A tirania do mérito
A tirania do mérito
Por Gabriel Grabowski / Publicado em 6 de julho de 2021
Diz que “estes são tempos perigosos para a democracia”, considerando o aumento da xenofobia e pelo crescente apoio público de figuras autocráticas que testam as normas democráticas. Adverte que tais apoios representam um protesto pela exclusão econômica resultante da globalização, mas, também, é uma reprimenda à abordagem tecnocrata da política, que é insensível aos ressentimentos de pessoas deixadas para trás pela exclusão econômica e cultural.
Sandel nos conduz a pensarmos “o que deu errado na nossa vida? O que nos trouxe a este momento político polarizado e rancoroso? Se contratar um empregado com base no mérito era uma prática aceitável, o que poderia estar errado com a meritocracia? Quando exatamente o mérito passou a ser tóxico e como isto aconteceu? De forma geral, sua reflexão prossegue e se aprofunda em torno como a meritocracia corroeu o bem comum, levando a arrogância dentre os vencedores e à humilhação entre aqueles que fracassaram.
Nas últimas cinco décadas, a narrativa do mérito e do merecimento tornou-se central no discurso público e no campo educacional, especialmente no ensino superior enquanto espaço reservado para os melhores. Um aspecto da meritocracia é o discurso das responsabilidades pessoais e transferir os riscos para os indivíduos, no caso, os jovens estudantes, livrando governos e empresas de suas co-responsabilidades. O outro aspecto é a retórica da ascensão, a promessa de que as pessoas que trabalham duro e seguem as regras, merecem ascender até onde os seus talentos e sonhos os levarem.
E é justamente esta perspectiva meritocrática que permeia as reformas e ideologias reformistas nas últimas três décadas no Brasil, inclusive a atual BNCC e reforma do novo ensino médio. Estão baseadas na pedagogia das competências e habilidades individuais dos estudantes, em projetos de vida e protagonismos juvenis, educação empreendedora e escolhas de itinerários próprios e desresponsabilização do Estado e da sociedade para com o futuro destes estudantes. Assim, a “BNCC propõe a superação da fragmentação radicalmente disciplinar do conhecimento, o estímulo à sua aplicação na vida real, a importância do contexto para dar sentido ao que se aprende e o protagonismo do estudante em sua aprendizagem e na construção de seu projeto de vida”.
Meritocracia pode ser compreendida como um sistema de hierarquização e premiação baseado nos méritos pessoais de cada indivíduo. O poder do mérito está assentado na suposição de qualidades individuais, resultado dos seus esforços e dedicações. Foi um britânico, em 1958, chamado Michael Young, que já previu a arrogância e o ressentimento que emergem com a meritocracia. A classificou como uma receita de discórdia social e desaconselhou como um ideal a seguir.
Ideologia dos privilégios
Para jovens que se preocupam com salários estagnados ou em declínio, trabalho intermitente, terceirização, informalidade, desigualdade e medo de que imigrantes irão roubar os empregos, as elites governantes oferecem uma recomendação animadora: faça uma formação técnico-profissional ou faculdade, mesmo em EAD, paga por sua conta. Prepara-se para competir e vencer na economia global. Só quem tentar, conseguirá.
E onde está a ideologia não revelada? Justamente no “não dizer” que mesmo que você faça tudo isto, você não terá nenhuma garantia que será o vencedor e que prosperará, pela simples razão de que o sistema sócio metabólico do capital (capital-trabalho e Estado) são muito mais complexos e poderosos que qualquer esforço individual. Nenhum jovem ou estudante se salvará sozinho neste mundo, muito menos no Brasil, onde a desigualdade e o racismo estrutural matam sonhos e inviabilizam futuros da grande maioria.
Jovens protagonistas em uma globalização fracassada
Mas, para os especialistas em educação, que descontextualizam a educação da totalidade da realidade, os jovens protagonistas poderão escolher entre itinerários de aprofundamento de estudos ou itinerário técnico-profissional que lhe darão competitividade e inserção neste mercado esfacelado pela globalização fracassada, pela economia estagnada, pela crise política instaurada e pelo aumento da desigualdade, onde os 1% mais ricos concentram mais riqueza que os 50% mais pobres.
Uma breve análise da qualidade do emprego dos jovens já identificamos que a dificuldade de inserção no mercado de trabalho hoje aumenta a propensão do jovem a aceitar uma ocupação de pior qualidade. Essa tendência é preocupante, pois, assim como episódios no desemprego no início da trajetória profissional, o ingresso no mercado de trabalho pelo emprego informal, tende a comprometer a trajetória profissional dos jovens por muito tempo. Para se ter uma ideia da gravidade do problema, durante o período 2012-2018, em média, 53% dos jovens de 15 a 29 anos entram no mercado de trabalho por meio do emprego informal.
Abandono escolar e geração de renda
O retorno massivo de adolescentes e jovens nas ruas e sinaleiras vendendo balas ou pedindo ajuda evidenciam que são justamente eles os mais afetados em momentos de crise como a do Brasil, que perdura desde 2015, acentuada pela pandemia. Os jovens foram os brasileiros mais impactados pelo aumento de desemprego que aumento em 2020. pelo trabalho informal e pela redução de renda nestes últimos anos. Basta conferir estudos do IBGE, FGV-Socail e o próprio IPEA.
A principal causa do abandono escolar (40%) é a necessidade de trabalhar e geração de renda. A evasão escolar na pandemia – por acesso precário ou nulo ao ensino virtual – está se dando por vários fatores, que vão desde a falta de conectividade e equipamentos, até a necessidade de garantir o sustento de famílias devastadas pelo desemprego, pela fome e pelas mortes e sequelas da Covid-19, bem como pela ausência de políticas públicas robustas de transferência de renda.
Reformistas reincidentes
Enquanto escolas, estudantes, professores e pais se empenham para fazer frente aos novos desafios emanados da pandemia – como a garantia do direito à educação e aprendizagem de todos estudantes -, os reformistas reincidentes, insistem em dar continuidade e implementação a uma reforma curricular, sem prévia formação de professores, sem um plano de investimentos e de condições para sua operacionalização. Trata-se de um duplo erro: a reforma não resolverá os problemas causados pela pandemia e desorganizará o que está funcionando apesar do contexto.
A questão que precisamos discutir coletivamente é como implementar mais uma reforma com as escolas fechadas desde março de 2020, sem discussão com estudantes – sujeitos principais da reforma – e com professores preocupados e focados com a transposição das aulas presenciais para plataformas. E pior, a pandemia continua com, uma média, de 2 mil mortes por dia e vacina a conta gotas.
Tudo indica que os especialistas estão apostando na desmobilização das comunidades escolares por conta da pandemia para “passar a boiada”. Governos buscam manter o controle do debate público da educação, e sabem que, enquanto a população estiver mais preocupada com a própria sobrevivência, os estudantes não criarão obstáculos à faraônica reorganização escolar que está em curso, que impactará por toda a vida os atuais estudantes, especialmente dos da escola pública e de periferia.
Deterioração da dignidade do trabalho
A era da meritocracia contribuiu na deterioração da dignidade do trabalho enquanto criador de vida. Trabalho é tanto econômico quanto cultural. É um modo de ganhar a vida e, também, é fonte de reconhecimento e estima social conclui Sandel. Portanto, reformas educacionais desintegradas de políticas de garantia do direito ao trabalho e renda aos jovens configura uma desonestidade intelectual, pois nos cabe desenvolver nos estudantes a capacidade de ler e entender o mundo e o mercado de trabalho no qual irão inserir-se. Induzir os estudantes a uma competição individualista é induzi-los ao fracasso e a frustrações existenciais irreparáveis.