumento visa aguçar o ressentimento social, desconsiderar minha crítica e despolitizar o debate que proponho ao seu texto. Em seu mundo, sou objeto de uma cruzada anticomplotista, sou a fake news produto da paranoia popular. Por isso é necessário recusar esse esquema explicativo totalizante que é usado à direita e à esquerda, que reforça a existência de um mundo onde cidadãos se sentem excluídos do espaço público, onde a pólis é inacessível e onde a comunidade interpretativa está fragmentada porque nela também vagueia a verdade (Di Cesare). Dizer que os servidores públicos veem políticas neoliberais como um complô despolitiza a discussão, coloca outro rótulo estigmatizante, já que, como diz Cesare, “complotista é sempre o outro”. Ora, contra o complotismo é necessário ir aos fatos. É errado dizer que temos muitos servidores públicos: nas nações da OCDE, segundo o site e-publico, a proporção de servidores públicos é de 18 para cada cem trabalhadores, e no Brasil esse patamar é de 12 para cada cem; segundo o Ipea, a população de servidores públicos no Brasil vem crescendo na mesma proporção do que na iniciativa privada; é errado dizer que precisamos de menos servidores públicos: países desenvolvidos investem no serviço público, e nos Estados Unidos, com o modelo neoliberal, 15% da população tem cargos  no Estado; é errado dizer que o servidor público não produz: segundo dados do Ipea, a produtividade no serviço público é 45,9% superior à da iniciativa privada, com um aumento de 14,7% ao ano, contra 13,5% do serviço privado.

Para D’Angelo, tudo o que cerca o serviço público é o “mal”. Quando o autor defende que a aposentadoria não deve ser integral, ele nega o princípio que diz que o trabalhador tem direito a se aposentar com a integralidade do que recebia na ativa; quando defende a retirada do direito de greve, ele se mostra contrário a um direito de todos os trabalhadores de resistir as condições de opressão; quando defende aferições de desempenho, algo que o serviço público já faz, propõe mais da velha teoria da gestão criticada por Vicente de Gaulejac em Gestão como Doença Social (Ideias e Letras, 2007), ideologia que legitima a guerra e a obsessão pelo rendimento, imposição da corrida para a produtividade que resulta em atendimento médico em postos de saúde onde o profissional não olha para o paciente e a consultas que duram um minuto. É nisso que queremos transformar o serviço público? Colocar os servidores sob pressão, em situações de competição generalizada que produzem esgotamento profissional, estresse e sofrimento no trabalho. Isso não deve ser imposto a trabalhador algum, e já está sendo feito na iniciativa privada com o processo de uberização. É só relembrar o caso do motorista de aplicativo Kaique Reis, que dormiu enquanto dirigia na marginal Pinheiros e a consequência foi vitimar de forma grave o ex-BBB Rodrigo Mussi, o que gerou mais um debate sobre as condições estressantes de trabalho de plataforma, nova modalidade de exploração do capital.

Na minha visão, a sociedade defendida pelo autor é a do totalitarismo de mercado, onde todos, sem exceção, não terão direito algum; defendo a sociedade sem desigualdade, preocupada com o bem comum e com salários dignos para todos os trabalhadores. É por isso que precisamos valorizar nossas leis, aperfeiçoa-las e surpreende sua crítica à Constituição, lei máxima do país, base de nossa democracia. Essa recusa das instituições e das leis é base do bolsonarismo atual, aparecendo em suas falas e na linguagem de Donald Trump, como demonstrou a tradutora Bérengére Viennot, professora da Universidade de Paris VII em A Língua de Trump. Esse desprezo pelas instituições democráticas e das leis de um pais ocorre porque em um determinado estágio do desenvolvimento neoliberal, o Estado democrático se torna um problema para o mercado. A contrapartida do totalitarismo de mercado é uma sociedade sem leis, principalmente as trabalhistas: negar os documentos que fazem parte dos pilares da democracia é a antessala do fascismo.  

Jim Grote e John McGreeney, em Espertos como Serpentes (É realizações, 2011), fazem uma critica ao universo corporativo e falam que uma das estratégias das chefias nas empresas privadas é a manipulação da culpabilização, que a inveja por salário melhor se resolve pelo sacrifício. Como o mercado explora o trabalho social, baixa salários e estabelece a desigualdade em defesa do lucro, o serviço público também deve fazer um sacrifício também. O filósofo esloveno Slavoj Zizek diz que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo e, da mesma forma, é mais fácil imaginar o fim dos direitos dos servidores públicos do que sua extensão a todos os trabalhadores. D'Angelo acredita que tive um “ato falho”, que o argumento da “inveja” me denuncia: ora, o que a maioria dos trabalhadores deseja não são os salários superiores do serviço público, mas serem tratados com justiça na relação de trabalho, terem salários dignos como os que o Estado oferece aos seus servidores. Segundo o Dieese, o salário mínimo em março deveria ser de R$ 6.394,76, ou seja, 5,3 vezes mais que o salário mínimo atual, de R$ 1.212,00. Se considerarmos, por exemplo, que o teto salarial de professores das séries iniciais em Porto Alegre é de R$ 5.106,98, constatamos que também a função pública está longe de ter o salário digno ideal. E precisamos lembrar que, quanto ao argumento do pagamento de impostos, o servidor público é um pagador de impostos também e seu IRRF contribui para o país como o de qualquer cidadão. Sua réplica faz interpretações que não fiz. O servidor não quer passar a imagem de um “injustiçado” por ser concursado, ao contrário, orgulha-se de ter sido capaz de passar num concurso público, e CCs não são vistos como  privilegiados, ao contrário, trabalham lado a lado com servidores. Há quem trabalhe pouco? Sim, e são objeto de sindicância. Há quem se aposenta cedo? Sim, mas há regras legais quanto a isso. O autor cria conflitos imaginários sobre o campo público onde não há.  

É o que acontece com a noção de efeito de ancoragem. Aqui o autor atirou no que viu e acertou o que não viu. Ele localiza sua crítica à minha posição no conceito de ancoragem, forma resumida de invocar a Teoria das Representações Sociais do psicólogo social romeno Serge Moscovi (1925-2014), teórico dos anos 1960 criticado por reduzir a mente humana a uma caixa preta que processa ideias numa espécie de teoria do consenso e, por isso, acusado frequentemente de imprecisão e ambiguidade por sua pouca rigidez na definição de conceitos. Para D’Angelo, o conceito do autor serve para classificar minha interpretação como “destorcida”, produto do padrão de comparação que adoto, que é o do serviço público. Sua interpretação pode ser aplicada a sua posição: capitalistas não se sentem capitalistas porque são rodeados por outros mais capitalistas do que eles. Entretanto, Moscovi não definiu o conceito de ancoragem como algo negativo; ele não era um conceito de valor, mas um instrumento de descrição de processos mentais, sua forma de dizer apenas que as coisas são assim: “De fato, a representação é, fundamentalmente, um sistema de classificação e de denotação, de alocação de categorias e nomes". E completa: “Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós pensamos através de uma linguagem, nós organizamos nossos pensamentos de acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura”.

Entretanto, o autor tem razão em apontar a importância da psicologia social em nossa interpretação, mas, agora, como objeto de uma disciplina, a Psicopolítica,  que é essencial para fazer a crítica neoliberal. Definida pelo filósofo coreano Byung Chul Han e desenvolvida no Brasil nos estudos de Christian Dunker e Wladimir Safatle, ela modifica o problema principal do ponto de vista psicanalítico: agora, a questão não é mais culpar o indivíduo em suas posições, mas destruir as relações de poder de submissão. D’Angelo parece fazer uma redução psicológica das minhas ideias com a imposição do argumento da ancoragem, mas o que ele quer fazer é reduzir meu argumento político a um problema psicológico, reduzir o que aponto como a luta social que envolve trabalhadores e servidores públicos a uma gramática de emoções vividas por mim. Ora, se trata de dizer justamente o contrário: a nova força de ascensão do mercado no campo social está na produção das escolhas políticas a partir da manipulação das emoções, exatamente o que levou a ascensão do bolsonarismo ao poder. Problemas políticos exigem soluções políticas: usar o conceito de ancoragem de uma teoria psicológica cujos fundamentos se baseiam no consenso é recusar a necessidade de uma teoria do conflito, a Psicopolítica, mais capaz do que a Teoria das Representações Sociais de explicar o tempo que vivemos hoje. Dizer que o faço ancoragem é mais do que simplismo e não corresponde às intenções de Moscovi. Mais honesto teria sido afirmar que, simplesmente, este debate é a demonstração do efeito paralaxe de que fala Zizek, de visões conflituosas que entre sí só podem criar um curto-circuito e que, como o fenômeno fotográfico, são uma forma de desvio do olhar. Para Zizek, a principal é a paralaxe política, que trata do antagonismo social representado pelas ideologias em conflito, no caso, a ideologia de mercado. Não é curiosa a posição neoliberal nas páginas dos jornais que ao mesmo tempo defende menos estado e, na prática, exige mais investimentos públicos na iniciativa privada? O leitor precisa escolher: há dois campos em conflito. A luta entre capital versus trabalho se agudizou: de que lado você está?

 

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