A mentira como método
A mentira como método para lidar com o outro
Se de um lado, a mentira busca falsear a ideia de realidade dos fatos; de outro, ela porta alguma dimensão de verdade psíquica
Coluna da APPOA 13/02/2024
Imagem: Pixabay
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)
Enquanto psicanalistas, supomos que as noções de mentira e de verdade não são, necessariamente, pares antitéticos. Se de um lado, a mentira busca falsear a ideia de realidade dos fatos; de outro, ela porta alguma dimensão de verdade psíquica, seja ela imaginária ou real.
Quem nunca inventou alguma mentirinha sem ter a intenção de prejudicar alguém? Às vezes, elas podem servir como pequenos atos de polidez para preservar os outros, como por exemplo, quando alguém pede opinião sobre como ficou a roupa, o novo corte de cabelo, a recente harmonização facial. Nem sempre dá para ser sincero, afinal, dizer e suportar verdades pode ser complicado, uma vez que há um preço a se pagar para manter certa harmonia nas relações. Portanto, até certo ponto, pode-se dizer que verdades e mentiras nos constituem como sujeitos desejantes, ou seja, dizem sobre como lidamos com a palavra e de como habitamos a linguagem. Nesse aspecto, ambas são indissociáveis.
Sigmund Freud, no texto Duas mentiras contadas por crianças, nos diz que a mentira estaria intimamente vinculada às forças motivadoras mais poderosas nas mentes das crianças. Ao reconhecer que elas fazem parte dos processos de subjetivação de qualquer sujeito, o psicanalista pôde se dar conta de que na mentira de cada analisante, há alguma dimensão de verdade enunciada em sua fala. Apesar de ser um clichê, pode-se dizer que é relativamente comum na experiência de análise o paciente se sentir um impostor.
Jacques Lacan teve a sabedoria de situar a mentira não apenas como uma forma de tentar enganar o outro, ou ainda, como mero recurso de linguagem, mas como uma condição dessa. Vale lembrar dos seus clássicos aforismas: a verdade tem uma estrutura de ficção, a verdade é não toda, pois dizer toda a verdade é impossível, faltam as palavras. Ou seja, ele reconheceu o paradoxo da linguagem, pois esse que se diz na condição de sempre dizer toda a verdade, não o faz, sem sustentar uma mentira. Assim, por sua vez, o mentiroso também diz, em certa medida, sobre a verdade de algum desejo. Por mais absurdo que possa parecer, pode-se dizer que quem mente sistematicamente acredita que somente através da mentira é possível dizer a sua verdade.
Certamente, deve-se considerar que os valores éticos, a relação com a lei, a incidência da culpa, os possíveis remorsos e os receios de punições podem produzir efeitos muito particulares para cada um. Na maioria das vezes, o ato de mentir tem suas consequências, senão para si mesmo, para alguns outros. No entanto, os motivos que levam alguém a mentir e, mais do que isso, a sustentar uma mentira, podem ser infinitos. Sendo assim, seria ingenuidade supor tanto as origens da mentira, quanto algum esboço de tipologia do mentiroso.
Há aqueles que mentem de forma abjeta para prejudicar alguém, pelo simples prazer de enganar o outro, assim como existem, também, os mentirosos estratégicos, deliberadamente excitados pela possibilidade de se beneficiar com a sua capacidade de dissimular ideias, contextos e acontecimentos. Ainda que a mentira seja relacionada a falta de caráter, o hábito de mentir não é privilégio de uma posição perversa, pois, muitas vezes, as pessoas mentem para atrair atenção, por falta de confiança, para busca de reconhecimento, por ciúmes, por vergonha, por inveja, por medo, por baixa autoestima, enfim. Portanto, nem todo mentiroso quer manipular seu interlocutor ou é indiferente aos efeitos de sua capacidade de distorção da realidade. Entretanto, a compulsão a mentira deve ser considerada com maior atenção, especialmente porque coloca em cena a versão patológica do mentir.
Ernest Dupré, psiquiatra e alienista francês, professor da Faculdade de Medicina de Paris, desde 1905, dedicou-se a pesquisar aquilo que ele chamou das patologias da imaginação, ou ainda, as tendências anormais de fabulação da realidade, chegando inclusive a cunhar o termo “mythomanie” (mitomania) para designar a pessoa com a tendência a contar mentiras. Seu aluno, Benjamin Logré, reuniu num volume publicado em 1925, uma série de contribuições de Dupré sobre essa temática, intitulado: Pathologie de l’imagination et de l’émotivité. Desde então, a mitomania passou a ser considerada uma doença de caráter compulsivo que pode estar relacionada a diversas patologias. Basta uma rápida pesquisa sobre o tema para constatar a sua complexidade. Ciente disso, quero abordar um aspecto específico do mentir, qual seja, quando o “mentidor” se coloca na posição de vítima ou herói de suas fabulações. Trata-se da mentira sistemática, habitual e arquitetada. Estou me referindo a pessoa que utiliza a mentira como método para lidar com o outro. Nesses casos, dizer apenas que há uma espécie de negação da realidade é insuficiente, pois o ato de mentir tornou-se seu oxigênio diário e a forma possível de suportar a insignificância real ou imaginária da própria existência. Talvez isso ocorra pela ilusão de assim transpor mazelas narcísicas, impotências e adversidades da vida. As manobras utilizadas para se desenrolar das tramas às quais ele mesmo se embaraça, vão do ridículo à capacidade de desmentidos e ilusionismos surpreendentes.
Um exemplo singelo para ilustrar a questão: certa feita, alguém contou: “Caso o fulano te perguntares se eu falei tal coisa que, realmente disse, diga que não disse, pois se ele souber a verdade, passarei por mentiroso”. O interlocutor respondeu: “então, você espera que eu minta para não passares por mentiroso e continuares mentindo, é isso mesmo? Não te parece absurdo tal pedido?” “Faça isso por mim, senão, tu vais complicar as coisas para o meu lado” (tratava-se de um pedido recorrente). Há aqui ao menos duas questões importantes: aquele que mente como método de lidar com o outro, enreda-se em seus engodos a ponto de se fazer necessário redes de mentiras e de cúmplices; o uso da vitimização como justificativa de seu ato, seguido da responsabilização do outro pelos possíveis prejuízos decorrentes de suas próprias ações. Por isso, pior que a mentira, são os mentirosos ressentidos porque esses sempre irão culpar os outros pelas suas trapaças. Será que eles partem do pressuposto que os outros lhe devem algo? Além de não se responsabilizarem por suas ações, parecem habitar uma estranha realidade que precisa ser dissimulada permanentemente.
O mentiroso ressentido faz da mentira método para lidar com as pessoas. A suposta realidade factual lhe é intolerável. Desse modo, o objeto que ele oculta ao mentir, torna-se, paradoxalmente, a única possibilidade de falar de si, ou seja, da sua verdade. O problema é que ele não se afeta com a própria mentira e, quando ela for desvelada, qualquer um poderá ser o responsável pelo dano causado, com exceção de ele mesmo. Mais ou menos assim: se a mentira for descoberta, alguém o prejudicou, entretanto, caso ela fora “bem-sucedida”, ele irá reivindicar o protagonismo e gozar de seus benefícios.
Haja vista a capacidade de distorção dos fatos, algumas vezes, essas pessoas são reconhecidas como mestres ardilosos de uma narrativa envolvente e sedutora. No entanto, essa leitura parece encobrir algo que pode estar na flor da pele do mentiroso, a saber, o seu vazio existencial. Nesse, a mentira tornou-se o recurso possível, tanto para lidar com suas frustrações, quanto para sustentar alguma ideia precária de si mesmo. Assim, sua identidade e suas possíveis identificações serão sempre fugazes e evanescentes.
Referências
DUPRÉ, E. Pathologie de l’imagination et de l’émotivité. Paris, Payot, 1925.
LACAN, J. (1973). Televisão. In: Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. (1949). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
FREUD, S. (1913). Duas mentiras contadas por crianças. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 12).
(*) Psicanalista, membro da Appoa e Instituto Appoa, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor do livro Hamlet com Lacan e alguns outros. Editora Escuta: São Paulo, 2022
FONTE:
https://sul21.com.br/opiniao/2024/02/a-mentira-como-metodo-para-lidar-com-o-outro-coluna-da-appoa/