A meritocracia folclórica
A meritocracia folclórica e a onipresença da desigualdade social
26 de março de 2019
Enquanto a desigualdade social segue se aprofundando, preferimos discutir “golden shower”, “doutrinação marxista” e a cor da roupa para meninos e meninas
Foto: EBC.
Por Matheus Silveira de Souza
Algumas ideias permeiam a mente do povo brasileiro e ajudam a encher de esperança um recipiente atravessado de furos. O “sonho brasileiro” (quase americano) de trabalhar muito e ficar rico está presente em boa parte das pessoas mas, estranhamente, só se concretiza para uma parcela mínima da população. Será que os pobres não investiram o suficiente na bolsa de valores? A classe média não se esforçou o bastante para conquistar seu primeiro milhão? Ou então, não seguiram as dicas de ouro da visionária Bettina?
Falar sobre meritocracia – e a chance igual para todos os indivíduos de se tornarem ricos – em um país que tem uma das maiores taxas de desigualdade do mundo talvez se aproxime mais do campo folclórico do que do âmbito argumentativo. Mas não sejamos tão intolerantes, amigos. Em um tempo de múltiplas meias verdades, talvez os dados e as pesquisas sobre o assunto possam jogar luz sobre o tema.
No Brasil, quase 30% da renda de todo o país está nas mãos de apenas 1% da população [1], formando a maior concentração de renda do mundo (entre o 1% mais rico). Já os 10% mais ricos acumulam 55% da renda do país. Vamos vestir a ideia com um exemplo caricato. Imagine uma pizza de 100 pedaços que será distribuída para uma sociedade composta, hipoteticamente, de 100 pessoas. Pois bem, 28 pedaços de pizza iriam para a barriga de uma única pessoa. No segundo ponto, 55 pedaços de pizza iriam para 10 indivíduos dessa sociedade. E as outras 90 pessoas? Bom, elas podem se contentar em dividir o que sobrou da pizza. O pecado capital, no caso brasileiro, não é a gula, mas a acumulação e a concentração de renda.
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Devemos concordar que o Brasil é um país rico, afinal ocupamos a 9ª posição do PIB no mundo, mas a pergunta que resta é: como é distribuída essa riqueza que produzimos? Será que a riqueza produzida por muitos é expropriada por poucos? Os dados do IBGE, que apontam que 25% da população brasileira – 50 milhões de pessoas – está abaixo da linha da pobreza, com rendimento domiciliar per capita menor que 5,5 dólares por dia [2], parece auxiliar na busca de uma resposta.
Talvez a concepção de que as milhares de pessoas que moram nas calçadas e ruas das capitais brasileiras esteja nesta condição como resultado de uma falta de esforço e dedicação dessas mesmas pessoas ajude a acalmar a consciência cristã dos que enxergam “o próximo” apenas nos que possuem o mesmo CEP. Como ouvi esses dias em uma conversa: só não acha emprego quem não quer, não é mesmo? Por isso que no Brasil, atualmente, temos 12 milhões [3] de pessoas que não querem emprego.
O discurso tão conhecido da busca pela riqueza – levado ao extremo pela Empiricus a partir de propagandas como a da Bettina – leva em conta que os indivíduos partem do mesmo local na estrutura social e que não possuem restrições econômicas, sociais e geográficas que influenciam no resultado e na trajetória de suas vidas. Nas palavras de Marx: “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas do passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” [4].
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Thomas Piketty, responsável por conduzir a pesquisa sobre a concentração de renda no Brasil, aponta alguns caminhos para a diminuição da desigualdade social, tais como a tributação progressiva de herança, o imposto sobre grandes fortunas e a diminuição da tributação indireta, que incide sobre o consumo. Para dimensionar a questão, no Brasil o ITCMD – que incide sobre herança e doações – possui uma alíquota máxima de 8%. No estado de São Paulo essa alíquota atinge, no máximo, 4%. Na Alemanha e nos EUA a porcentagem chega a 50% e 40%, respectivamente [5]. Os números, nesse caso, falam por si.
Enquanto a desigualdade social permanece onipresente e segue se aprofundando – constituindo, inclusive, a raiz de diversos problemas nacionais – preferimos discutir o golden shower, a suposta doutrinação marxista nas escolas e a cor da roupa para meninos e meninas. Em suma, a cortina de fumaça e o falatório aumentam a miopia da nossa consciência e dificultam a visualização da raiz de nossos problemas, fazendo com que milhões construam castelos de areia. Por sorte, resta a esperança de, no meio do caminho, encontrarmos alguns óculos e uma boa quantidade de cimento.
Matheus Silveira de Souza é mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisa temas relacionados às políticas públicas de educação, relações entre educação e trabalho e educação profissional. É professor de Teoria Geral do Direito.