Abusos em colégios cívico-militares
MP recebe denúncias e abre procedimento para investigar abusos em colégios cívico-militares
A propaganda do governo prometeu segurança, mas é o medo e a indignação que passaram a fazer parte da rotina de mães, pais estudantes de colégios que foram militarizados no Paraná
Enganados(as) pelo governo e aterrorizados(as) com a exposição de seus filhos a situações vexatórias e tratamento degradante nas escolas cívico-militares do Paraná, pais e mães têm procurado o Ministério Público para denunciar atitudes de monitores militares. No entendimento de especialistas, as práticas adotadas por esse modelo de ensino na rede pública configuram abusos e graves violações de direitos das crianças e adolescentes.
“O governador prometeu colocar militares nas escolas para dar mais segurança, mas está sendo o contrário. Não está tendo segurança, inclusive as crianças estão sendo punidas e castigadas”, conta o pai de um adolescente que estuda em um colégio estadual da periferia de Curitiba, que migrou neste ano para o modelo militarizado.
O filho dele tem o cabelo comprido e relatou ao pai ter sido submetido a situações constrangedoras no ambiente escolar por iniciativas dos monitores. “Eles ficam gritando com as crianças, intimidando, ameaçando, falando que quem não cortar o cabelo do jeito que eles estão mandando e que quem usa brinco não vai entrar na escola e vai receber punição. Meu filho e os outros estudantes foram obrigados a ficar duas horas em pé, em posição de sentido”, relata.
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O pai afirma que questionou a direção da escola sobre a ilegalidade das exigências e das práticas e sobre a falta de formação pedagógica dos monitores – que são policiais aposentados – para trabalhar com crianças e no ambiente escolar. Como resposta, diz que foi abordado de forma grosseira e orientado a procurar outra instituição, caso não esteja satisfeito com o novo método adotado na escola.
“Meu filho contou que no momento com os militares, um deles falou: não adianta vocês falarem para os pais que vocês ficaram duas, três aulas em pé, porque não vai resolver nada. Isso é um modo de coagir as crianças. A ditadura foi decretada nos colégios. A criança está traumatizada. Até mesmo o medidor cardíaco dele se altera no momento em que eles ficam com os militares. Foi extinta a palmatória, agora o jeito deles punirem os alunos é desta maneira”, desabafa. v
Conforme apuração da reportagem da APP-Sindicato, a 2ª Promotoria de Justiça da Criança e do Adolescente de Curitiba abriu um procedimento administrativo para apurar as denúncias e solicitar providências. Por tratar de direitos da criança e do adolescente, o processo tramita em segredo de justiça e o pai pediu para não ter seu nome revelado, para preservar a identidade da criança.
Estão violando o ECA
A mãe de um adolescente negro também procurou o Ministério Público em busca de proteção para os direitos de seu filho, que usa cabelo afro e brinco. O estudante está matriculado em outra escola cívico-militar da periferia de Curitiba.
Ela contesta a patrulha estética, que obriga os meninos a cortar o cabelo no estilo militar e retirar acessórios como brinco e piercing, sob ameaça de serem proibidos de acessar a escola e de receber punições. Com medo de que seu filho sofra retaliações, ela aceitou conceder entrevista, mas pediu que sua identidade e o nome da escola não fossem divulgados.
“Estão violando totalmente o ECA. Cadê os direitos dos nossos filhos? O que um cabelo vai interferir no aprendizado?”, contesta a mãe. Ela diz que se sente enganada pela escola, porque na reunião que antecedeu a consulta pública para decidir se o colégio abandonaria o modelo de ensino democrático, foi informado que só mudaria a cor do uniforme e que não haveria nenhuma imposição relacionada a identidade dos(as) alunos(as). De acordo com a mãe, as regras estéticas só foram informadas em uma reunião realizada no início do ano letivo.
“As crianças vão ser perseguidas, só não sei a partir de que dia. Então cada dia que meu filho vai, eu tenho mais medo de deixar ele nesse colégio. Eu não sei mais como as crianças são tratadas lá dentro. Eu me sinto bem insegura, porque até a maneira com que eles tratam os alunos está sendo grosseira. Eles não têm nada pedagógico para trabalhar com os alunos. Então eu venho trabalhar, meu filho vai para o colégio, mas eu não me sinto segura”.
Segundo a mãe, após ver outros estudantes negros e mais velhos da escola com o cabelo afro, o filho dela superou recentemente o sentimento de vergonha que tinha sobre sua aparência. Ela conta que buscou a direção da escola para explicar a importância do cabelo para o desenvolvimento e para a identidade racial do menino, mas não obteve sucesso. Inconformada com o tratamento recebido, passou a procurar outros órgãos para pedir ajuda e denunciar o problema.
“Já fiz reclamação no Ministério Público e na ouvidoria da Secretaria da Educação, porque eu sei que o ECA diz muito claro sobre a liberdade de expressão das crianças e adolescentes. Isso está sendo violado. Um cabelo, um brinco ou um piercing não vai influenciar no aprendizado de nenhum aluno. Muito pelo contrário, o que eles estão fazendo no colégio, está desestimulando os alunos a estudar”.
A mãe diz que também tentou mudar o filho para outra escola, mas não há vagas. Segundo ela, caso tenha sucesso com essa possibilidade, isso implicaria em outra violação de direitos e em despesas com a contratação de transporte privado, já que o transporte coletivo não possui linha na proximidade da sua casa com itinerário até outros estabelecimentos de ensino.
“Meu filho não é um militar. Eles não tão lá pra cuidar de policiais. Eles estão tratando as crianças como se fosse pra ser formação de policiais. E não é. O meu filho não vai tirar o brinco e não vai cortar o cabelo. Eu vou lutar por esse direito dele”.
Violência racial
As normas de padronização do cabelo e proibição de acessórios constam no manual das escolas cívico-militares, elaborado pela Secretaria da Educação. O documento alega que as regras correspondem a “aspectos educacionais relacionados com a higiene, boa aparência, sociabilidade, postura, dentre outros”. Especialistas ouvidos pela APP avaliam que as regras violam direitos, reforçam preconceitos e discriminações e não possuem relação com a qualidade de ensino.
Para a secretaria do Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial e Coordenadora do Fórum Nacional da Educação Básica/ABPN, Tânia Mara Pacifico Hreisemnou, as exigências são incompatíveis com o respeito à diversidade e promovem preconceito e violência contra as pessoas negras.
“O que as exigências do citado Manual induzem, na verdade, é o arraigado preconceito, ainda enraizado na nossa sociedade conservadora. Adolescentes não são militares, e talvez nem queiram sê-los. Devem, portanto, ter algumas pretensões estéticas respeitadas. Principalmente em relação ao corte e estilo do seu cabelo”, diz.
Doutoranda em Educação e pesquisadora com atuação no temas das relações raciais, educação e Lei 10.639/2003, a professora pontua que a violência instituída com a padronização do corte de cabelo pode acarretar uma negação forçada das origens raciais, além de frustração e revolta aos(às) atingidos(as) pela medida.
“A exigência normativa contém um grau de violência incompatível aos(às) jovens que lutam para valorizarem seu pertencimento étnico-racial. É absolutamente necessário que haja liberdade de escolha, isto é, os interessados devem expressar sua vontade. Seu desejo estético em relação ao corte de cabelo deve ser respeitado”, afirma.
“Estão adestrando crianças”
Para a advogada e integrante da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/PR, Cristiane Aparecida Stoeberl, a imposição de um padrão de conduta e valores baseado no modelo militar para crianças e adolescentes viola diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, como Estatuto da Criança (ECA) e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB).
Mestre em Direitos Humanos e doutoranda em Direito, a advogada destaca que as escolas militarizadas afrontam o artigo 205 da Constituição. O dispositivo especifica os princípios do direito à educação, como a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas.
“Eles adestram a criança para obedecer. Isso não é pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Como é que se vai promover o pluralismo de ideias se você impõe uma ideia para a criança o modo de ser e de pensar? Isso é totalmente inconstitucional. Não permitindo que a criança seja quem ela é, está violando a dignidade humana, o livre desenvolvimento da personalidade”, diz.
Com base na legislação, Cristiane afirma que a escola tem que ser um ambiente que acolha a diversidade, inclusive para que as crianças e adolescentes construam o sentimento de pertencimento. “Como é que você vai promover o ambiente escolar que na verdade está dizendo para aquela criança adolescente: esse aqui não é o meu lugar, eu não consigo me identificar com esse lugar aqui?”, questiona.
Segundo a professora, a militarização de escolas não é um processo isolado, mas faz parte de ações coordenadas de movimentos conservadores e de grupos ligados à extrema-direita, que têm outras pautas já declaradas inconstitucionais, como o Escola Sem Partido, e o homeschooling, além de ideias que acatam direitos de pessoas negras, LGBTI+ e outros grupos sociais inferiorizados pela estrutura dominante da sociedade.
“Esse movimento da militarização é herança da ditadura militar. O que se quer desenvolver proibindo as crianças de serem quem são? Isso é um adestramento, não é desenvolvimento. Qual é o objetivo desse tipo de educação? É formar um cidadão incapaz de refletir, de perceber a sua própria visão de mundo, de formar um pensamento crítico. Uma pessoa que só aceita e obedece é o tipo de cidadão que se quer desse tipo de escola”.
Considerando que a idade escolar coincide com um momento de construção da personalidade, Cristiane manifesta preocupação com o efeito de desumanização que a proposta cívico-militar promove, tanto na formação individual dos(as) estudantes, quanto nas relações sociais no futuro, com aumento de pessoas intolerantes.
“O contato com estilos, personalidades, ideias, pessoas diferentes estimula respeito às diferenças, promove a educação para paz. Se você está delimitando o campo de vivência dessa criança, está estimulando a intolerância aos diferentes, faz a criança acreditar que o ser diferente é um crime, anormal, uma aberração, no sentido de desumanização”, diz a professora.
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Homem agride estudantes e militar diz que faria o mesmo
Nos últimos dias, denúncias de casos de violência e cerceamento de direitos eclodiram em colégios cívico-militares do Paraná, demonstrando a fragilidade do modelo para cumprir a promessa de “segurança” e “disciplina”.
Além da inação dos monitores militares para conter brigas, em dois casos eles(as) participaram – ativa ou passivamente – das agressões. A APP recebeu evidências das ocorrências, incluindo vídeos, mas não publicou o material para evitar a exposição das comunidades escolares.
No Colégio Jayme Canet, de Curitiba, um homem branco não identificado e de grande estatura agrediu dois estudantes menores de idade em frente à escola com socos e empurrões. A gravação mostra que o agressor agiu com extrema violência, intimidando e ameaçando outros(as) alunos(as).
O monitor militar da escola, não apenas não interviu como teria dito que “faria o mesmo”, de acordo com relatos de diversos estudantes que contataram a APP.
“Quando fomos tirar satisfação com o monitor policial (subtenente), ele disse que isso que estava acontecendo ali era consequência das nossas ações, porque fizeram algo para o filho dele (o agressor). E que ele, o subtenente, faria o mesmo”, conta um dos(as) alunos(as).
Em nota, a escola informou que está tomando as medidas cabíveis. Os comentários na publicação demonstram a indignação de estudantes e pais com o ocorrido e, em especial, com a postura dos monitores militares.
No início deste mês, outro episódio em um colégio cívico-militar de Apucarana, causou revolta. A professora e presidenta da APP de Apucarana, Isabel Cristina de Oliveira Azevedo, foi vítima de ofensas machistas e misóginas por parte de um dos militares enviados pela Seed ao Colégio Polivalente Carlos Domingos Silva.
Inconstitucional
O programa foi adotado em cerca de 200 escolas estaduais no primeiro mandato do governo Ratinho Jr. Até hoje, não há notícia de resultados positivos, mas o estado já conta com 312 estabelecimentos nesta modalidade.
A última ampliação se deu em 2023, em um processo de consulta marcado pela condução autoritária do governo, sem prazo para o debate nem espaço para o contraditório, escandaloso uso da máquina pública, episódios de coação e censura a educadores(as) e estudantes, restrição ao voto de alunos(as), entre outras irregularidades que põem em xeque sua legitimidade.
Para além das práticas antissindicais, segundo a especialista em educação e integrante da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Catarina de Almeida Santos, pais, mães, educadores(as) e estudantes não têm direito a voto para militarizar escolas públicas. A proibição está na Constituição.
“A comunidade escolar não pode escolher militarizar ou não a escola, porque ela não é legislativa. Ora, não existe essa modalidade legalmente. Como é que a comunidade pode sair decidindo coisas que não estão previstas na lei?”, diz, lembrando também que estados e municípios não podem criar leis sobre o sistema de educação, pois o tema é de competência exclusiva da União.
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