A entrevista e o futuro
A entrevista e o futuro
Por Marcos Rolim / Publicado em 16 de agosto de 2022
Fernando Haddad concedeu uma excepcional entrevista a Caetano Veloso, colunista do Mídia Ninja, sobre o seu mais recente livro O Terceiro Excluído (Zahar, 2022, 288 p.), resultado de reflexões para uma antropologia dialética inspiradas por uma conversa com Noam Chomsky às vésperas do 1º turno das eleições presidenciais de 2018. Se você não assistiu à entrevista, não perca essa oportunidade. Dê a você mesmo esse presente.
Haddad é professor da USP, doutor em Filosofia, mestre em Economia e graduado em Direito, uma formação acadêmica interdisciplinar que ajuda muito quando se trata de pensar os maiores desafios políticos.
Destaco a entrevista – que me motivou a ler o livro com grande prazer –, primeiro, porque não é comum vermos políticos brasileiros abordando com propriedade temas teóricos complexos; segundo, porque é ainda mais raro que, ao invés de mobilizar dogmas e pressupostos ideológicos, políticos se utilizem de evidências para sustentar suas posições, ou seja, que o façam a partir da ciência, como crítica à dogmática.
No mais, me parece elogiável que Haddad sustente suas posições em um tom que convida sempre ao diálogo, que aposta no argumento, mas não se embriaga nele, mantendo a saudável consideração pela crítica e pela necessidade de superar eventuais limites pelo debate público, o que caminha na direção oposta à incomunicabilidade que marca nosso tempo.
Haddad sustenta que a esquerda brasileira está desarmada teoricamente para oferecer respostas eficientes aos maiores desafios do mundo e que isso tem a ver com a prisão conceitual dentro da qual a maioria dos quadros e militantes segue interpretando os fenômenos sociais.
Com toda a razão, ele sustenta que os clássicos da Sociologia, da Economia, da Filosofia nunca se imaginaram profetas. Pelo contrário, mantinham diante de suas próprias posições a insatisfação epistemológica típica dos cientistas.
Haddad refere que se Marx, Weber, Pareto, Durkheim estivessem vivos, estariam pesquisando os novos fenômenos sociais e construindo novas teorias com o objetivo de melhor compreendê-los. A esquerda brasileira, pelo contrário, trata suas referências teóricas, Marx, entre elas, como se elas tivessem “revelado a verdade”, uma postura que faz lembrar a sujeição religiosa ao sagrado.
Não sabemos o que ocorrerá com o Brasil nesse período turbulento que se aproxima e, pela primeira vez desde décadas, temos uma atmosfera política cada vez mais pesada por conta das ameaças de ruptura com a ordem democrática oferecidas dia sim, outro também, por Bolsonaro e pela emergência da violência política, um tipo de prática que costuma ser a consequência do ódio disseminado pelo projeto totalitário que se gesta entre armas e hinos.
É necessário construir a resistência ao golpe anunciado ocupando as ruas e as praças com grandes atos públicos. Manifestos e notas são necessários e sinalizam, na sociedade civil, importantes posições em defesa das instituições e da própria realização das eleições. Para barrar o golpe, entretanto, será preciso contar com a disposição de luta de milhões de pessoas.
Uma vez vencidas as ameaças de ruptura – o que está longe de estar resolvido, será preciso começar a construir no Brasil uma alternativa política distinta de tudo aquilo que está aí; algo que movimentos como o Apruebo Dignidad no Chile, de Gabriel Boric, e o Colombia Humana, de Gustavo Petro, parecem começar a esboçar na América Latina.
Uma nova agenda demandará centralidade às exigências de dignidade e reconhecimento da pauta dos direitos humanos, à luta contra o aquecimento global e as mudanças climáticas, à proteção dos povos originários, à igualdade racial e de gênero, ao combate à corrupção e aos privilégios, à definição de políticas públicas com base em evidências, entre outros desafios que, tradicionalmente, nunca foram centrais na pauta da velha esquerda.
As possibilidades de uma alternativa política inovadora no Brasil estão muito mais presentes nos novos movimentos sociais e nas articulações independentes da sociedade civil do que nos partidos políticos e nas instituições do Estado.
Mesmo assim, haverá a necessidade de que algumas lideranças políticas representativas sinalizem sua adesão a um movimento transformador, o que pressupõe disposição e maturidade para superar antigos paradigmas e romper com discursos e condutas que se revelaram não apenas incapazes de mobilizar a população em torno de lutas concretas e de oferecer ao país um programa coerente de reformas estruturais, mas que foram agenciando estruturas burocráticas e estratégias de poder avessas à virtude.
O que decidiremos nos próximos meses, em síntese, não será o futuro do Brasil, mas, antes, se teremos como nação algum futuro. A disputa agora é se teremos democracia ou ditadura no café da manhã. Para tratar do futuro, será preciso construir um novo sujeito político. Não sabemos como ele será, nem se será; mas, se for, entendo que lideranças com a capacidade e o perfil de Fernando Haddad estarão à frente dele.
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.