A laicidade necessária

A laicidade necessária

A laicidade necessária

Separar religião e Estado é fundamental. Isso protegerá a sociedade, defende desembargador

03/12/2022 

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Jayme Weingartner Neto
Desembargador do Tribunal de Justiça do RS, mestre e doutor em Direito

Romain Rolland sugeriu ao amigo Freud a metáfora do “sentimento oceânico” para traduzir o espírito religioso, abrangente, grandioso. O médico de Viena, ao dedicar-lhe o Mal-estar na Civilização (1930), assinou-se um “animal terrestre”.

A história testemunhou, ao longo dos séculos, a tensão entre animais terrestres e oceânicos, sangue vertido em perseguições e guerras religiosas, inquisição, até terrorismo, a par dos atos mais nobres, generosos, solidários. Seja no monismo antigo, identificação entre poder político e religioso do mundo pré-cristão (ora teocracias, ora cesarismos), passando pelo instável dualismo medieval (reis e papas disputando a soberania), ou nos ensaios pela tolerância.

O ponto de chegada é a liberdade religiosa, que a Constituição atenta não ser hostil e ter dupla face: Estado laico e pessoas a viver sua existência espiritual, por mais transbordante que seja. Mas há limites. Este é o arranjo para não nos matarmos na busca da salvação, própria ou alheia: somos iguais em liberdade e dignidade, e a polis (princípios da separação e da não confessionalidade) aparta-se das instituições religiosas, não se pronuncia sobre questões religiosas (nem o Estado-juiz é árbitro de disputas teológicas) – o art. 19, I, da Constituição Federal abarca também os princípios da cooperação, da solidariedade e da tolerância, assegurando por exemplo a assistência religiosa em hospitais, o ensino religioso em escolas públicas, limitando seu poder de tributar.

O foco são as pessoas (CF, art. 5º, VI, VII e VIII), num Direito Fundamental entre dois polos: o pluralismo (uma garantia constitucional) e o fundamentalismo (uma pulsão histórica que, ao militar, ambiciona tornar modos de vida espiritual normas coativas e se impor inclusive aos não crentes ou adeptos de outras fés). Trata-se de proteger minorias sem desconsiderar de fato as maiorias.

Nietzsche disse que matamos Deus, mas vivemos um ambiente pós-secular, “Deus está vivo e está morto”, e a religião é um fenômeno de massa, está na agenda internacional e na intimidade das pessoas (inclusive das que não têm religião). Presente, oceânica e transbordante, na recente disputa eleitoral brasileira. Aliás, Brasil que vive uma dinâmica de conversão (o padre desce, o pastor sobe) que leva à previsão demográfica de maioria evangélica no país ainda com maior número de católicos no mundo lá por 2032. Não chega a ser surpresa, basta lembrar slogans eleitorais: “Deus acima de tudo”. Ou um lema oitocentista da unificação italiana, ora brandido como trindade ameaçadora: “Deus, pátria e família”, segundo Scurati, “não surgem como divindades benignas e amorosas que velam por um projeto neoconservador razoável, tolerante e liberal”. Pelo contrário, “fazem soar a trombeta do deus dos exércitos para varrer para longe, sem vacilação, dois séculos de história”. Convocar o bem contra o mal para legitimar a conquista do poder terreno, olhos de aprender, nunca foi um bom caminho.

Todavia, a liberdade religiosa como direito fundamental tem força para harmonizar convivências. O Supremo Tribunal Federal, não por acaso, é cada vez mais demandado: ensino religioso nas escolas públicas, de matrícula facultativa, pode ser confessional (2018, o problema do como, no chão da escola, persiste); sacrifício ritual de animais são legítimos (2019); há repercussão geral em saber se símbolos religiosos podem permanecer ostensivos no espaço público (2020-2021); a liberdade de expressão inclui o proselitismo, mas limita-se pelo discurso do ódio (2017-2018); a obrigatoriedade da Bíblia em escolas e bibliotecas públicas é inconstitucional (2021).

Creio que é viável maximizar as liberdades sem aniquilar a dignidade das pessoas (crentes ou ateus), e bloquear o fundamentalismo militante para que ninguém, violado em consciência, seja obrigado a dobrar-se em nenhum altar. Talvez, quanto mais religioso o ambiente sociocultural, mais firmes tenham de ser os limites traçados pelo Estado laico. Numa frase: diversos fervores, sem favores, para evitar fervuras.


https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2022/12/a-laicidade-necessaria-clb56sjo100310170p3chlyph.html 




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