A pergunta do neto
A pergunta do neto
Viver em paz é reconhecer a existência do outro, único e diverso. Somente a democracia é capaz de criar zonas de paz entre pessoas e nações
Adolescente, 14 anos, a travessia das grandes e arriscadas mudanças, escuto a palavra, para mim, a palavra mais doce da língua portuguesa: “Vô, posso fazer uma pergunta”? Engoli um “se souber”. “Vô, por que existe guerra”? Ele não acreditaria que o corpo e fisionomia com visíveis sinais do tempo e acúmulo de experiências, não tivesse uma resposta pronta para pergunta banalizada por imagens do agora e de sempre.
No refúgio de um curto silêncio, busquei tempo para arrumar uma resposta à altura da pergunta, a chave-mestra do aprender e, depois de tantos anos vividos, a gente se defronta, humildemente, com o enorme tamanho da nossa ignorância.
Sem resposta, o velho serve para pouca coisa e se o velho é o avô, então, há uma dupla decepção. Coloquei um pé no acelerador das ideias e outro no estoque dos neurônios para ativar as lembranças. Ambos enferrujados, mas voluntariosos.
Ora, sou um baby boomer, primeira geração do pós-guerra e filho de um militar que, na época aquartelado, esteve a um a um passo para compor Força Expedicionária Brasileira (FEB), 25 mil “pracinhas”, e hipotecar a vida em favor da liberdade nos campos de batalha do norte da Itália.
A história relata: guerra foi uma constante desde os primórdios da humanidade. Verdadeiros e, mais ainda assustadores, são os dados levantados pelo Professor R.J. Rummel(1932-2014), acadêmico americano e estudioso sobre o dados da violência coletiva e das guerras, a partir de 1815, até o início da década de 90, que revelam o seguinte: democracias contra não-democracias, 155 conflitos; não-democracias contra não-democracias, 198; democracias contra democracias, zero, ou seja, quanto mais democracias houver, maior é a zona de paz e menor o risco da guerra.
A resposta estava encaminhada: a democracia é o espaço da paz, ainda assim muito complexa para satisfazer o jovem curioso. Atualmente, a ameaça às democracias traz o risco do que o ilustre Professor Rummel chamava de democidio. Aliás, não faltam exemplos do confronto de forças beligerantes e fome de poder.
Com o avanço revolucionário da ciência, da tecnologia e a ampliação notável do conhecimento humano, há uma enorme especulação sobre o passado e o futuro da humanidade. São obras que contam com instrumentos modernos nos diversos campos dos saberes, questões existenciais, de densos mergulhos das dúvidas nos mais diversos ramos do conhecimento a exemplo de modernas pesquisas arqueológicas e profundos estudos antropológicos.
De um lado, o gênero humano conseguiu proteger o planeta dos perigos que sempre rondou a própria existência, de outra parte, as fenomenais conquistas, a exploração desmedida dos recursos naturais, o progresso científico, as mortíferas máquinas de guerra, atentam, também, contra a integridade planetária que faz temer um embate global porque não sobrará quem conte as vítimas.
Este paradoxo tem levado pesquisadores e pensadores a um debate suscitado no livro O DESPERTAR DE TUDO – uma nova história humanidade (David Graeber, falecido três semanas do término da escrita, após dez anos de trabalho, e David Wengrow. Ed. Schawartz. 2021, SP.): os seres humanos são inerentemente bons ou inerentemente maus?
Ninguém é inerentemente bom ou mau. Para um dos dois grandes pensadores iluministas, no Estado de Natureza, a vida era brutal, pobre, sórdida, curta, terrível de ser vivida porque resultava numa “guerra de todos contra todos”, daí a concepção de Hobbes, O Leviatã, o elemento repressivo que na concepção de Rousseau, em polo oposto, empurrou o homem de um estado original de inocência igualitária para a desigualdade e a escravidão.
Talvez a forma menos complicada de dizer ao neto adolescente que a guerra é o conflito em que a contenda acontece porque as pessoas não se reconhecem no regime político que nega a existência do outro.
A democracia, com todas as imperfeições e ameaças, permite o reconhecimento, o respeito e a convivência pacífica entre os cidadãos.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda
FONTE:
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/a-pergunta-do-neto-por-gustavo-krause