No Brasil, a “Grande Mentira” se tornou global
O que acontece em Washington nem sempre fica em Washington. A cartilha de Donald Trump de envenenar a política com desinformação e questionar o resultado das eleições e a transição pacífica de poder para o democrata Joe Biden está sendo exportada e colocada em prática além das fronteiras americanas, se tornando uma ameaça transnacional à democracia. Os métodos de Trump foram energicamente adotados no Brasil por Bolsonaro, seu amigo igualmente autoritário e de extrema direita, que, durante sua presidência, promoveu a desinformação, semeou a desconfiança nos resultados eleitorais e, agora questiona o processo eleitoral depois de perder a eleição para Luiz Inácio Lula da Silva. Por mais de 44 horas após a derrota, Bolsonaro permaneceu em um perigoso silêncio enquanto seus apoiadores bloqueavam estradas e vociferavam contra o veredicto das urnas. Em 1 de novembro, quando finalmente falou, ele não admitiu a derrota, mas tentou descreditar o processo democrático ao descrever os protestos como fruto da “indignação e sentimento de injustiça” em relação à eleição. Bolsonaro é apoiado por figuras influentes da extrema direita americana que foram cruciais para a campanha “Stop the Seal”, ou “Parem o Roubo" das eleições americanas. Nos últimos dois anos, nossa equipe da Agência Pública investigou as conexões entre os importantes aliados de Trump e a família Bolsonaro. As tentativas de Bolsonaro e de seus apoiadores de cultivar incertezas sobre o futuro do Brasil podem se tornar o novo normal, já que outros autocratas potenciais estão abraçando a “Grande Mentira” como uma estratégia política legítima. Depois do primeiro turno das eleições na Colômbia, em maio, quando Gustavo Petro venceu, um ex-presidente de direita da Colômbia foi às redes sociais tentar descreditar os resultados. Uma fundação presidida pelo líder do Vox, partido de extrema direita da Espanha, seguiu o exemplo e publicou uma série de artigos sugerindo fraude naquele turno. Petro também ganhou o segundo turno e foi eleito presidente. “Bolsonaro não pode ceder”, disse Steve Bannon ao site de direita Rumble logo após a eleição no Brasil. “Essa eleição foi roubada em plena luz do dia…ultrajante”, escreveu no seu perfil no Gettr. Suas acusações eram infundadas. A OEA (Organização de Estados Americanos), o Carter Center e outros observadores internacionais elogiaram a condução das eleições e destacaram o trabalho do TSE. Outras personalidades vocais que endossaram as mentiras de Bannon sobre a democracia brasileira foram Matthew Tyrmand, um auto-entitulado jornalista investigativo e membro do conselho do Project Veritas, um grupo conservador conhecido por suas táticas enganosas, e Ali Alexander, líder do movimento “Stop the Steal”. Tyrmand repetiu as acusações de fraude eleitoral e postou mensagens apoiando uma intervenção militar no Brasil. Alexander alegou que americano Joe Biden estava “roubando” a eleição no Brasil para Lula e pediu que os militares ficassem em prontidão. Alexander e Bannon tentaram criar uma imaginária interferência dos Democratas no Brasil para estimular os Republicanos a votarem nas suas próprias eleições de meio de mandato. Tucker Carlson, âncora do horário nobre da Fox News, vendeu teorias da conspiração em seu programa e disse que "milhões" de votos tinham sido “jogados fora” – um feito impossível em nosso sistema de urnas eletrônicas, diferentemente das cédulas de papel dos EUA. A família Bolsonaro dedicou muito tempo e esforço para construir alianças nos Estados Unidos baseadas em narrativas conspiracionistas de extrema direita, como a ameaça do comunismo e o "marxismo cultural". Eduardo Bolsonaro conheceu Bannon em agosto de 2018 e, meses depois, foi nomeado como representante sulamericano do "The Movement", plataforma de Bannon de partidos políticos direitistas que nunca decolou de verdade. Desde então, o filho 03 do presidente brasileiro visitou e se encontrou mais de 70 vezes com aliados chave de Trump. Eduardo fundou seu próprio instituto conservador que ajudou a organizar a versão brasileira do evento pró-Trump CPAC (Conferência de Ação Política Conservadora). O ex-porta voz de Trump, Jason Miller, CEO da rede social de extrema-direita Gettr, foi um dos palestrantes da edição deste ano do evento, em Campinas (SP). Ele também apareceu na celebração de 200 anos da independência brasileira no dia 7 de setembro, que acabou se tornando um comício de campanha para Bolsonaro. No Brasil, diferente dos EUA, os manifestantes pedem que os militares deem um golpe – algo impensável na terra de Trump. Exacerbada pelo discurso de ódio, a violência eleitoral se intensificou. Pelo menos 15 pessoas foram assassinadas durante as eleições, de acordo um levantamento feito pela Agência Pública. Bolsonaro usou seus poderes como presidente para subverter a democracia de jeitos que seriam inaceitáveis nos Estados Unidos. Seguindo suas ordens, o Exército se propôs a fazer uma "contagem de votos paralela". Seus aliados no Congresso mudaram o teto de gastos para aumentar benefícios sociais logo antes da eleição. No dia do pleito, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), liderada por um aliado de Bolsonaro, parou centenas de ônibus que levavam eleitores às urnas especialmente em regiões com maior apoio a Lula, desafiando uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro dias após a eleições, multidões de apoiadores de Bolsonaro se reuniram em frente a quartéis militares em várias cidades e pediram uma intervenção militar. Inflamados pela desinfomação de que as eleições tinham sido roubadas, os bolsonaristas seguem sendo uma força política que pode causar enormes danos até o dia 1º de janeiro de 2023, quando Lula assume a presidência. Mesmo assim, o site de ultradireita americano Breitbart chamou os extremistas que pedem golpe militar de “manifestantes pacíficos” que querem uma "intervenção federal constitucional" para impedir Lula de "tomar o poder". O site argentino La Derecha Diario, cujo dono se reuniu com Eduardo Bolsonaro, espalhou falsas alegações sobre análises estatísticas que supostamente provariam uma "fraude" na contagem de votos – essa mentira já checada por sites de fact-checking. Outras acusações falsas do tipo foram espalhadas pela mídia de extrema direita americana durante e depois das eleições brasileiras. Campanhas contra eleições democráticas semeiam a desconfiança na democracia. Figuras da extrema direita americana que buscam descreditar o processo democrático no Brasil – e potencialmente em outros países no futuro – conseguem fugir de políticas de moderação de conteúdo das plataformas de redes sociais. Sua presença nos Estados Unidos também dificulta que autoridades locais ajam contra elas. Em setembro, eu entrevistei o congressista americano Jamie Raskin, membro da CPI que investiga a invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. "O comitê está tentando entender a magnitude das ameaças à democracia americana", disse Raskin. "E existe uma dimensão global nessa ameaça." Está na hora de outros parlamentos no continente também se posicionarem. Uma comissão continental para enfrentar ataques à democracia poderia compartilhar informações, agir para além das fronteiras e idiomas, monitorar os culpados e pressionar as redes sociais para responder a essa crise. E os governo de Joe Biden e Lula – ambos alvos da mesma tática – precisam coordenar uma resposta a essa ameaça que continua pairando no ar.
Natalia Viana Diretora Executiva da Pública
Agência Pública
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