A saída de cena de Jô
A saída de cena de Jô Soares fecha uma porta na inteligência nacional
Humorista, escritor e intelectual brasileiro deixa uma lacuna insubstituível no cenário brasileiro
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 05/08/2022
Por MARCOS FERNANDO KIRST
A saída de cena da vida de Jô Soares, aos 84 anos, nesta sexta-feira, 5 de agosto de 2022, fecha um ciclo no humorismo, na cultura e na inteligência brasileira. Não se trata de discurso saudosista, em que pese a profunda carga de saudades que um artista múltiplo como ele deixa, mas sim de uma constatação jornalística de que já vivemos dias melhores no país, no que tange à presença e ação, no cenário artístico/cultural, de nomes que nos ajudavam a pensar a realidade a partir da provocação de nossas inteligências e do convite elegante à reflexão.
Diferente, bem diferente de hoje, em que o século XXI parece desejar forçar um retorno ao modo de ser (e de pensar, e de agir, e de ver o mundo) da Idade Média, que imaginávamos (talvez, desinformada e ingenuamente) ter sido soterrado pelo acúmulo da poeira do tempo. O humor sutil e inteligente, protagonizado por artistas do calibre de Jô Soares (e de seus pares de mesma grandeza, também já idos, como Chico Anysio, para ficar só no exemplo dos gênios), derivava de um acúmulo de conhecimento e informação, amealhados a partir de uma vida dedicada à produção e ao ato de absorver arte e cultura.
Nos tempos em que Jô Soares atuava, tanto como humorista quanto como escritor e apresentador de programa televisivo de entrevistas, ainda era possível transitar em um cenário nacional em que o debate sobre temas e ideias relevantes se dava sobre uma plataforma de respeito e escuta às opiniões divergentes. Discordar evocava o arregimentar de novos argumentos, embasados na reflexão, no estudo, na absorção de formas diferentes de ver e de sentir o mundo. Divergir constituía uma ferramenta posta em ação com o propósito de ajudar a edificar a estrutura do tema debatido, fosse ele de ordem política, comportamental, social, cultural, o que fosse. Hoje, discordar se transformou em álibi para agredir.
O obscurantismo nubla o céu da inteligência nacional e ganha terreno sempre que a trincheira do bom senso perde generais da envergadura de um Jô Soares. Triste.
Jô Soares, intelectual que era, dedicou as décadas (longas) de seu existir a colaborar com os debates sobre as questões nacionais, tendo a sorte de vivenciar um ambiente ainda não completamente contaminado pela virulência troglodita do ódio, da raiva, da intolerância, do preconceito, da violência, da agressividade, da desinteligência, do baixo calão, da baixaria, que hoje pontuam as discordâncias em todas as esferas, em todos os assuntos, entre as pessoas de todos os círculos. De fato, não há mais espaço para gente como Jô Soares em um ambiente assim, obscurecido pelas trevas reevocadas daquilo que imaginávamos estar tampado para sempre dentro da lixeira da História.
Adeus, Jô. Vai deixar saudades e tristeza. Sim, em diversas áreas da vida desse país, tão carentes de bom senso, de equilíbrio e de bom humor.
Marcos Fernando Kirst é jornalista e editor do portal www.silvanatoazza.com.br.