Abandono ou exclusão escolar

Abandono ou exclusão escolar

Não existe abandono escolar, existe exclusão escolar

 

As informações do Censo Escolar de 2018 não deixam dúvidas: a situação da educação básica não melhorou, e a situação é pior no ensino médio, segmento que contou com menos 200 mil matrículas em 2018. 

O governo atribui a queda para 7,9 milhões em 2017 e 7,7 milhões em 2018 à melhoria na taxa de aprovação do ensino médio, mas também ao abandono dos estudos. Nesta entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, considerada a articulação mais ampla e plural no campo da educação no Brasil, analisa os números do Censo Escolar 2018, divulgados pelo Ministério da Educação no dia 31 de janeiro, e discorda dessa avaliação do governo. Ele ressalta que o Censo responde rapidamente às alterações nas políticas e ao atribuir o problema ao abandono escolar implica transferir a responsabilidade para o aluno, quando “quem abandonou as políticas de educação foram os políticos”.

A pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), verificando a qualidade da educação brasileira, revela que nos últimos cinco anos a queda total no ensino médio foi de 7,1%. A redução de matrículas também foi observada na Educação de Jovens e Adultos (EJA), que diminuiu 1,5% no último ano, chegando a um pouco mais de 3,5 milhões em 2018 contra 3,6 milhões em 2014.

Katia Machado – EPSJV/Fiocruz

O censo escolar que acaba de ser divulgado revela que o número de matrículas nas escolas públicas caiu em 2018 e a situação é ainda pior em relação às matrículas no ensino médio. Para se ter uma ideia, em 2014 tivemos cerca de 8,3 milhões de matrículas e, em 2018, foram 7,7 milhões. O governo diz que essa redução das matrículas é motivada pela melhoria na taxa de aprovação do ensino médio, mas também pelo abandono dos estudos. Você concorda com esse diagnóstico? A que fatores isso se deve?

O Brasil tem sido um dos países que apresenta um fenômeno que era raro no passado e agora está se tornando comum. As matrículas respondem muito rapidamente às alterações políticas. O que acontece? A Reforma do Ensino Médio é fruto de uma angústia dos governadores: se você faz uma política de educação ruim, perde votos, mas se faz uma política de educação boa, não tem muito ganho. Então, os políticos acabaram optando por evitar a criação de matrículas. Aconteceu aqui em São Paulo, por exemplo, a ‘reorganização’, que depois gerou a ocupação de escolas pelos estudantes. Depois aconteceu no Brasil todo – Espírito Santo, Goiás… E qual o objetivo disso? É fazer com que os alunos que ficam nas escolas sejam os alunos com melhor desempenho, o que é altamente absurdo e representa inclusive um crime de responsabilidade dos governadores. Com a Reforma do Ensino Médio, aquilo que já vinha mal ficou completamente desestruturado. A Reforma do Ensino Médio tornou o ensino médio brasileiro caótico. E o resultado desse caos é que foram feitas ações para reestruturar o ensino médio nos estados, não necessariamente para implementar a reforma, mas usando a reforma como uma desculpa e isso significou uma perda grande de matrículas. Os políticos vão dizer: há abandono. [A justificativa do] abandono significa transferir para o aluno a responsabilidade sobre a perda de matrículas no ensino médio. Na realidade, não é. A obrigação do poder público é fazer com que a política de educação seja interessante, que faça sentido para os jovens. Então, quando existe abandono, a responsabilidade é dos governadores, é do secretário estadual de educação.

O Censo Escolar está respondendo muito rapidamente àquilo que vem acontecendo, que é perceptível de forma muito concreta para quem está no dia-a-dia das escolas: a política de educação se perdeu e a política de ensino médio está mais perdida ainda. Esse é o reflexo da realidade educacional brasileira. É importante lembrar que o Brasil perde matrículas em todas as etapas, desde 2008/2009 a gente já começa a observar esse processo. No início diziam que era o bônus demográfico que se encerrava, mas não é verdade, o bônus está se encerrando, mas ele ainda não se encerra para esta geração que está nas escolas. Ele vai sentir encerrar para próxima geração. Significa que vai ter menos jovens e portanto menos demanda de vagas. O que eu sinto é que na realidade isso era uma desculpa e os políticos, naqueles momentos, já estavam fazendo um ajuste para o futuro. Ao invés de construir novas escolas, novas vagas para garantir o direito à educação daqueles que não estão tendo acesso à educação, eles pensavam no ponto futuro, que, se os governos estaduais construíssem mais escolas, haveria escolas ociosas. Sequer pensaram que poderiam transformar essas escolas em escolas de período integral, por exemplo.

A partir de 2013, começa a crise fiscal, que no Rio de Janeiro se observou de maneira muito presente, porque tinha todo o orçamento ancorado na exploração de petróleo. O resultado é que os governadores têm interesse em começar rapidamente não só a não abrir novas vagas, mas fechar as vagas já existentes, também estimulando com isso que alunos com maiores dificuldades sejam expulsos das escolas na prática. E a Reforma do Ensino Médio se tornou a grande desculpa. A política do governo petista, da gestão [Fernando] Haddad no Ministério da Educação gerou um desinteresse sobre o preceito fundamental de que a educação é para todos. Então, para melhorar o Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica], você tem que tirar os alunos com dificuldades. Depois o que acontece é que a Reforma do Ensino Médio gerou um caos e, sobre o caos, os políticos fazem o que querem.

O que eu quero tentar argumentar, não sei se está ficando claro, é que quando os políticos dizem que aumentou o abandono [escolar], eles estão culpabilizando os estudantes. Na realidade quem abandonou a política de educação foram os políticos.

Você avalia, então, que medidas como a Reforma do Ensino Médio, as novas diretrizes curriculares do ensino médio, que foram aprovados no ano passado, e a própria Base Nacional Comum Curricular poderão aprofundar esse cenário?

Podem aprofundar porque elas geram insegurança administrativa e gerando insegurança administrativa, tudo vira uma desculpa. Na verdade, elas em si, são pouco importantes, sequer estão sendo avaliadas como algo realmente concreto para se implementar. Elas são usadas como uma justificativa para a mudança das políticas e isso significa abrir mão, abandonar o direito dos estudantes à educação. O que eu quero tentar argumentar, não sei se está ficando claro, é que quando os políticos dizem que aumentou o abandono [escolar], eles estão culpabilizando os estudantes. Na realidade quem abandonou a política de educação foram os políticos. Foram os gestores, essa é que é a realidade. Abandonando a política de educação, acabam fazendo uma escola desinteressante, pouco importante para a vida concreta dos estudantes. Eles vão para a escola e não aprendem, não têm interesse, os professores têm que tirar leite de pedra e não conseguem. Eu sempre digo: não existe abandono escolar, existe exclusão escolar. A exclusão escolar é promovida por gestores.

A evasão escolar e até mesmo fracasso, especialmente no ensino médio, foram apontados como argumentos para a reforma do ensino médio instituída. Os dados do censo escolar vão confirmar esse diagnóstico?

Não, pelo contrário. A Reforma do Ensino Médio diz que quer diminuir o abandono escolar, que quer fazer com que a escola seja mais interessante, mas é exatamente o oposto. Ela torna a escola menos interessante, diz que o ensino pode ser feito à distância, sem o estudante estar preparado para esse processo de ensino. Na realidade, é como se você dissesse que está tomando uma iniciativa para resolver um problema, mas está agravando o problema.

A minha impressão é que a política de educação no Brasil só serve para fazer o oposto do princípio fundamental da crítica de educação. Ao invés de promover aprendizagem, interesse e permanência, ela serve para excluir aqueles que o Estado não tem interesse que aprendam, que se desenvolvam. Um exemplo claro é a história da militarização de escolas que vai ser muito forte no Rio de Janeiro, segundo as palavras do governador. Quando você observa as escolas militarizadas, elas sempre estão em regiões de periferia e seus alunos, com dificuldade, normalmente acabam apresentando “o mau comportamento”. O que se observa é que a Escola Militar ou a escola militarizada não serve para educar os estudantes, na verdade, ela serve para tentar domar os estudantes. Ela não trata os estudantes como cidadãos, mas como pessoas perigosas.

Além de fazer todas as agressões policiais contra os estudantes de ensino médio das periferias, o Estado agora, inclusive em relação à educação, está afirmando de maneira muito concreta que não tem nenhum interesse em fazer com que as pessoas, que são cidadãos, tenham direito à educação garantido. É o segundo estágio da política do camburão, que na prática é um navio negreiro, né?

Propostas defendidas pelo atual governo, como o ensino domiciliar, resolveriam o problema da evasão escolar?

Em tese, pode resolver o problema da evasão escolar porque você vai dizer que o aluno vai aprender, mas na prática o direito à educação não vai estar assegurado. Só existe direito à educação com aprendizagem. O direito à educação significa acesso a uma aprendizagem bastante ampla que vai muito além das provas de larga escala como o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. Entre outras coisas, um aspecto fundamental da educação é aprender a conviver, a construir coletivamente, a lidar com outro, a romper preconceito. Isso você não vai aprender em casa.

Não é que você não vai aprender em casa porque as famílias são ruins. É porque as famílias têm uma vida cotidiana ou uma estrutura cultural que coíbe a compreensão de que, por exemplo, não é aceitável que os estudantes brasileiros não sejam estimulados a refletir contra a homofobia. Um estudante que passa pelo sistema de ensino brasileiro não pode ser homofóbico, não pode ser racista, não pode ser machista, não pode ser sexista, não pode ser misógino, não pode ter preconceito de classe, não pode ter preconceito de região, de origem. Então essas questões dificilmente vão ser trabalhadas em casa.

O que atende ao interesse econômico da educação domiciliar? É criar grandes sistemas de educação a distância. A Damares [Alves, ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos] afirmou que os pais é que vão pagar a educação a distância. Ela fala isso no primeiro momento, mas a gente não sabe como vai ser a MP [medida provisória]. Um dos grandes apoiadores do atual governo é a Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed). 

Nos Estados Unidos, o ensino domiciliar gera um grande mercado...

Exatamente, e ele poderá gerar três mercados imediatamente no Brasil. Primeiro, mercado de hardwares: as máquinas que vão garantir a educação a distância. Aí tem um grande interesse de três países que competem por esse mercado – Japão, Coreia do Sul e China. Há outro grande mercado que envolve interesses tanto de indústrias de software nacional, como também internacional, que é o mercado do software, do sistema de educação a distância. Esse mercado do software tem, por exemplo, grandes atores que são tanto dos Estados Unidos como de Israel, que são muito próximos do conservadorismo estadunidense e do conservadorismo israelense. Então, também pode-se gerar um interesse de se somar uma política internacional afirmada por esse governo. O terceiro grande interesse é o dos sistemas didáticos. Você tem o hardware, o software, mas também tem o sistema didático que vai orientar o trabalho do professor, que vai orientar também o controle dos pais sobre o aprendizado dos estudantes. Esse mercado interessa a várias fundações empresariais brasileiras que atuaram fortemente na defesa da Base Nacional Comum Curricular.

O que fazer para reverter alguns desses problemas identificados pelo Censo Escolar 2019?

O problema é que para reverter esses problemas do Censo Escolar é preciso reverter a política econômica essencialmente. Então, a resposta seria reconstruir a política econômica. Eu participei de um livro que se chama ‘Economia para Poucos’, que faz uma crítica da gestão econômica do governo [Michel] Temer, um governo ultraliberal com aliança com ultraconservadores. O governo Bolsonaro é ultraconservador, com aliança com os ultraliberais. Então, na realidade, a disputa vai ser pela questão econômica.

O governo que não compreende direito civis e sociais como direitos, e sim como costumes, o que coloca muito em risco o Brasil. A realidade é que essa agenda de direitos civis e sociais que estão sendo atacados é uma agenda que não vai ser no primeiro ano do governo Bolsonaro. O foco vai ser a questão econômica.

O Brasil é um país que abandona a questão da EJA desde o seu processo de reconstrução, a partir da Constituição de 1988.

O Censo traz dados de redução de matrículas na Educação de Jovens e Adultos, diminuindo no último ano em torno de 1,5%. Qual análise desse cenário?

O que acontece com a EJA é que o maior legado que o Brasil tem, em termos de produção intelectual em relação à educação, está muito vinculado a ela, que é o trabalho do Paulo Freire. Mas o Brasil é um país que abandona a questão da EJA desde o seu processo de reconstrução, a partir da Constituição de 1988. Nenhum governo, nem governo Itamar Franco, Fernando Cardoso, Lula ou Dilma fizeram com que a pauta da EJA fosse prioritária. Agora o que acontece é que com o governo Temer, além de não ser prioritária, ela sofre corte de recursos do pouco que tinha. Esse é o resultado do Censo Escolar. Existe uma opção cínica dos governantes que é tratar a questão da EJA como uma simplesmente relacionada a idosos e esses idosos vão morrer, então não tem necessidade de desenvolver políticas de educação de jovens e adultos, o que é um absurdo.
 

O único segmento que vai ter um crescimento do número de matrículas é a educação profissional, que segundo o Censo, teve um aumento em 2018 de 3,9% em relação a 2017. O que esses números querem dizer?

A educação profissional é o único tema que de fato tem alguma centralidade na Reforma do Ensino Médio, por exemplo. Essa reforma serve para gerar um caos, fazer com que tudo seja desculpa para um abandono de uma política séria, além de servir também para estimular uma única política de ensino médio que é a educação profissional. O problema é que a educação profissional que está sendo ofertada não é a educação profissional do governo Lula, que foi uma política de educação profissional de qualidade. É uma política de educação profissional pautada naquilo que foi produzido no governo Dilma, que é a lógica do Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego], que é a mesma lógica do Fies [Financiamento Estudantil], mesma lógica do ProUni [Programa Universidade para Todos], visando uma grande quantidade de matrículas. Claro que no Fies e no ProUni você pode ter matrículas em universidades boas, mas isso não é a questão. A política de educação profissional ofertada é uma política de educação profissional de baixa qualidade, pautada no Pronatec, com cursos com baixíssima estrutura, com baixíssima qualidade e que não vão garantir o ingresso e permanência dos estudantes no mercado de trabalho. Por que cresce a política de educação profissional? Porque numa crise econômica todas as famílias estão extremamente angustiadas com a questão da sobrevivência, então a política de educação profissional parece ser uma política para emprego, mas não é. Ela só seria para emprego se ela tivesse qualidade, como não tem qualidade, acaba servindo só o subemprego. Então você vai ter o diploma de administração ou de técnico em administração, por exemplo, e vai trabalhar como recepcionista numa empresa. Não é o caminho.

Mas o Censo de 2018 consegue trazer boas notícias?

O censo só reflete um abandono da política educacional e a execução de uma política educacional, como no caso da educação profissional, de baixa qualidade. Então, mesmo só aferindo a questão da matrícula, o censo demonstra que a política educacional foi abandonada durante a gestão Michel Temer e que tende a ser pior agora se for pautada na política econômica em curso.

O censo traz dados sobre os docentes, chamando atenção para o fato de uma em cada três disciplinas ser lecionada por professor sem formação específica. No ensino médio, por exemplo, o percentual de disciplinas ministradas por professores com licenciatura na mesma área é de 61,9%. A situação vai ser pior no Nordeste, no Centro-Oeste... A proposta de Base Nacional Comum da formação de professores da educação básica, que foi apresentada também no ano passado, contribui ou aprofunda esse cenário?

Ela nem toca nesse cenário, porque na realidade existe uma questão estruturalmente econômica. Os professores com licenciatura, por exemplo, em física, química, biologia, têm mais resultados no mercado de trabalho. Essa política de formação de professores na realidade não atinge, porque os professores vão buscar melhores colocações no mercado de trabalho. Só vai significar que os professores vão implementar essa base, vão trabalhar com base na base curricular, mas de forma alguma vai significar melhoria da qualidade da educação em termos concretos né. O problema concreto do resultado do trabalho docente é econômico. Para a gente poder ter bons professores, precisa pagar melhor e ter uma boa política de carreira.

 

http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/nao-existe-abandono-escolar-existe-exclusao-escolar

http://campanha.org.br/plano-nacional-de-educacao/nao-existe-abandono-escolar-existe-exclusao-escolar/ 




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