A quimera do Novo Ensino Médio
A quimera do Novo Ensino Médio
Seus inventores esqueceram que um estudante, aos 13 ou 14 anos, compelido a escolher uma trilha, tem ainda muito para aprender, para artistar, para experimentar
Nilton Mullet Pereira (*)
O Novo Ensino Médio é uma quimera, uma combinação absurda de partes desconexas, que só podem produzir tristezas, ao negar aos jovens o conhecimento científico, o pensamento de outros povos, a arte e infinitas formas de dizer e representar as coisas do mundo ou dos mundos. Essa quimera produz efeitos desastrosos, dois deles muito evidentes, pois são análogos a duas formas de esquecimento.
O primeiro efeito é a negação (e o esquecimento) do conceito de Educação Básica. A ideia de Educação Básica reúne um conjunto de conteúdos, conceitos, desafios e problemas intelectuais e afetivos, necessários à vida adulta, à cidadania, ao trabalho e às relações com/entre os seres do mundo. Essa formação básica pode até incorporar conteúdos como empreendedorismo, sustentabilidade, tecnologias digitais, ou mesmo, projetos de vida, no interior das diferentes disciplinas, mas nenhum deles, sozinho, substitui formas vitais como a música, a dança, as artes plásticas, a literatura, o esporte e todo o conhecimento produzido por diversos campos do fazer científico.
Os inventores da quimera esqueceram que um estudante, aos 13 ou 14 anos de idade, compelido a escolher uma trilha, da qual não poderá mais se desvencilhar, tem ainda muito para aprender, para artistar, para experimentar, de modo a constituir o que se pode chamar de básico, em termos de sua educação. Essa educação básica implica aguçar os sentidos, ampliar a complexidade do mundo dos jovens e a sua visão e sua perspectiva de outros mundos. Nos três anos do Ensino Médio, ainda que o estudante precise trabalhar para ajudar seus familiares ou sustentar a si mesmo, ele necessita se consolidar como cidadão de direitos, de deveres e de responsabilidades com a criação do presente e do futuro. E essa criação não depende simplesmente de formas ainda pouco organizadas de saberes, como aqueles inscritos nas opções apresentadas pelos itinerários formativos. Depende, sim, de disciplinas científicas e, ao mesmo tempo, de formas artísticas, vitais para a compreensão dos outros e de si mesmo. E são justamente os estudantes das escolas públicas que precisam de um currículo que inclua a arte, as línguas estrangeiras e a educação física, pois eles não possuem, como os estudantes da classe média, possibilidades para estudar línguas ou praticar uma atividade física. A escola e o Ensino Médio poderiam, muito bem, ser esse espaço de vitalidades, onde o mundo pode ser visto pelas lentes da artista, do corpo ou das mil histórias que o Novo Ensino Médio vai impedir os jovens de conhecer e de aprender.
O segundo efeito é o esquecimento das disciplinas, conjunto de criações conceituais e teóricas, da biologia, da química, da matemática, da literatura, da história, da geografia, da sociologia, da antropologia, da filosofia, da educação física, da música, da dança e do teatro, que funcionam como formas vivas de parte do conhecimento do mundo, da matéria e da memória, das coisas extensas e das coisas intensas, do modo de funcionamento do nosso corpo e das disposições políticas da nossa mente, das composições químicas da matéria até as formas de pensar e de compreender a realidade de diferentes povos. As disciplinas produzem uma autocrítica contínua, o que implica dizer que elas não têm o conhecimento acabado de tudo o que existe, mas que elas são capazes de dialogar com outras formas de conhecer, se reformulando e se modificando, historicamente. Ora, cada uma dessas disciplinas levou séculos para atingir um limiar de cientificidade, para constituir um corpo conceitual, uma matéria singular, e seguem em constante movimento, gerado pela investigação científica. Não é o caso, definitivamente, dos novos componentes curriculares dispostos nas trilhas que recobrem, até o terceiro ano, a maior parte do currículo do Novo Ensino Médio.
Esses dois esquecimentos marcam um cotidiano escolar onde professoras de História, por exemplo, ministram aulas de “projeto de vida”. Algo que nem seria absurdo, se “projeto de vida” fosse colocado como tema no interior da própria aula de História, mas quando se torna componente curricular, com uma carga horária determinada e ampla, aí o problema se torna incontornável. O cotidiano escolar, no Novo Ensino Médio, abandonou um conjunto infinito de conhecimentos produzidos por diferentes povos, ao redor do mundo, sistematizados em disciplina científicas, por um conjunto limitado de novos componentes curriculares que ou são temáticas desenvolvidas já no interior das próprias disciplinas ou são pouco tributários do debate acadêmico público, da pesquisa e da investigação científica.
O Novo Ensino Médio amplia os já conhecidos problemas relacionados a esse nível de ensino, sobretudo a evasão e a falta de perspectiva e de expectativa com o futuro. O rol dos itinerários tem efeito contrário do que pretendem, ao limitar as possibilidades de escolha e, ao mesmo tempo, ao não oferecer às jovens uma formação geral, que lhes permita aprender sobre a complexidade do mundo.
(*) Docente da área de ensino de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
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