A greve dos servidores públicos federais

A greve dos servidores públicos federais

A greve dos servidores públicos federais deve ser apoiada ou criticada?

Rossano Rafaelle Sczip - 

 

O melhor apoio que podemos dar para o atual governo está na organização dos
trabalhadores e trabalhadoras - Foto: Katia Marko

 

Em recente texto de opinião publicado no portal Vermelho.Org, Luciano Rezende, Professor do Instituto Federal de Brasília (IFB), procurou deslegitimar a greve desencadeada pelos servidores públicos da rede federal de educação que atinge 23 universidades federais e quase 80 institutos Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

Em síntese, Rezende centra sua argumentação no fato de que a atual quadra histórica é marcada pelo avanço do fascismo. De fato, quando observamos os resultados eleitorais de diversos países, sobretudo europeus, não é difícil constatar o avanço progressivo das forças de extrema-direita. No Brasil, não tem sido diferente, principalmente a partir do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff.

Rezende considera que as forças golpistas teriam capitalizado com as manifestações contrárias à Dilma provenientes de setores da esquerda. Segundo ele, “quando as forças progressistas mais precisavam se unir em defesa do mandato legítimo e democrático da presidenta Dilma, setores da ‘esquerda’ brasileira preferiram jogar água no moinho da extrema-direita”.

Acusa, inclusive, sindicatos importantes, que sempre estiveram na vanguarda das lutas em defesa das instituições federais de educação, como Andes, Fasubra e Sinasefe, de serem os responsáveis pelos tempos sombrios que pairaram sobre nós nos anos anteriores, parecendo desconsiderar a explícita articulação golpista entre parlamento, poder judiciário e imprensa, além do apoio estadunidense.

O docente reforça um posicionamento bastante presente em assembleias e outros espaços, questionando o porquê de essas entidades terem “hibernado por longos seis anos” e, agora, com a volta de um “governo popular”, “saírem da toca famintos por mostrarem suas garras. Cordeirinhos com Temer e Bolsonaro. Bestas-feras contra Lula”.

Rezende recorre a um subterfúgio utilizado já no primeiro mandato de Lula. Em seu texto, ele caracteriza tais entidades de “revolucionárias”. Assim são classificadas as posições que divergem do campo hegemônico do sindicalismo brasileiro, como se ser revolucionário fosse algo fora de moda, descabido, desnecessário. No entanto, adoram uma camiseta vermelha com frases subversivas!

O artifício do autor soa como uma ridicularização, com o intuito de deslegitimá-las frente a suas bases, num tom um tanto provocativo, de deboche, mas, principalmente, para caracterizá-las como inconsequentes, irresponsáveis. Rezende afirma, ainda, que tais entidades “sempre deflagravam greves, por motivos mais fúteis possíveis”.

Apesar de reconhecer como legítimas e necessárias certas reivindicações da parede atual, reforça que o ponto central é não perder de vista o avanço do fascismo que rosna “em nossa volta, louco para arrombar a porta e voltar com tudo ao poder”. A fim de ilustrar sua reflexão, recorre a uma personagem de Tolstoi para atribuir àquelas entidades o epíteto de sectárias, buscando, uma vez mais, atentar contra a legitimidade não só dos sindicatos, mas da própria greve, em nome da unidade na luta contra o fascismo e, consequentemente, na defesa do atual governo.

Apesar de considerar a ameaça fascista como elemento central da conjuntura, Rezende parece desconsiderar o aspecto primordial dessa ameaça, qual seja, o ataque às organizações das classes subalternas. Em que medida, portanto, seu argumento de que a greve desgasta o governo Lula e fortalece e abre as portas para o fascismo não pode ser mobilizado igualmente para afirmar que seu ataque às organizações autônomas da classe ecoa pelos mesmos círculos os quais considera necessário combater?

Os setores que hoje se veem obrigados a reconhecer e reafirmar a legitimidade da greve dos SPFs são os mesmos que durante o governo Bolsonaro amarraram o sindicalismo sob o argumento de que estávamos em um “estado de exceção”, como se o Estado burguês fosse outra coisa que não o Estado de exceção para o povo pobre e trabalhador. São os mesmos que durante os governos do PT se calaram frente ao desmonte da previdência. Inclusive, sob o mesmo argumento da blindagem do governo Lula, com o agravante da tergiversação sobre a reforma, criaram um sindicato de fachada na base do Andes depois que este deliberou, em congresso, lutar contra os ataques à previdência.

O posicionamento de Rezende expressa uma concepção de sindicato demarcada profundamente pelo governismo, perspectiva que se caracteriza por submeter a luta operária aos interesses eleitorais dos partidos que dirigem o movimento sindical, outro elemento fundamental para compreender nossos retrocessos nos últimos anos. Somados, a partidarização e o governismo no movimento sindical contribuem sobremaneira para o encastelamento de direções que se perpetuam e se revezam em cargos da estrutura sindical. O fazem, também, por meio de constantes alterações estatutárias, ampliando cargos e tempo de gestão, reduzindo o número de delegados aos congressos, fortalecendo instâncias meio (conselho deliberativo) em detrimentos de espaços mais democráticos, como as assembleias, situação aprofundada no pós-pandemia de covid-19 (2020-2022) com o constante recurso a assembleias virtuais.

Rezende recorre, ainda, a outro argumento sempre mobilizado pelas forças hegemônicas no sindicalismo brasileiro: “o Congresso Nacional mais conservador das últimas décadas”. Essa configuração do nosso parlamento não seria resultado de anos de uma política conciliatória tanto por parte dos governos petistas quanto pelo sindicalismo hegemonizado pelas forças governistas? Apesar de recorrer à categoria de correlação de forças para tentar legitimar sua posição, o autor não a levou em consideração na sua argumentação, uma vez que a correlação de forças não é algo estático, imutável. Restou-lhe, portanto, afirmar que os sindicatos que representam os SPFs da educação hibernaram por longos seis anos. Se não tomam as ruas, estão hibernando. Se se postam em pé de guerra, são oportunistas. O autor parece não recordar dos diversos atos chamados por estas entidades contra os cortes orçamentários na educação executados por Bolsonaro.

A importância da luta grevista

Compartilhando da perspectiva de Rezende, de que o elemento central da atual quadra histórica é o fascismo, discordando, no entanto, da sua concepção governista, é necessário ponderar se a proposta de manter o sindicalismo em sono profundo seria, de fato, a melhor tática para enfrentar as forças da extrema-direita que, como temos observado nos golpes mundo afora, principalmente na América Latina, estão cada vez mais alinhadas internacionalmente. Cabe perguntar, portanto, seguindo Lenin: “que significado tem as greves na luta da classe operária?”

Para o líder da revolução bolchevique, elas representam a possibilidade de ruptura com a lógica corporativista, pois, “cada greve lembra aos operários que sua situação não é desesperada e que não estão sós”. Os movimentos paredistas potencializam a disseminação das ideias socialistas, “da emancipação do jugo do capital”. As greves ensinam aos operários a compreenderem onde repousa a força de seus inimigos e onde está a sua força. Ao mesmo tempo, percebem que só podem confiar em si mesmos. As greves descortinam o papel do Estado, dos governos, das leis e das direções pelegas. Para mais, quando uma greve começa, todas as forças reacionárias da sociedade se levantam, inclusive o machismo, o racismo e outros preconceitos, e a acusam-na de descabida, abusiva, sem propósito, oportunista, e tantos outros adjetivos com o único objetivo de deslegitimá-la frente à sociedade e à sua própria base.

Há, ainda, outro elemento importantíssimo apontado por Lenin. As greves, por tudo que representam, constituem-se em “escolas de guerra”, onde as classes trabalhadoras aprendem a “desfechar a guerra contra seus inimigos, pela emancipação de todo o povo e de todos os trabalhadores”. São, no entanto, escolas da guerra e não a guerra propriamente dita. Das potencialidades da greve se apreende, dessa forma, seus próprios limites, levando os trabalhadores a prestar atenção em outros instrumentos de luta para a conquista da emancipação humana.

O movimento operário frente ao nazi-fascizmo

Clara Zetkin, Gramsci e Trotsky, que vivenciaram a experiência da ascensão fascista na Itália dos anos 1920, responsabilizam os reformistas por essa tragédia histórica. Um ponto em comum na análise dos três expoentes do socialismo e do comunismo está no papel desempenhado pela pequena burguesia. Frente ao recuo das posições revolucionárias do proletariado, a pequena burguesia, que também se sente esmagada pelo sistema econômico e ameaçada pelas crises sociais, acaba empurrada para uma posição de “hostilidade mortal com a revolução proletária”, assumindo para si a “contrarrevolução burguesa”, como observou Trotsky.

Zetkin, uma década antes de Trotsky, já havia destacado que o abandono da perspectiva revolucionária por parte do proletariado italiano, influenciados por lideranças reformistas, conduziu as massas fascista até o local em que a maioria daqueles dirigentes já estava, “consciente ou inconscientemente, desde o início: ao lado da burguesia”. Zetkin ressalta que, entre 1919 e 1920, a crescente atividade grevista, inclusive com ocupação de fábricas e o avanço das lutas camponesas, abalaram a dominação de classe e tensionaram as direções reformistas do movimento operário. Pressionados, esses dirigentes impulsionaram uma política de coalizão, traindo o movimento operário e levando às últimas consequências uma política que resultou no desmoronamento das esperanças depositadas nos socialistas.

Frente ao avanço fascista na Itália e no mundo ocidental, Clara recomendou a autodefesa do proletariado. Para Zetkin, era “a segurança pessoal e a própria existência dos trabalhadores, está em jogo a sobrevivência de suas organizações”. Concluía que a violência fascista precisaria ser combatida com “o poder da luta de classe revolucionária do proletariado”

Para Gramsci, a responsabilidade da social-democracia pela ascensão do fascismo na Itália estava na crença de que seria possível derrotá-lo pelos caminhos eleitorais e institucionais. Outro elemento ressaltado pelo pensador comunista é o fato de que os fascistas italianos só puderam praticar suas atrocidades e conquistar espaço antes de chegar ao governo porque este já estava presente na forma de Estado existente antes do próprio fascismo. “Funcionários do Estado, em particular os organismos de segurança pública (delegados de polícia, guardas-régias, carabineiros) e da magistratura, tornaram-se seus cúmplices morais e materiais”.

Outro ponto em comum entre os três pensadores diz respeito à determinação fascista pela destruição dos organismos das classes trabalhadoras. Zetkin afirmou que “tudo o que importa para o fascismo é que ele se defronte com um proletário com consciência de classe, e então eles o atacam até que esteja no chão”.

Gramsci destacou o papel desempenhado pelas milícias armadas que foram instrumentalizadas por latifundiários e outros setores da classe dominante com o objetivo de “esmagar violentamente lideranças e organizações coletivas que canalizavam reivindicações de trabalhadores rurais e urbanos”. Trotsky ressaltou a violência contra a classe operária e suas organizações como sendo a “função essencial e única do fascismo”. E nesse caso, a pequena-burguesia também cumpriu importante papel. O nazi-fascismo foi hábil em canalizar os ressentimentos pequeno-burgueses contra uma ordem capitalista que ameaçava a sua condição social, que causava-lhes medo de uma previsível degradação. A unidade da pequena-burguesia com o nazi-fascismo foi selada, assim, pelo medo à proletarização e pela hostilidade ao proletariado.

Todo apoio à greve dos SPF

É preciso saudar esta greve pelo potencial que ela representa na medida em que pode levar outros setores a se encorajarem e tomar as ruas. Somente com o povo na rua o fascismo será esmagado. Em texto anterior, já havia problematizado o papel das forças progressistas e de esquerda na denúncia das injustiças e desigualdades do sistema vigente, ressaltando a necessidade de “retomar esta postura crítica sob pena dela ser hegemonizada por uma perspectiva individualista, moralista ou fundamentalista, ou mesmo fascista, como vimos nos últimos anos”. As forças de esquerda e a vanguarda do movimento sindical não podem se eximir da disputa política e ideológica de forma crítica e consequente numa conjuntura tão acirrada como a que vivenciamos.

O melhor apoio que podemos dar para o atual governo está na organização dos trabalhadores e trabalhadoras, das massas exploradas e oprimidas, para lutar por seus direitos e, ao fazê-lo, elevar seu nível de consciência para não se deixar embalar pelo moralismo reacionário e pelo idealismo da antipolítica propagados pela extrema-direita que tem ganhado cada vez mais espaço.

A derrota do “parlamento mais conservador das últimas décadas” e a necessária mudança de rumo do governo Lula em direção ao rompimento com a agenda do capital e de sua libertação das amarras impostas pelos acordos com os setores golpistas, virá de fora e não de dentro do governo ou do parlamento. Da mesma forma, a derrota do fascismo só se vislumbra com o povo na rua, organizado e consciente de seu papel histórico.

Para saber mais:

Lenin, V. Sobre as Greves.

Gramsci. A. Escritos Políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 2.

Zetkin, C. Como nasce e morre o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária/Usina Editorial, 2019.

Trotsky, L. Como esmagar o fascismo. Autonomia Literária, 2018.

 

Edição: Pedro Carrano

FONTE:

https://www.brasildefatopr.com.br/2024/04/29/a-greve-dos-servidores-publicos-federais-deve-ser-apoiada-ou-criticada?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR21rbBsUlulwzt_RWOmukwp73Cen-b888tHYRcm1XZiIZijsyYgpcSBQBU_aem_
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