A coreografia da morte
A coreografia da morte
Ou sobre por que a democracia brasileira está em xeque. O filósofo e professor da Universidade de Campinas faz a sua análise da crise política nacional
Por Baby Siqueira Abrão* | Adaptação web Tayla Carolina
O Brasil vive um impasse sem precedentes em sua história. A impressão é de que uma série de caixas de Pandora, escondidas em vários cantos da vida nacional, foi aberta de repente, liberando todos os problemas guardados durante anos. Até mesmo o Carnaval, quem diria, torna-se vítima da perplexidade generalizada.
Maldizer a atual fase pode aliviar sentimentos, mas não leva a nada além disso. O melhor, nessa hora, é procurar entender por que a situação está desse jeito, e para isso nada mais apropriado que recorrer à Filosofia.
O filósofo e professor Roberto Romano, da Universidade de Campinas (Unicamp), faz uma análise sucinta mas fundamental da crise política brasileira, do ponto de vista filosófico e histórico. Romano é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, França.
Autor de diversos livros, ele nos ajuda a entender o período complicado que atravessamos atualmente, mostrando que todos os poderes (sobretudo o Judiciário) bem como a democracia brasileira estão em xeque.
FILOSOFIA • Estamos vivendo uma situação difícil. O poder Judiciário, que teoricamente deveria assegurar o cumprimento da Constituição e das demais leis, as tem violado com alguma frequência.
Em particular desde a AP 470, o “mensalão”, temos assistido a uma série de ilegalidades e irregularidades, como o engavetamento de provas que desconstruiriam a tese da acusação, elaborada pelo ex-ministro Joaquim Barbosa, a adoção do domínio do fato de maneira equivocada, a condenação sem provas dos réus.
Agora, com a Lava Jato, convicções substituem provas, conduções coercitivas são usadas sem justificativa legal e a figura do lawfare faz sua entrada triunfal depois de ensaiar alguns passos ao longo dos últimos anos. Como analisar essa situação do ponto de vista ético?
ROBERTO ROMANO • Cada uma das teses postas na pergunta exigiria volumes de reflexões, análises teóricas e práticas, pois todas remetem para polêmicas de fundo e não de superfície. Seria preciso demonstrar cada uma delas, com elementos factuais e lógicos, no campo do direito e da ética.
O elemento mais importante, no entanto, é situar aqueles processos judiciais no campo mais amplo em que se movem todos os partidos políticos brasileiros, todas as instâncias oficiais e privadas, todos os atores do embate permanente em que se jogou o Brasil.
Sem dúvida existiram e existem ilegalidades em todos os setores do Estado e do coletivo social nacional. Se indicamos “todos”, exceções não podem ocorrer. Assim, o uso dos cofres públicos para fins partidários e de poder é fato que surge em todos os partidos políticos, incluindo aí a direita, o centro e a esquerda.
Dado que a máquina do mando e da dominação política só é movida por alianças que apenas chegam à efetividade com muito dinheiro, a totalidade dos partidos não é indene, sem culpa. Ocorre aqui, desde longa data, o que pesquisadores, entre muitos como Jens Ivo Engels (Apadrinhamento e corrupção política na Europa contemporânea, Paris, Armand Colin, 2014) descreve com rigor exemplar.
Na Europa do século XIX, mais exatamente na Grã-Bretanha, surge o fenômeno: para ganhar eleições, os partidos preparam quadros para serem nomeados nas empresas públicas ou mesmo privadas. A função daqueles quadros é extrair recursos para as agremiações, reforçando os caixas.
O partido se torna “padrinho” de indivíduos e grupos que subtraem recursos para as eleições. Nos Estados Unidos, tal modo de operar foi importante com o presidente Andrew Jackson, eleito em 1828, que instalou cabos eleitorais nos vários escalões administrativos.
Apesar da mudança trazida pelo Pendleton Act (1883), que exigia concursos e padronizava as contratações de pessoal, o costume foi mantido em grande parte. Hoje, tal apadrinhamento ainda ocorre na França, na Itália, na Alemanha. Ele vigora no Brasil, mas é pouco pesquisado. O processo do referido “mensalão” tocou, portanto, em algo real, mas punido de modo tortuoso.
O maior peso das denúncias e sentenças caiu sobre os que moviam o governo em exercício, posto sob o nome da esquerda mas com apoio decidido de importantes lideranças pessoais e coletivas da direita, como é o caso do PMDB. As sanções negativas, naquele processo foram aplicadas sobre os mais próximos da esquerda, deixando-se na sombra amplos setores da direita e do centro (o caso mais escandaloso foi e ainda é o do PSDB).
Se a unilateralidade nas sanções negativas foi relevante na AP 470, na Lava Jato entramos em território muito mais perigoso, quando se trata do devido processo legal e da presunção de inocência. A equipe de promotores e juízes, tendo como guarda-chuva protetor alguns tribunais superiores, incluindo o STF, age mais como grupo inquisitorial, afastando-se da justiça.
Estamos próximos do que ocorreu nos tribunais de exceção durante as ditaduras Vargas e a de 1964: baseados em delações, sem maiores cautelas probatórias, os funcionários do Judiciário acusam tendo como suporte suas convicções, ficando aquém dos fatos e das leis.
Nas famosas 10 Medidas, propostas por eles em nome do povo brasileiro (que tem mais de 200 milhões de integrantes, quando o abaixo-assinado incluía apenas dois milhões), teses opostas ao direito foram anunciadas, como as provas tisnadas pela ilegalidade, mas tingidas pela boa-fé subjetiva dos funcionários.
Agora, o grande vilão de toda a crise não se encontra apenas no Judiciário. Temos diante de nós a crise de todo o Estado, incluindo os três poderes. O escândalo Aécio Neves, liberado pelo STF para ser protegido pelo Senado, mostra o conúbio do Legislativo e do Judiciário para garantir o Executivo, que tem à frente Michel Temer.
Todo o sistema de governo e poder no Brasil está vincado em processos “realistas” que garantem a impunidade e a corrupção de quem opera o Estado, nas suas três vertentes. O descrédito que a população mostra para com todos eles é um sinal de perigo. Não apenas a democracia parlamentar naufraga, mas a própria democracia.
Juízes, promotores, políticos, partidos dançam a coreografia da morte, diante do quase cadáver da vida pública. Aí, não existe esperança de regeneração coletiva, apenas de fracasso e servilismo.
As “reformas”, impostas à custa de muito desvio de recursos públicos para pagar emendas parlamentares, não desmentem: a igualdade está sendo abolida, retornamos ao regime do trato desigual entre governantes e governados, de juízes e cidadãos, de patrões e empregados. A portaria que define o retrocesso no combate ao trabalho escravo é mais do que eloquente de tal regressão à selvageria.
*Baby Siqueira Abrão, jornalista e editora, é graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).