A esquerda morreu?
A esquerda morreu?
A luta de classes e o ponto cego de Vladimir Safatle
Pedro Carrano -
Safatle define a morte da esquerda, mas não aponta qualquer caminho.
Imagens USP
A esquerda renascerá com força apenas se estiver firme no movimento e nas angústias da classe
“Não estamos perdidos. Pelo contrário, venceremos se não tivermos desaprendido a aprender”, Rosa Luxemburgo
“Soube que vocês nada querem aprender”, Brecht
"É preciso saber adaptar-se a todos os terrenos oferecidos pela realidade, explorar todos os motivos de agitação, insistir numa ou noutra forma de organização de acordo com as necessidades e segundo as possibilidades de desenvolvimento de cada uma delas”, Gramsci.
1. Análises catastrofistas tomam conta de organizações e intelectuais da esquerda neste momento difícil de impasse do terceiro governo Lula. Nas redes sociais, o filósofo Vladimir Safatle conseguiu pautar o mote de que a esquerda teria morrido. Mas do que se está falando? E isso deve se limitar a uma resignada constatação?
2. É certo que o momento é difícil. No Brasil, na América Latina e no mundo, vivemos um longuíssimo eixo histórico contrarrevolucionario, já maior do que o intervalo entre a Comuna de Paris e a insurreição de 1905 na Rússia. Se tomamos em conta que a revolução contemporânea mais próxima é a sandinista de 1979 e o processo complexo bolivariano desde 1998, com seus limites, ataques e isolamento. Ao mesmo tempo em que está dispersa no plano mundial, a esquerda se depara com o neofascismo vertebrado, com debate ideológico, mundializado e força de massas em muitos países – EUA, El Salvador, Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Itália, França, Portugal, Hungria, Ucrânia, entre outros. Ainda que o bloco China e Rússia ofereçam uma contraposição, mas que não é o mesmo papel de retaguarda já cumprido pela antiga URSS.
3. A crítica de Safatle divide-se entre o que pode ser aproveitado como correto, porém com um grave ponto cego na sua argumentação. Desde muito tempo, ele vem tentando o slogan: a esquerda morreu, como sugere artigo de 2020. Acerta se tomar em conta a falta de influência hoje dos partidos de esquerda. E a crítica ao fato de que o governo Lula repete o mesmo erro anterior de se manter na defesa institucional e não convocar as massas de forma pedagógica para participar dos rumos da política, deixando para a direita a luta antissistêmica. Porém, Safatle erra ao dar a entender que esse debate se limita a uma superestrutura discursiva, linguística, gramatical, de mera ausência de convocatória das organizações, ignorando que, enquanto houver luta de classes, a esquerda sempre terá um campo possível de atuação. E aqui deveria estar o foco do debate.
4. As preocupações são compreensíveis e estão em artigos dos principais analistas. O último sinal amarelo foi emitido pelo próprio Zé Dirceu. O terceiro mandato de Lula enfrenta um cenário mais difícil que aquele dos anos 2000. Ao lado do previsível ataque dos meios de comunicação, o governo enfrenta uma oposição organizada, nas ruas e no congresso. Tem menor margem de manobra na economia, ainda mais com a definição da nova regra fiscal para este ano. E os programas emergenciais são disputados na base pelos partidos de direita ou fisiológicos. Para ter um único exemplo, na semana passada o lançamento do programa Pé-de-meia – boa iniciativa para garantir permanência no ensino médio – foi feito pelo ministro da Educação, Camilo Santana, ao lado do governador autoritário Ratinho Jr, em lugar de ser na universidade ou em um sindicato.
5. De fato, a atual retomada de programas antes derrubados por Bolsonaro são um alívio perto dos ataques do genocida. De fato, são medidas emergenciais e importantes. Mas, ainda assim, não são reformas estruturais, com objetivo de democratizar o acesso à terra urbana, rural, à renda, e com isso politizar e convocar os trabalhadores para a luta.
6. Diante disso, de nada adianta simplesmente culpabilizar a esquerda pela comunicação, e o povo por suposta falta de entendimento, argumento que tantas vezes aparece na mídia progressista, quando o que deveria ser pensado são processos de inserção e retomada de confiança entre trabalhadores e vanguarda a partir da vida e interesses concretos da classe. No entanto, este é um ponto cego para o filósofo Safatle, preocupado com a linguagem mais atrativa para as massas se mobilizarem em nossa direção. É fato: não será assim.
7. Diante disso, análises como a de Safatle revelam idealismo e aparência na medida em que:
a) Desconsideram a conjuntura e o momento de derrota estratégica e recuo da classe trabalhadora, a única força capaz de alterar a correlação de forças e causar rupturas no sistema político; em sete anos, ao contrário, houve redução da base sindical formalizada, aumento do desemprego, vínculos de trabalho cada vez mais pontuais. O profundo ataque contra a organização dos trabalhadores materializado na aprovação das terceirizações. Relações de trabalho que tornam-se cada vez mais pontuais. A recomposição deste cenário não é moleza. As consequências e reordenamento da atuação neste cenário ainda precisam ser compreendidas pela esquerda.
b) A própria esquerda acomodou-se com a reclamação de ausência de trabalho de base. Se a resposta hoje se limita à realização de eventos esporádicos, é fato que já não tem mais incidência na vida real das pessoas. Se é necessária uma inserção cotidiana, como fez a teologia da libertação nos anos 70, ela deve ser retomada e repensada. O “fermento na massa” que Gilberto Carvalho afirmou que a militância cumpria nos anos 70 já não cumpre mais - além de selfs e eventos militantes.
8 - O problema é que esse método de inserção deve ser cotidiano. As organizações necessitam de uma práxis que envolva o debate ideológico aliado a pautas que dialoguem concretamente com a vida das pessoas.
9 - Cada militante organizado em movimento, frente, sindicato ou frente de massa, deveria ter o seu local de inserção e incidência, criar referência, ajudar a construir um centro cultural, identificar os "gatilhos" - pra usar um termo da moda -, que em dada realidade mobiliza um setor dinâmico da classe trabalhadora. Apoiar greves, lutas cotidianas e ajudar a vincular com as lutas mais amplas.
10 - Hoje, a esquerda abre flanco para o neofascismo porque este movimento conta com a possibilidade de trabalhar com o senso comum, do mágico/religioso até questões imediatas das condições de vida das pessoas. A esquerda, ao contrário, ao trazer muitas vezes debates do terreno da propaganda para a tática, afasta, constrange o povo, não o envolve. Muitas vezes a esquerda confunde agitação e propaganda. Muitas vezes propõe campanhas descoladas das condições de vida do povo, de suas possibilidades, como agendas extensas, calendário apenas para militantes profissionais, focados nos bairro do centro, espaços longos e tediosos inacessíveis aos trabalhadores – o que inclusive pode gerar certo ranço com a esquerda, considerada intelectual e distante. Neste sentido, recusa-se a participar naquilo que ainda faz parte do cotidiano do povo. O primeiro passo de uma nova esquerda poderia ser carregado de humildade.
11. No Paraná, sem dúvida nos recentes quatro anos, a experiência da campanha Despejo Zero talvez não seja o melhor exemplo, mas vale recordar que uma campanha que tem levado até quatro mil pessoas às ruas exclusivamente de comunidades, mostra a importância de valorizar as pautas que toquem nas condições de vida do povo, respeitar seu tempo organizativo, e a vanguarda contribuir com suas ferramentas e acúmulos: comunicação, organização, elaboração de pauta e experiência em negociações, socializadas pela vanguarda com as comunidades geraram respeito e participação inéditos em Curitiba, fazendo com que a campanha Despejo Zero seja um referente de respeito em Curitiba e região metropolitana, ao apostar em um trabalho cotidiano e não apenas em convocatórias gerais e abstratas, impossíveis para esta exata conjuntura.
12. A constatação correta de que a classe trabalhadora sofreu uma derrota estratégica com o golpe de 2016, o que arrastou toda a esquerda no desvínculo e desgaste com parte da classe trabalhadora, exige a constatação de um novo ciclo sem dúvida é necessário. Mas aqui entra o problema de Safatle, decretando a morte sem apontar nenhum caminho. E o único caminho possível para a esquerda revolucionária e que busca reformas estruturais, e busca o poder popular, é uma inserção paciente no seio da classe trabalhadora, e não análises diletantes - concordando com crítica apresentada por Valerio Arcary sobre este debate.
13. Uma esquerda que deveria concentrar-se em oferecer 80% do seu tempo na construção de saídas cotidianas para o povo trabalhador, e apenas 20% em eventos, jantares, lançamentos etc. Infelizmente, a equação infelizmente hoje é a inversa.
14. A inserção e a práxis do partido como órgão coletivo de propaganda, inserido e dialogando com a classe operária parece estar perdido. O fato de ser um militante acadêmico não exime Safatle de não pensar aquilo que é o central em nosso país e apenas decretar “A esquerda morreu”. Afinal, Marx, Engels, Lenin, Rosa, Gramsci, Marighella, Mariátegui, Martha Harnecker, Prestes, Shafik Handal, Amilcar Cabral, todos intelectuais inseridos e preocupados com o processo e o estado de ânimo das massas em cada conjuntura, entenderiam tamanho desvinculo entre a classe e suas organizações?
15. Uma esquerda viva. Podemos aceitará crítica de Safatle como crítica à morte da vanguarda após o golpe de 2016. Podemos nos somar à demanda de que Lula deveria recorrer mais à convocatória, informação e educação das massas. Essa é a sua opção latente, mas também o seu inevitável limite. Porém, a esquerda renascerá com força apenas se estiver firme no movimento e nas angústias da classe.
16. Outro lugar não há.
Edição: Lucas Botelho
FONTE