Aberrações urbanas
Aberrações urbanas
Recolheram a um depósito o touro dourado da Bolsa de São Paulo. O bicho estava em espaço público, como um monstro do mercado financeiro que invadiu sem licença uma calçada que é de todos.
Faz bem esse debate sobre lixos estéticos que nem todos querem ver. A conversa leva a um consenso que não acolhe mais velhas controvérsias: os espaços das cidades, como ruas, calçadas e praças, são de uso comum, com leis e normas consagradas.
Mas há uma questão sempre em aberto. E se o touro estivesse numa área visível, mas em espaço privado da Bolsa? Se colocassem o touro dentro de um terreno particular, mas à vista de todos, aí tudo bem?
É quase certo que sim, que o touro num terreno particular ficaria lá, ruminando, e ninguém se importaria com o bicho.
Mas não direito absoluto quanto ao uso do espaço privado. Há leis, normas e controles, mesmo que o objeto em debate seja algo decorativo, como é o caso do touro do subcapitalismo brasileiro.
São Paulo tem uma lei avançada, chamada de Cidade Limpa, em vigor desde 2007, quando o prefeito era Gilberto Kassab. Outras cidades, entre as quais Porto Alegre, copiaram algumas regras em relação ao controle da poluição visual.
Em nome de regramentos básicos, a lei determinou, entre outras coisas, que São Paulo não teria mais outdoors e aqueles pirulitos gigantes com propagandas.
Tiraram os painéis das ruas e a cidade respirou melhor. Mas mexeram em espaço privados? Sim, porque donos de prédios e terrenos não são controladores sem limites das suas propriedades e das relações dessas com as cidades.
A paisagem urbana não é constituída apenas de espaços coletivos públicos, mas do conjunto de coisas e bens públicos e privados. Códigos urbanos tratam dessas regras desde a invenção das cidades.
A paisagem provoca impactos visuais, estando os prédios, as árvores, as placas ou os touros dourados em espaços públicos ou privados. É básico, é elementar, é da natureza da convivência civilizada.
Vou relembrar uma história de 2012, que ilustra com um fato o que muita gente não entende. José Fogaça fazia campanha pela reeleição à prefeitura de Porto Alegre.
O prefeito caminhava pela Azenha, o bairro com uma loja ao lado da outra. A área estava se submetendo a novas regras para placas do comércio. Seria, pelo que lembro, um projeto piloto.
Uma comerciante reclamou que ninguém mais sabia onde ficava sua loja, porque as placas com os nomes tinham uma altura baixa e quase todas do mesmo tamanho. Fogaça respondeu algo como: por que sua loja deveria ser diferente?
Se ela era dona da loja e se a placa estava grudada na fachada, a moça poderia fazer o que bem entendesse? Ela achava que sim. Mas não, não poderia.
Essas restrições não poupam pequenos comerciantes, mas há concessões em cidades variadas, em todo o Brasil. Uma dessas concessões beneficiam, mesmo que alegadamente baseadas nas leis, as estátuas grotescas das Lojas da Havan.
Estão em espaço privado, podem estar em situação regular, mas o bom senso diz que não deveriam ser aceitas pacificamente, mesmo que fora do chamado ‘perímetro urbano’ ou em periferias.
Mas lá estão, por imposição econômica. Sob o argumento de que geram empregos e pagam muitos impostos, as lojas impõem às cidades as estátuas gigantescas. Qual é o sentido daquilo? A propaganda e a fixação de uma marca. Só.
O pretexto de que estão afastadas dos centros e de que enfeitam as cidades é mais esdrúxulo do que as próprias estátuas. Não enfeitam nada.
Não há vínculos com a história local, não há um valor sociocultural, não há nada além do interesse econômico. As réplicas não reproduzem, fora do lugar original, nenhum significado. São coisas fora do lugar.
Estão ali por concessão de prefeitos e vereadores e pelas acomodações das tais “forças vivas”, com raras exceções. É assim que funciona. Aceitação e resignação.
Isso significa que outros comerciantes podem erguer estátuas de figuras sem sentido algum, por capricho dos seus donos e porque os espaços são privados? Certamente não.
É improvável que uma cidade, de qualquer porte, aceite a disseminação de estátuas semelhantes por todos os bairros, como uma moda espalhada pelo véio da Havan. Haveria uma reação. Mas as estátuas verdes podem.
As estátuas de plástico da Havan são a expressão dos tempos bolsonaristas, como aberração estética e como agressão visual e cultural, até porque algumas não têm nem mesmo a altura proporcional da estátua verdadeira.
As estátuas verdes que desabam, como uma desabou com os ventos em Capão da Canoa, no Rio Grande do Sul, são reproduções grotescas poluidoras de ambientes urbanos que não precisam de enfeites desse tipo, mas de cuidado, acessibilidade, funcionalidade, limpeza e, se possível, alguma arte.
Réplicas como essas não serão nunca arte. Cidades que recebem as estátuas sem reação merecem que tais aberrações sejam impostas como a ostentação jeca de uma bizarrice.
Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o Extra Classe.