A farsa da crise hídrica
A farsa da crise hídrica no setor elétrico
Discurso de seca na região sudeste camufla a realidade e serve para justificar aumentos abusivos na conta de luz do povo brasileiro, permitindo aos agentes empresariais do setor elétrico lucrar alto na pandemia
O governo Bolsonaro e os agentes empresariais que controlam o setor elétrico nacional afirmam que há uma crise de escassez hídrica que levou ao esvaziamento dos reservatórios das usinas hidrelétricas. Segundo seus argumentos, a região sudeste passa pela pior seca dos últimos 91 anos.
Para lidar com essa realidade, o governo Bolsonaro publicou a Medida Provisória nº 1.055, de 28 de junho de 2021, que prevê ações emergenciais e regras excepcionais para o uso dos recursos hidroenergéticos. Na mesma lei, autorizou que os custos serão ressarcidos por meio de encargos na conta de luz da população. Ou seja, o povo vai pagar a conta.
Para evitar desgastes políticos, aterrorizam a população brasileira com campanhas publicitárias cuja mensagem é que estamos sendo castigados pela falta de chuva. Portanto, diante dessa situação, se não formos “educados” o bastante para um suposto “consumo racional”, seremos castigados com racionamentos de energia elétrica e aumentos na conta de luz. Esse foi o tom do pronunciamento feito em rede nacional pelo Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, na noite desta segunda-feira (28).
É verdade que o volume dos reservatórios nacionais possui apenas 40% de água armazenada, a segunda pior situação desde a privatização do setor na década de 1990. Porém, como chegamos a esta situação? Aqui residem as mentiras e ocultamentos, como mostraremos a seguir.
Não foi falta de chuva
É falso alegar que os reservatórios estão vazios por uma suposta seca no sudeste brasileiro. Os dados do Operador Nacional do Sistema (ONS) revelam que o volume de água que entrou nos reservatórios das usinas hidrelétricas brasileiras durante o último ano é o quarto melhor ano da última década, equivalente a 51.550 MW médios. No entanto, o volume de energia produzida por hidrelétricas ficou em 47.300 MW médios, ou seja, 4.250 MW médios abaixo da quantidade de água que entrou nos reservatórios no mesmo período, o equivalente a uma usina de Belo Monte. O fato é que entrou mais água nos reservatórios (energia natural afluente) do que saiu pelas turbinas para gerar energia (vazão turbinada).
O discurso da “crise hídrica” também esconde que o esvaziamento dos reservatórios das usinas foi provocado principalmente durante o ano de 2020, em plena pandemia, quando ocorreu uma queda média de 10% no consumo nacional de eletricidade desde o início do Covid-19 em nosso território. Os reservatórios foram esvaziados sem que houvesse necessidade de atender a um aumento na demanda, uma vez que ela diminuiu.
Assim, em diversas usinas, a começar por Itaipu, a operação foi realizada com evidente interesse de gerar escassez para explodir as tarifas. Toda essa água vertida poderia ter sido armazenada ou transformada em energia, sem aumento dos custos. Mas não foi o que aconteceu. Os donos das hidrelétricas não perderam dinheiro com isso, pois o chamado déficit hídrico é cobrado integralmente nas contas de luz da população.
Quem ganha com o esvaziamento dos reservatórios?
Se algumas usinas jogaram água fora, outras foram operacionalizadas para produzir acima da média, principalmente as privadas, o que também levou ao esvaziamento. Estas, além de lucrar com o que constava nos contratos de comercialização, também faturaram alto vendendo o excedente a preços abusivos no chamado “Mercado de Curto Prazo” (MCP), via Preço de Liquidação das Diferenças (PLD). Aqui, predomina a lógica de que quanto mais vazios os lagos, mais alto é o preço.
O esvaziamento dos reservatórios também permite ao governo Bolsonaro autorizar o funcionamento de todas as usinas termelétricas (a gás, petróleo, carvão, bagaço-de-cana, etc), inclusive as mais caras. E sabemos que, em geral, os donos das hidrelétricas também são donos das termelétricas.
Para se ter uma comparação, enquanto dezenas de hidrelétricas estatais vendem energia a R$ 65,00/MWh, dezenas de usinas térmicas estão sendo autorizadas a funcionar cobrando acima de mil reais pela mesma quantidade de energia. Por exemplo, a usina térmica William Arjona (MS) foi autorizada pela ANEEL a cobrar R$ 1.520,87/MWh. Tudo isso beneficia os mesmos empresários e tudo vai cair na conta de luz do povo.
Estes empresários também estão recebendo o dinheiro cobrado nas contas de luz via bandeiras tarifárias. Logo após o pronunciamento do ministro de Minas e Energia, a Aneel autorizou um aumento de 52% na bandeira vermelha patamar 2. A cobrança extra – cuja justificativa é justamente a “escassez hídrica” – passou de R$ 6,24 para R$ 9,49 a cada 100 kWh consumidos. Este patamar representa um aumento de 17% na conta de luz dos consumidores residenciais, o que significa que, por meio deste mecanismo, o povo brasileiro vai pagar R$ 2,5 bilhões por mês para os mesmos agentes empresariais que esvaziaram as usinas e agora estão faturando alto com a crise energética!
Também há casos escandalosos de usinas recebendo para ficarem desligadas, como é o caso da Eletronuclear. Já que estamos pagando sua energia, por que não gerar e desligar as térmicas privadas, que são mais caras?
Porque chegamos a esta situação? Porque o governo abriu mão do controle e permitiu executar um planejamento que colocou o funcionamento das usinas acima de qualquer racionalidade. Liberalizou por completo ao chamado “mercado”, aos grupos privados que operam as usinas com um único objetivo: o lucro máximo. Uma pilhagem financeira para privilegiar a burguesia que sustenta este governo.
A culpa não é do povo nem do clima
A farsa da crise hídrica revela que, em plena pandemia, prevalece a especulação financeira e o parasitismo empresarial privado no controle das usinas hidrelétricas e termelétricas. Essa é a consequência mais brutal da privatização e da destruição da soberania energética, que agora se aprofunda com a privatização da Eletrobrás, aprovada pelo Congresso na semana passada.
De quebra, criou-se uma situação em que o governo e as instituições de Estado que comandam a política energética estão completamente capturados pela burguesia financeira e grupos empresariais do setor elétrico. Assim, também agem como serviçais para entregar a Eletrobrás praticamente de graça o mais rápido possível.
Tudo isso causará um tarifaço na conta de luz do povo brasileiro, que durará por muitos anos, como temos denunciado frequentemente.
Prevendo os aumentos abusivos nas contas de luz, o governo Bolsonaro tenta construir uma mensagem que joga a culpa no clima e no povo. Falseia a realidade para tirar sua responsabilidade sobre os rumos da política energética.
A culpa não é do povo e nem do clima. Se há um responsável pela situação a que chegamos é o próprio governo Bolsonaro e os agentes empresariais que tomaram conta do sistema elétrico nacional.
O povo brasileiro não pode aceitar tamanha agressão. É necessário um amplo processo de debate com toda a sociedade brasileira, no qual se esclareçam os verdadeiros fatos e os reais interesses por trás dessa farsa. Ao mesmo tempo, precisamos resistir e lutar para derrotar até o fim e a fundo a política energética em curso, liderada por um governo entreguista com características neofacistas. É necessário construir uma nova política para o setor energético nacional, com soberania, distribuição da riqueza e controle popular.
Reprodução do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Brasil revive crise energética e risco de apagão
No último dia 28 de junho, o Ministro de Minas e Energia, Almirante Bento Albuquerque, anunciou em cadeia nacional de televisão que o governo adotaria medidas para evitar um racionamento de energia, que nosso sistema elétrico é robusto e que se a sociedade colaborar, será possível atravessar sem maiores sobressaltos a grave crise hídrica pela qual passa o país.
É evidente que a situação não está sob controle. Não é usual que um Ministro desta pasta venha em cadeia nacional comunicar aos brasileiros que tudo transcorre normalmente.
No mesmo dia foi editada a Medida Provisória 1.055/21, criando a Câmara de Regras Excepcionais para a Gestão Hidroenergética (CREG). Se foi necessária a criação de um órgão para adotar regras excepcionais, fica claro que há uma crise e que haverá impactos negativos para a sociedade.
Como agravante, no dia seguinte ao anúncio da MP 1.055, a ANEEL determinou um reajuste de 52% no valor da bandeira vermelha nível 2. A verdade é uma só: independentemente de não ter sido anunciado claramente pelo Ministro Bento Albuquerque, ou estar expresso na MP, o racionamento já começou.
Tendo em vista a gravidade da crise, os sintomas são de que o governo escolheu lidar com ela de maneira gradual, escalando o rigor das medidas, de acordo com o desenvolver dos acontecimentos. Ou seja, ao invés de anunciar um plano detalhado para a sociedade, com cronogramas definidos, cenários possíveis e medidas de enfrentamento, o governo prefere agir de forma pouco transparente e estratégica, anunciando as medidas espaçadas, testando seus impactos e fazendo avaliações táticas.
Analisemos agora as duas medidas do racionamento efetivamente adotadas nas últimas 24 horas:
1) Edição da MP 1.055/21: O CREG, órgão colegiado, coordenado pelo Ministro de Minas e Energia e tem por objetivo “estabelecer medidas emergenciais para a utilização dos recursos eletroenergético e para o enfrentamento da atual situação de escassez hídrica, a fim de garantir a continuidade e segurança do suprimento eletroenergético do país”. Ou seja, o racionamento começa pelo lado da oferta, nesse caso, de água. Como é sabido a água dos reservatórios de nossas hidrelétricas possui usos múltiplos, como irrigação, piscicultura, turismo, abastecimento animal e humano e geração de energia elétrica.
Está explícito que, tendo em vista a crise hídrica e energética, será dada prioridade para o uso energético da água dos reservatórios. Isso, em um contexto de escassez, levará a inevitáveis conflitos, pois os demais usuários dos recursos hídricos, certamente sofrerão prejuízos que vão impactar nas mais diversas atividades econômicas, como a agricultura e o transporte aquaviário, por exemplo;
2) Reajuste nas bandeiras tarifárias: No dia 29/06 a ANEEL reajustou as bandeiras tarifárias, instrumento utilizado para sinalizar o risco hidrológico e endereçá-lo ao consumidor. No momento, o Brasil está submetido à bandeira Vermelha Nível 2 (o patamar mais elevado) e esta bandeira sofreu um reajuste de 52%. É o racionamento pela perspectiva da demanda.
Ao reajustar o patamar da bandeira tarifária e sinalizar a possibilidade de fazê-lo novamente em breve, a ANEEL coloca no consumidor o custo da geração adicional de energia termelétrica (mais cara) e busca objetivamente inibir o consumo.
Seriam essas medidas suficientes?
A resposta a essa pergunta depende de algumas variáveis:
1) Hidrologia: Estamos ainda no início do período seco nas regiões Sudeste e Centro-Oeste (que concentram 70% da capacidade de armazenamento do país) e é muito pouco provável que haja chuvas suficientes para recuperar os reservatórios até o início previsto do período úmido, em novembro. Além disso, caso não haja chuvas bem acima da média histórica entre o fim de 2021 e o começo de 2022, há uma tendência forte de que a crise energética do próximo ano seja bem mais grave;
2) Crescimento econômico: No Brasil o crescimento econômico está sempre associado ao crescimento do consumo de energia elétrica, geralmente em um fator de 1 para 1,5. Ou seja, se a economia (PIB) crescer 5% esse ano, como preveem alguns economistas, podemos ter um crescimento do consumo da ordem de 7,5%. É importante ressaltar que no ano passado como um todo, apesar da economia ter desabado 4,1%, o consumo de energia recuou apenas 1%. Esse crescimento do consumo gerado pelo aquecimento da economia, impulsionado pela diminuição das restrições da pandemia, pode de fato gerar situações de risco de blackout por sobrecarga, principalmente nos horários de pico.