Abolição

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Por MÁRIO MAESTRI*

A revolução social vitoriosa do Brasil

Neste 13 de maio, transcorre mais um natalício do fim da escravatura no Brasil. Nosso país foi uma das primeiras nações americanas a instituir e a última a abolir a escravidão colonial. Dos 523 anos de história do Brasil, mais de 350 transcorreram sob o látego da ordem escravista. Apesar da superação do escravismo ter sido a única revolução social vitoriosa no Brasil, constituindo o mais glorioso e significativo sucesso de passado nacional, o aniversário da Abolição transcorrerá, outra vez, semi-esquecido. O 13 de Maio seguirá sendo combatido e destratado, até mesmo por muitos dos que deviam saudá-lo com orgulho e emoção.

A Abolição já foi data magna celebrada sobretudo pelos que a viveram e compreenderam sua dimensão histórica. Nas últimas décadas, ela tem sido caluniada e objeto de verdadeira conspiração de silêncio. Paradoxalmente, a desconstrução da Abolição foi lançada, em 1988, por dirigentes do movimento negro que, ao contrário, deveriam desdobrar-se na celebração e discussão da sua importância, servindo-se de sua memória na luta da pela segunda abolição, agora social, em aliança com todos os explorados e oprimidos.

Brasileiro cordial

O caráter cordial, transigente e pacífico do brasileiro já foi um dos grandes mitos nacionais. A abolição da escravatura foi apresentada como prova dessa pretensa realidade. No exterior, o fim da instituição medonha motivara lutas fratricidas. Nos EUA, a Guerra de Secessão, de 1861 a 1865, causou seiscentas mil vítimas. No Haiti, em 1804, quando foram consolidadas a independência e a destruição da ordem negreira, pelos trabalhadores escravizados, na mais violenta guerra social das Américas, não restava na ilha um só ex-escravista.

No Brasil, ao contrário, a transição ao trabalho livre teria sido efetuada sem violências, devido a instituições sensíveis ao progresso dos tempos, a líderes esclarecidos e à humanitária alma das chamadas elites. Neste cenário de paz e de concórdia, destacaria-se a imagem fulgurante de Isabel, a Redentora. Apiedada com o sofrimento dos negros feitorizados e despreocupada com a sorte do trono, a regente imperial assinou, com pena de ouro, o diploma que pôs fim ao cativeiro e, dezoito meses mais tarde, à monarquia.

Sociedade fraterna, pátria da democracia racial

Em 13 de maio de 1888, começaria a construção de sociedade fraterna e desprovida de barreiras de raças e de classes. As desigualdades remanescentes deveriam-se a deficiências não essenciais da civilização brasileira, ancorada por uma concórdia estrutural vivida por ricos e pobres; por brancos, negros e pardos; pelos descendentes dos colonizadores e pelos povos originais. Ao menos, era o que se sugeria e, não raro, se afirmava.

Acontecimentos pátrios referenciais – a Independência, em 1822, a Abolição, em 1888, e a República, em 1889, o fim da ordem oligárquica-federalista, em 1930, para não falar da “Redentora”, de 1964 –, teriam como denominador comum terem ocorrido sem traumas, ou quase, devido ao caráter nacional, pacífico e consensual do povo brasileiro. Apresentou-se também o caráter patriarcal e transigente da ordem escravista como a grande construção de uma natureza magnânima nacional que quebrantava contradições de raça, credo e classe.

Desde os anos 1930, as origens de uma escravidão feliz, de um mundo estranho ao racismo, de um brasileiro transigente foram explicadas por Gilberto Freyre, o mais brilhante – e cabotino – intelectual produzido nessa já chamada Terra dos Papagaios, em Casa-Grande & Senzala. Literalmente chancelado pelo Estado brasileiro, esse ensaio, no início quase magrelo, ganhou páginas sobre páginas, não raro contraditórias, até o atual volume de dimensão XGG, esperando talvez o autor que a sua extensão soterrasse as sandices propostas.

Escravidão feliz

Em 1985, o Brasil viveu “redemocratização”, sob o permanente controle das classes dominantes, em que os bandidos da véspera mantiveram seus privilégios e foram anistiados em seus crimes. Entretanto, nos anos anteriores, a mobilização crescente dos trabalhadores das cidades e dos campos e o surgimento de entidades negras combativas haviam desnudado a triste realidade subjacente ao discurso da “fraternidade brasileira”, da “democracia racial”, de um país sem contradições de classe.

As narrativas laudatórias sobre a Abolição, sobre o caráter patriarcal e consensual da escravidão, sobre a fantasiosa democracia racial, sobre a ausência de contradições, oposições e ódios sociais e de classes se trincavam definitivamente contra a triste realidade contemporânea, que o movimento social desvelava em toda a sua extensão e profundidade.

Em fins dos anos 1970, diante dos mais míopes, desnudava-se situação onde a população negra encontrava-se opulentamente representada entre os segmentos populares mais explorados e marginalizados. Revelava-se, mais e mais, uma realidade onde a pele negra dificultava comumente o acesso ao trabalho, favorecia salários ainda mais escorchantes, constituía um verdadeiro passaporte para a prisão e, mesmo, para o cemitério.

A luta pela memória

Fora longa e dura a luta pela recuperação dos sentidos e realidades do passado escravista do Brasil. Inicialmente, prevaleceram as propostas pacificadoras e apologéticas de um escravismo neo-patriarcal, consagradas por Gilberto Freyre, como vimos. Apenas nos anos 1950, o trotskista francês Benjamin Péret e o comunista Clóvis Moura assinalaram de forma incontornável o caráter escravista da antiga formação social brasileira, o domínio da contradição opondo escravizados e escravizadores, a necessidade da destruição da escravidão para o avanço da antiga formação social brasileira.

Aquelas leituras revolucionárias foram literalmente canceladas, permanecendo sem desdobramentos imediatos no mundo das representações sobre o passado. Nos anos seguintes, as descrições benignas da escravidão e a “democracia racial” foram refutadas por sociólogos como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Roger Bastide. Porém, eles negaram a determinação do passado pelos trabalhadores escravizados, apresentados como não-agentes históricos de sua história.

Aqueles e outros autores propuseram que a superação do escravismo fora uma espécie de “negócio de brancos”, nas palavras de Octávio Ianni, onde os cativos não intervieram e não obtiveram ganhos substanciais. A escravidão chegara ao fim pela decisão das classes dominantes ascendentes, para dar passo a formas de exploração capitalistas mais dinâmicas. Uma visão próxima à de Gilberto Freyre, que chegou a propor que o fim do cativeiro se dera contra os interesses dos escravizados.

Centenário da Abolição

Quando do I Centenário da Abolição, em 1988, lideranças do movimento negro abraçaram acriticamente a tese da Abolição como “negócio de brancos”, com o objetivo de melhor denunciar a situação de marginalização econômico-social da população afro-descendente. Destaque-se que, naquele então, sem descurar a luta anti-racista, as direções do movimento negro priorizavam as reivindicações materiais dos segmentos negros marginalizados – salário, educação, moradia, saúde, segurança, etc.

Para desmistificar a Abolição como movimento emancipacionista, ressaltou-se que ela se efetuara sem indenização dos trabalhadores escravizados. Que o movimento abolicionista buscara, essencialmente, libertando os cativos, criar mão de obra barata, como fora proposto por não poucos cientistas sociais. Chegou-se a sugerir que após a Abolição, as condições de existência das massas negras teriam, em muitos sentidos, talvez piorado, tese defendida igualmente por Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, de 1936.

A crítica do 13 de Maio, para denunciar a situação real da população negra marginalizada contemporânea, confundia libertação civil e emancipação social; a luta abolicionista contra a escravidão e o sancionamento pela regente de lei arrancada ao Parlamento pelos escravizados semi-sublevados, apoiados pelo movimento abolicionista radicalizado. Literalmente, atirava-se fora o bebê com a água do banho!

13 de Maio contra 20 de Novembro

Passou-se a agitar o 20 de Novembro, definido como Dia Nacional da Consciência Negra, como o inverso do 13 de Maio, data da mistificação branca. Em 20 de novembro de 1695, morrera lutando, ao lado de alguns poucos seguidores, escapados da destruição do mocambo dos Macacos, em um ermo dos sertões da capitania de Pernambuco, Zumbi, o último comandante militar da confederação dos quilombos de Palmares, sucesso histórico luminar das lutas sociais do Brasil no período colonial.

Com o 20 de Novembro homenageava-se a luta dos trabalhadores escravizados, no passado, e eram denunciados o racismo e a situação de enorme parte da população negra, no presente. Havia que seguir, como Zumbi e seus quilombolas, a luta pela obtenção das reivindicações da população negra e pela destruição da ordem social iníqua. Talvez como uma espécie de vingança tóxica da história, essa data referencial também tem sido abandonada pelas novas direções identitárias negras.

Não há sentido em antepor o 20 de Novembro ao 13 de Maio. A luminar epopéia palmarina envolveu parte das colônias escravistas nordestinas e jamais propôs, e historicamente não poderia ter proposto, a destruição da escravidão como um todo. Palmares resistiu por décadas, determinou a história do Brasil, mas foi derrotado. A revolução abolicionista, ainda que tardia, envolveu toda a nação e suas classes sociais. E, sobretudo, foi vitoriosa, pondo fim ao escravismo e inaugurando uma nova era nacional.

Última pá de cal

A crítica, bem-intencionada, do 13 de Maio, sem qualquer base histórica objetiva, fortaleceu as leituras dos ideólogos das classes proprietárias que procuraram, desde 1888, escamotear o sentido daqueles sucessos fulgurantes, nascidos dos esforços e das lutas das massas escravizadas, aliadas aos setores abolicionistas radicalizados. Visão defendida pioneiramente por Clóvis Moura, em Revoluções da Senzala, e por tantos outros cientistas sociais, que interpretaram o passado segundo a ótica dos oprimidos.

Para melhor denunciar a situação da população negra marginalizada, a malhação de Judas da Abolição lançou a última pedra na construção do esquecimento e descrédito do mais importante acontecimento histórico brasileiro – a revolução abolicionista culminada em 1887-8. E isso que Marx avisara ser o “caminho do inferno pavimentado de boas intenções”.

Esquecia-se que, celebrando-se o 13 de Maio, não se reafirmava o mito da libertação concedida, com Isabel como sua promotora. Ignorava-se que, com a comemoração da Abolição, recuperava-se a importância de uma superação histórica maior. Vitória materializada pelos escravizados que prepararam e impuseram o fim da ordem escravista, apoiados em bloco pluriclassista radicalizado. Ignorava-se ter sido a Abolição a única revolução social até hoje vitoriosa no Brasil.

Ser escravo no Brasil

Os que criticavam a Abolição ignoravam o que fora ser escravo no Brasil. Foi imenso o impacto do 13 de maio de 1888, na consciência e na vida dos trabalhadores feitorizados libertados juridicamente. Por um século, eles e seus descendentes batizaram seus filhos, clubes, associações, publicações com aquela data ou, imerecidamente, com o nome da herdeira da casa de Bragança, a grande responsável pela manutenção do cativeiro quase até o século 20.

Em inícios de 1980, Mariano Pereira dos Santos, ex-cativo centenário, que conhecera a miséria como homem livre, antes de morrer, afirmava, comovido, que o povo negro vivera “na glória”, após a “Libertação”, forma com a qual os cativos se referiam comumente à Abolição. Maria Benedita da Rocha, a Maria Chatinha, também ex-cativa centenária, que conhecera igualmente uma vida de misérias, referiu-se arrebatada ao fim do cativeiro na sua fazenda.

Em 13 de maio de 1888, nas cidades e nos campos, os tambores e atabaques ressoaram poderosos, ferindo em derradeira vendeta os tímpanos dos negreiros derrotados. Uma celebração que se estendeu aos libertos e negros livres, que viam extinguir-se uma instituição que era justificada pela pretensa inferioridade da “raça negra”. Em 15 de novembro de 1889, não poucos “13 de maio” temeram a restauração da escravidão ou ensaiaram defesa da monarquia, já que viam na República movimento contra os seus interesses, no que, de certo modo, não se enganavam.

Uma festa dos oprimidos

A visão do 13 de Maio como concessão da Redentora, constitui cristalização alienada na memória popular daquelas magníficas jornadas. Constituiu movimento consciente das classes dominantes de corrosão do sentido referencial de sucessos protagonizados pelos trabalhadores escravizados e seus aliados. Paradoxalmente, o sentido radical dessas jornadas já foi desvelado por inúmeros trabalhos historiográficos, entre os quais se destacam, pelo pioneirismo, os magníficos Os últimos anos da escravatura no Brasil, de Robert C. Conrad, e, Da senzala à Colônia, de Emília Viotti da Costa.

Hoje é farta a historiografia descrevendo a extrema tensão sob a qual o movimento abolicionista radicalizado alcançou a vitória, em maio de 1888, após décadas de lutas. Vitória obtida ao ligar a sua agitação política, cultural e ideológica à ação da massa escravizada, a grande interessada e protagonista da Revolução Abolicionista. No citado trabalho, Robert Conrad registra a Abolição como conquista da insurreição, não sempre incruenta, dos cativos que, nos últimos meses da escravidão, abandonaram maciçamente as fazendas cafeicultoras ou reivindicaram e obtiveram relações contratuais de trabalho dos seus ex-proprietários.

Nos últimos momentos da escravidão, projeto abolicionista, sem a indenização dos escravistas, foi aprovado no parlamento, por larga maioria, quando as fazendas cafeicultoras estavam desertadas de seus cativos e as forças armadas não tinham condições de sufocar aquela rebelião. Em 13 de maio, a regente imperial nada mais fez do que sancionar a chamada Lei Áurea, assinando o atestado de óbito de instituição agônica devido à ação decidida dos trabalhadores escravizados. Sem esta última, a escravidão teria se mantido, quem sabe, ainda por anos.

Revolução social vitoriosa

Em um sentido histórico, foi a oposição estrutural das classes escravizadas, durante os três séculos de cativeiro, que construiu as condições que ensejaram, mais tarde, a destruição da servidão. A rejeição permanente, consciente, semi-consciente e inconsciente, do cativo ao trabalho feitorizado impôs limites insuperáveis ao desenvolvimento da produção escravista, singularmente coesa, determinando altos gastos de coerção e vigilância que abriram espaços para formas de produção superiores, com proposto, por Jacob Gorender, em O escravismo colonial, obra referencial sobre a organização do passado escravista.

Em 1888, a revolução abolicionista destruiu o modo de produção escravista colonial que dominara e conformara, por mais de três séculos, a sociedade no Brasil. Negar essa realidade devido às condições econômicas, passadas ou atuais, de parte da população descendente dos trabalhadores escravizados, é compreender e explicar a história com visões não históricas. A grande vitória da Revolução Abolicionista foi a liberdade civil e o fim da organização escravista da sociedade e da produção.

Em um contexto pré-capitalista, os limites da Abolição eram objetivos. Durante a Colônia e o Império, foi singular a coesão econômica, política, ideológica e militar da sociedade e da produção escravista, que tivera na monarquia sua super-estrutura estatal. As duras condições de trabalho e de existência; a dispersão geográfica, econômica, cultural, etc. dos escravizados; a repressão a que eram submetidos, etc. impediam objetivamente o nascimento e a expansão entre os explorados de consciência e de programa abolicionistas, em um imenso espaço territorial pré-nacional.

Limites da revolução abolicionista

Não houve espaço para o desenvolvimento de classes livres que apoiassem a luta dos escravizados. Toda a rebeldia anti-escravista era dura e impiedosamente reprimida. Nas últimas décadas da escravidão, com o fim do tráfico transatlântico de africanos, em 1850, o cativo era categoria social em declínio, que lutava sobretudo pelos direitos cidadãos mínimos. Ou seja, a liberdade. Foi a reivindicação da liberdade civil que uniu a luta dos cativos rurais, concentrados no Centro-Sul, à dos cativos urbanos, então já numericamente pouco representativos.

Não procede a proposta de Abolição sem conteúdo porque os cativos não foram indenizados. Desvalorizam a liberdade apenas os que a sempre gozaram. Nas grandes transições entre modos de produção conhecidas pela humanidade, que representaram ganhos relativos, mas substanciais, para as classes oprimidas que as impulsionaram, em geral em forma inconsciente, jamais houve indenização dos produtores diretos. Na transição do escravismo antigo ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, etc., não houve emancipação social plena e indenização dos produtores diretos. A emancipação social e política dos oprimidos é possível apenas na transição do capitalismo ao socialismo, devido ao alto desenvolvimento das forças produtivas materiais.

Entretanto, em teoria, a Abolição poderia ter assegurado melhores condições materiais aos ex-cativos e ex-libertos, através da distribuição de terras, única indenização então possível. Ao igual do vivido por outras regiões escravistas das Américas. São várias as razões para o mesmo não ter ocorrido no Brasil. O enorme poder dos latifundiários, a pouca difusão de hortas servis, a reivindicação prioritária da liberdade dificultavam movimento pela distribuição de terras.

A vitória na luta pela concessão de colônia teria exigido a união de cativos, caboclos, posseiros, colonos europeus etc. Realidade então praticamente impossível, devido ao baixo nível de consciência e de organização e à elevada heterogeneidade e dispersão das classes rurais exploradas. O fato é que os cativos não reivindicaram a divisão da terra, enfatizando a luta pela liberdade civil e por condições contratuais de trabalho. Não raro, retiraram-se para regiões desabitadas, onde viveram semi-isolados. Porém, a concessão de terras foi defendida explicitamente pelos mais conseqüentes chefes abolicionistas – André Rebouças, José do Patrocínio etc.

Programa abolicionista

O governo formado pelo Partido Liberal, em 7 de junho de 1889, e deposto pelo golpe republicano, de 15 de novembro, aprestava-se a realizar alguma forma de distribuição de nesgas de terras, para os ex-cativos, caboclos, etc. Entretanto, os sem-terras eram disputados como mão de obra pelos latifundiários, a verdadeira base de sustentação do golpe republicano. A Lei de Terras, de 1850, fora criada, precisamente, para fabricar sem-terras, para irem trabalhar nas grandes fazendas.

É incongruência histórica propor a Abolição como um “negócio de brancos”. Os escravistas sempre quiseram mais negros, e não se livrar deles. Durante o Primeiro e o Segundo Reinados, os Braganças defenderam renhidamente a escravidão e os escravistas, classe dominante hegemônica, até meses antes da Abolição. Nos meses finais da escravidão, os mais renitentes negreiros, que já reconheciam a inevitabilidade do fim da instituição, esforçavam-se para explorar seus cativos alguns meses, alguns dias, algumas horas a mais e, sobretudo, reivindicavam a indenização pela libertação de propriedade reconhecida pela lei.

Na ausência de conquistas econômicas quando da Abolição pesou também a contra-revolução republicana – oligárquica e federalista – de 15 de novembro de 1889. O federalismo radical pôs fim ao movimento abolicionista, projeto reformista nacional, como proposto. Os limites históricos da Abolição não devem minimizar a importância da conquista de direitos políticos e civis mínimos, por setecentos mil “escravos” e “ventre-livres”. Em 13 de maio de 1888, superava-se a distinção entre trabalhadores livres e escravizados, iniciando-se a história da classe operária brasileira unificada contemporânea, que as classes dominantes se esforçam para trincar.

Círculo que se fecha

Nos anos 1990, a derrota histórica do mundo do trabalho e a euforia neoliberal determinaram também os destinos gerais da historiografia. No Brasil como alhures, os holofotes da mídia, o interesse das editoras, o bom tom historiográfico apontaram para estudos monográficos, intimistas, biográficos e exóticos, tranquilizadores das consciências e pacificadores dos espíritos. De ciência que procurava libertar, a história transformou-se, fortemente, na arte de entreter e de inebriar os leitores.

Decaíram o interesse e os incentivos para estudos sobre as classes trabalhadoras urbanas, o movimento camponês, os fenômenos essenciais da sociedade humana e os estudos analíticos e estruturais sobre o passado. As pesquisas sobre a escravidão, sobre as formações sociais, sobre os modos de produção, em desprestígio, foram dominadas por teses que retomavam as propostas da escravidão benigna e consensual defendidas no passado por Gilberto Freyre e, antes dele, pelos escravistas.

Nos dias atuais, com o avanço sem travas do conservadorismo mundial e nacional, o círculo da negação da Abolição se encerra com um idêntico silêncio sobre o 20 de Novembro, apenas menos explícito. Senzala, eito, tronco, quilombo, trabalho escravizado, resistência servil, revolução abolicionista são eventos atinentes ao mundo do trabalho, hoje derrotado, negado e desvalorizado.

Um novo movimento negro identitário, nascido à sombra do grande capital e do imperialismo, não sonha em virar a mesa, onde se sentam alguns poucos privilegiados, como tentaram, sem sucesso, Zumbi e milhares de quilombolas e cativos insurrecionados. Batalha em que foram vitoriosos, nos limites das possibilidades históricas, os cativos cafeicultores, em 1888. O identitarismo procura, apenas, que lhe sejam cedidos alguns poucos lugares, nas últimas fileiras, no jantar dos poderosos.

A revolução deles e a nossa

O movimento identitário se afasta e nega os trabalhadores escravizados como seus ancestrais. Procura no passado, sobretudo, apenas os raros africanos e afro-descendentes que enriqueceram durante e após a escravidão. Eles servem como paradigmas e comprovação da possibilidade da concretização, hoje, do “empreendedorismo negro”. Operação publicitária que afirma que todos podem chegar lá, através de uma autoexploração desenfreada. Mesmo que, no mundo real, apenas um e outro ascendam na cadeia alimentar capitalista. Pisando, é claro, firme, sobre brancos, negros, pardos, amarelos e por aí vai. Pois, entre os lobos, deve-se uivar como lobos.

A história é processo objetivo e complexo, tendencialmente ascendente, onde as conquistas sociais de ontem, parciais e contraditórias, possibilitam eventualmente avanços mais substanciais. Movimento que pode, igualmente, conhecer recuos históricos. Regressão que enseja e promove, como nos dias atuais, o obscurecimento da compreensão do passado e de seu encadeamento com o presente. Em um contexto de proposta vigência eterna da ordem capitalista, encerram-se os indivíduos em espaço existencial acrônico, em que não há mais o que foi nem o que eventualmente será. Há apenas a prisão em um agora, sem reflexão e consciência, de seres reduzidos à função de produtores e consumidores, no melhor dos casos.

Concluída em 13 de maio de 1888, a Revolução Abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas nacional e moderno do Brasil, promovido pelos abolicionistas e sustentado e realizado pelos trabalhadores escravizados, em aliança com libertos, trabalhadores livres, segmentos médios e alguns poucos proprietários não-escravistas. Até agora, foi a única revolução social vitoriosa do Brasil, que dissolveu a organização da sociedade então dominante, dando lugar a outra, mais avançada.

Resgatando e desvelando o sentido e a história da Revolução Abolicionista, seguiremos mais facilmente no caminho apontado pelos trabalhadores escravizados, que ousaram, apesar dos perigos que corriam, abandonar as senzalas, carregando como armas suas enxadas, para pôr fim à ordem negreira, no não tão longínquo ano de 1888. Se a situação que vivemos nos fere e desagrada por sua feiura e brutalidade, como não podia deixar de ser, a responsabilidade não cabe aos nossos ancestrais, que fizeram a sua revolução, nos limites das possibilidades objetivas. A responsabilidade cabe simplesmente a nós, que não fizemos ainda a nossa. E, para fazê-la, não podemos deixar de saudar os valentes trabalhadores escravizados e abolicionistas que, em 13 de maio de 1888, nos apontaram o caminho a seguir. Então, mãos à obra. E viva a Abolição!

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).

 

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