A grande lição da pandemia
“A grande lição da pandemia é esta: nada substitui o ensino presencial”
Nuno Crato, ex-ministro da Educação, recorda os constrangimentos dos últimos meses, olha para o arranque do novo ano letivo, fala sobre mais uma etapa escolar, em entrevista ao EDUCARE.PT. Em seu entender, as novas tecnologias são auxiliares extraordinários, mas o contacto direto é insubstituível.
Sara R. Oliveira 09-09-2020
O novo ano letivo está à porta e o receio de contágio e a dificuldade de manter as regras estipuladas naturalmente dominarão as primeiras semanas. Nuno Crato, professor catedrático de Matemática e Estatística, ministro da Educação e Ciência entre 2011 e 2015, defende o ensino presencial porque nada é capaz de substituir o contacto direto.
As atenções estão concentradas na reabertura das escolas, no regresso de alunos e professores, no início de mais uma etapa escolar. E o país entra em estado de contingência a 15 de setembro por causa da pandemia. Nuno Crato espera que os medos sejam ultrapassados e que se retomem as atividades letivas orientadas por metas curriculares “claras e ambiciosas”. “As metas existem. Existem bons manuais escolares. Professores e escolas sabem que o sucesso real implica ambição e trabalho”, refere ao EDUCARE.PT.
A recuperação das matérias não consolidadas no ano letivo passado faz parte dos planos da tutela nas primeiras semanas de aulas. O ex-ministro da Educação afirma que não faz sentido rever matéria em oposição a avançar na matéria. “Rever matéria no sentido de repetir matéria dada pode ser inútil e, no extremo, prejudicial”, comenta.
O importante é prosseguir e colmatar dificuldades à medida que se avança e ir testando a aprendizagem. “Como em todo o ensino, o importante é ter metas. O objetivo do ensino, seja presencial seja remoto, não é entreter os alunos em atividades, muito menos em atividades dispersas e pouco estruturadas, o objetivo é progredir em conhecimentos e formação”, sublinha o professor que preside à Iniciativa Educação que promove a aprendizagem da leitura, o desenvolvimento do ensino profissional e divulga informação e conhecimento sobre Educação – programa que “pretende ajudar o sucesso dos jovens, apoiando projetos exemplares, com potencial efeito multiplicador no sistema educativo e na sociedade”.
EDUCARE.PT: Depois de um ano letivo atípico, o que é preciso ter em atenção no arranque da próxima etapa escolar?
NUNO CRATO (NC): Tantas coisas! Infelizmente, pelo menos numa primeira fase, e esperemos que seja o mais curta possível, o ambiente vai ser dominado pelo receio de contágio e por dificuldades de manter as normas. Mas esperemos que tudo seja ultrapassado e rapidamente se retomem as atividades letivas orientadas por metas curriculares claras e ambiciosas. As metas existem. Existem bons manuais escolares. Professores e escolas sabem que o sucesso real implica ambição e trabalho.
E: A recuperação das aprendizagens não consolidadas nas primeiras cinco semanas de aulas é uma boa medida? Consolidar antes de avançar?
NC: Todo o professor sabe que rever matéria não faz grande sentido se for tratada em oposição a avançar na matéria. Rever matéria no sentido de repetir matéria dada pode ser inútil e, no extremo, prejudicial. Por um lado, pode esmorecer os alunos, por sentirem que estão a repetir coisas já tratadas. Por outro lado, cria habitualmente uma falsa sensação de confiança, pois os alunos, ao ouvirem coisas repetidas, sentem que já sabem tudo sobre o que está a ser discutido.
Ou seja, o importante é ir avançando e colmatando as dificuldades à medida que se avança. E ir testando a aprendizagem, que é uma das melhores formas de a solidificar. Mas os professores saberão encontrar o bom equilíbrio.
Deixe-me dar dois exemplos. Imagine-se que alguns alunos têm ainda dificuldade em somar dois números de um dígito cada, mas isso já foi ensinado e a maioria da turma já o domina. Não faz sentido repisar o que já devia estar sabido, mas faz sentido, por exemplo, ao ensinar a adicionar números com dois dígitos ou mais, ir verificando as dificuldades da turma e de alunos menos avançados e ajudando a colmatar deficiências anteriores.
Outro exemplo: imagine-se que se estudaram os rios da Península Ibérica. Não vale a pena repetir ‘ipsis verbis’ o que se estudou, mas pode valer a pena discutir as vias de comunicação e integrar as vias fluviais nesse estudo reforçando o que já devia estar sabido. Isto é o que os professores sabem fazer e fazem.
Claro que é mais difícil fazê-lo online do que presencialmente, mas das duas formas é importante ir questionando os alunos e testando-os, para poder reforçar alguns conteúdos.
E: As escolas devem ter autonomia total para gerir, caso a caso, horários de aulas, recursos humanos, espaços, turnos, num contexto especial e de forma a garantir condições de segurança sanitária?
NC: Com certeza, com respeito pelas normas gerais e com a vigilância, a iniciativa e a adaptabilidade necessárias.
E: Que problemas e necessidades este contexto de pandemia trouxe ao de cima nas escolas, nos métodos de ensino, no acesso às novas tecnologias, na própria relação entre professores e alunos?
NC: A pandemia revelou a grande dedicação dos professores e escolas e a grande adaptabilidade dos alunos e famílias – isto em termos gerais. Mas também revelou que há famílias e alunos com grandes dificuldades e que essas dificuldades se agravaram sem o ensino presencial.
Eu diria que a grande lição da pandemia é esta: nada substitui o ensino presencial. Ao contrário de ideias e especulações antigas sobre a revolução no ensino provocada pelas novas tecnologias, o que se verificou foi que esses meios podem ser auxiliares extraordinários, mas que o contacto direto é insubstituível.
E: As emissões televisivas #EstudoEmCasa foram um bom complemento ao ensino à distância? Deveriam ter continuidade?
NC: Não conheço nenhuma avaliação deste programa. Mas pareceu-me uma boa medida.
E: A suspensão das provas de aferição e dos testes finais do 9.º ano foi uma boa decisão, uma opção compreensível?
NC: Parece-me sempre melhor avaliar do que não avaliar.
E: A desmotivação pela escola e o abandono escolar tendem a agravar-se num regime de ensino não presencial. É complicado reverter a situação?
NC: Ao regressar à escola creio que tudo recomeçará de forma natural. O difícil será passar de novo de um regime presencial para um regime a distância, se isso for necessário.
E: Caso o ensino à distância volte a ser um recurso, devido à situação epidemiológica, o que deve e não deve ser feito para que tudo funcione?
NC: O ensino presencial e o ensino à distância não devem seguir, no essencial, princípios diferentes. Os princípios do bom ensino são os mesmos: ensino estruturado, metas claras, bons materiais de apoio, nomeadamente manuais, exposições claras, interação com os alunos, tarefas claras, devidamente espaçadas, testes formativos e testes sumativos, atenção às dificuldades…
É isto que os especialistas que têm estudado estes assuntos têm salientado. Mas há coisas a que deve ser dada especial atenção e que podem ser mais difíceis de conseguir no ensino remoto: os alunos devem perceber com clareza em que ponto se está e para onde se caminha; devem perceber sem ambiguidades o que se espera que completem no que se refere ao seu estudo e às suas tarefas; devem estar constantemente a praticar a recuperação (‘retrieval’, na terminologia internacional), ou seja, a fazer pequenos testes e a responder a perguntas, para se verificar e verificarem o que sabem e para solidificarem o que sabem, devem ter atividades curtas e espaçadas, devem intercalar (‘interleave’) as atividades e estudos de matérias diversas, em vez de concentrarem horas e horas seguidas no mesmo tema.
Como em todo o ensino, o importante é ter metas. O objetivo do ensino, seja presencial seja remoto, não é entreter os alunos em atividades, muito menos em atividades dispersas e pouco estruturadas, o objetivo é progredir em conhecimentos e formação.
Tendo isto em conta, no ensino remoto é decisivo simplificar: ter atividades curtas e focadas, se possível ter também aulas mais curtas, mais focadas e mais frequentes, ter práticas de estudo e de treino alinhadas com a matéria tratada nas aulas e com a progressão dos manuais.
Há a tentação de dar muitas tarefas aos alunos, de oferecer muitos recursos adicionais, de lhes dar muitas referências suplementares. Ou seja, há a tendência a complicar. Deve-se fazer exatamente o contrário.
No nosso site ED_ON, da Iniciativa Educação, temos publicado muitos artigos sobre a investigação científica recente relacionada com o ensino à distância. Atrevo-me a sugerir aos professores, pais e todos os que se interessam por educação que vão consultar esses artigos, que são breves sínteses de temas importantes.
E: As médias dos exames nacionais do Ensino Secundário subiram. Era um cenário expetável perante a mudança de regras?
NC: É um sinal de que as provas não foram feitas de forma a poderem ser comparadas com as anteriores e isso é sempre negativo, pois perde-se uma medida de evolução do sistema.