Aceite ser manipulado

Aceite ser manipulado

Aceite ser manipulado: tenha ódio de política!

Frei Betto  21/12/2021


Há uma tra­di­ci­onal ma­neira de caçar ratos: basta co­locar um pe­daço de queijo dentro de uma ar­ma­dilha. O ro­edor sente o cheiro da iguaria e, ágil, corre para de­vorá-la. Ao se apro­ximar, co­mete um erro in­vo­lun­tário que lhe custa a vida: pisa no me­ca­nismo que fecha, au­to­ma­ti­ca­mente, a ra­to­eira, apri­si­o­nando-o.

É o que faz o po­pu­lismo de di­reita para neu­tra­lizar po­ten­ciais adeptos das teses pro­gres­sistas. Apregoa o ódio à po­lí­tica. Alar­deia que todos os po­lí­ticos são cor­ruptos! (In­clu­sive seus adeptos...). Subs­titui as pautas so­ciais pela de cos­tumes. Re­força o mo­ra­lismo fa­ri­saico. Assim, con­vence muitas pes­soas a ter aversão à po­lí­tica.

Quem tem ódio da po­lí­tica é go­ver­nado por quem não tem. E tudo que os maus po­lí­ticos querem é que te­nhamos bas­tante nojo da po­lí­tica para, então, dar a eles carta branca para fa­zerem o que bem en­ten­derem. O que mais temem é que par­ti­ci­pemos da po­lí­tica para im­pedir que seja ma­ni­pu­lada por eles.

Não existe neu­tra­li­dade po­lí­tica. Existe a doce ilusão de que po­demos ig­norar a po­lí­tica, ab­dicar do voto e ficar re­co­lhido ao nosso co­mo­dismo. Ao agir desta forma, nos tor­namos o rato que come tran­qui­la­mente o sa­bo­roso queijo, sem ainda se dar conta de que perdeu a li­ber­dade e, pro­va­vel­mente, a vida.

Nin­guém es­capa dos dois únicos modos de fazer po­lí­tica: por omissão ou par­ti­ci­pação. Ao ficar alheio à con­jun­tura po­lí­tica, ig­norar o no­ti­ciário, evitar con­versas sobre o tema e nos abster nas elei­ções, as­si­namos um cheque em branco à po­lí­tica vi­gente. A omissão é uma forma de adesão à po­lí­tica e aos po­lí­ticos que, no mo­mento, di­rigem a po­lí­tica do país no qual vi­vemos.

O outro modo é a par­ti­ci­pação, que tem duas faces: a dos que apoiam a po­lí­tica vi­gente e a dos atuam para mudá-la e im­plantar um novo pro­jeto po­lí­tico.

As forças po­lí­ticas de di­reita, que na­tu­ra­lizam a de­si­gual­dade so­cial, acusam muitos po­lí­ticos de cor­ruptos (às vezes, com razão!). Mas não pro­põem ig­no­rarmos a po­lí­tica. Pro­põem subs­ti­tuir os po­lí­ticos por em­pre­sá­rios, dentro da ló­gica ca­pi­ta­lista de pri­va­ti­zação do es­paço pú­blico e do Es­tado. Foi o caso do go­verno fra­cas­sado de Macri, na Ar­gen­tina, e de muitos ou­tros exem­plos mundo afora.

Em tudo há po­lí­tica

A po­lí­tica não é tudo, mas em tudo há po­lí­tica. Desde a qua­li­dade do café que to­mamos todas as ma­nhãs até as con­di­ções hu­manas (ou de­su­manas) de nossas mo­ra­dias. Tudo na vida de cada um de nós de­pende da po­lí­tica vi­gente no país: a qua­li­dade de nossa edu­cação es­colar, o aten­di­mento à saúde, a pos­si­bi­li­dade de em­prego, as con­di­ções de sa­ne­a­mento, trans­porte, se­gu­rança, cul­tura e lazer. Não há ne­nhuma es­fera hu­mana alheia à po­lí­tica.

In­clu­sive a na­tu­reza de­pende dela – se as flo­restas são ou não pre­ser­vadas, se as águas são ou não con­ta­mi­nadas, se os ali­mentos são or­gâ­nicos ou trans­gê­nicos, se os in­te­resses do ca­pital pro­vocam ou não des­ma­ta­mentos e de­se­qui­lí­brio am­bi­ental. A qua­li­dade do ar que res­pi­ramos de­pende da po­lí­tica vi­gente.

Um dos re­cursos que a di­reita uti­liza para do­minar a po­lí­tica é a ma­ni­pu­lação da re­li­gião, em es­pe­cial no con­ti­nente ame­ri­cano, onde a cul­tura está im­preg­nada de re­li­gi­o­si­dade. A mo­der­ni­dade lo­grou es­ta­be­lecer uma sau­dável dis­tinção entre as es­feras po­lí­tica e re­li­giosa. Isso após longos sé­culos de do­mi­nação da po­lí­tica pela re­li­gião. Hoje, em prin­cípio, o Es­tado é laico e, na so­ci­e­dade, a di­ver­si­dade re­li­giosa é res­pei­tada e tem seus di­reitos as­se­gu­rados, tanto no âm­bito pri­vado (crer ou não crer), quanto no pú­blico (ma­ni­fes­tação de culto).

Atu­al­mente, os re­li­gi­osos fun­da­men­ta­listas querem con­fes­si­o­na­lizar a po­lí­tica. Usar e abusar do nome de Deus para en­ganar os in­cautos. Ora, nem a po­lí­tica deve ser con­fes­si­o­na­li­zada, pois tem que estar a ser­viço de crentes e não crentes, nem a re­li­gião deve ser par­ti­da­ri­zada. A Igreja, por exemplo, deve aco­lher todos os fieis que co­mungam a mesma fé e, no en­tanto, votam em can­di­datos de di­fe­rentes par­tidos po­lí­ticos.

Isso não sig­ni­fica que a re­li­gião é apo­lí­tica. Não há nada nem nin­guém apo­lí­tico. Uma re­li­gião que acata a po­lí­tica vi­gente está, de fato, le­gi­ti­mando-a. Toda re­li­gião tem como prin­cípio bá­sico de­fender o dom maior de Deus – a vida, tanto dos seres hu­manos quanto da na­tu­reza. Se um go­verno pro­move de­vas­tação am­bi­ental ou pri­vi­legia os ricos e ex­clui os po­bres, é dever de toda re­li­gião cri­ticar este go­verno. Sem pre­tender ocupar o es­paço dos par­tidos po­lí­ticos, como, por exemplo, apre­sentar um pro­jeto de pre­ser­vação am­bi­ental ou de re­forma econô­mica. Em sua missão pro­fé­tica, cabe às con­fis­sões re­li­gi­osas abrir os olhos da po­pu­lação para as im­pli­ca­ções éticas da po­lí­tica de­le­téria do go­verno.

No caso dos cris­tãos, entre os quais me in­cluo, é sempre bom frisar que somos dis­cí­pulos de um pri­si­o­neiro po­lí­tico, Jesus de Na­zaré. Ele não morreu de aci­dente nas es­ca­da­rias do Templo de Je­ru­salém, nem de do­ença na cama. Foi per­se­guido, preso, tor­tu­rado, jul­gado por dois po­deres po­lí­ticos e con­de­nado a morrer as­sas­si­nado na cruz. Foi con­si­de­rado sub­ver­sivo por de­fender os di­reitos dos po­bres e ousar, dentro do reino de César, propor outro reino, o de Deus, que con­siste em um novo pro­jeto ci­vi­li­za­tório ba­seado no amor (nas re­la­ções pes­soais) e na par­tilha dos bens da Terra e dos frutos do tra­balho hu­mano (nas re­la­ções so­ciais).

Por­tanto, não há como al­guém es­capar da po­lí­tica. Es­tamos todos imersos nela. Se a po­lí­tica que pre­do­mina hoje em nosso país e no mundo não nos agrada, bus­quemos meios para al­terá-la. A re­a­li­dade atual de nosso país e do mundo re­sulta da po­lí­tica ado­tada nas dé­cadas pre­ce­dentes. Cabe a cada um de nós se de­cidir: acatar ou trans­formar?

Um dos exem­plos mais cu­ri­osos de que tudo tem a ver com a po­lí­tica é este: o úl­timo mês do ano é de­zembro, que equi­vale ao nu­meral dez. Antes dele, no­vembro, nove. Atrás, ou­tubro, oito. Pre­ce­dido por se­tembro, sete. E quantos meses tem o ano? Doze!

Eis a po­lí­tica: na Roma an­tiga o ano com­pre­endia 304 dias e tinha 10 meses: mar­tius, aprilis, maius, ju­nius, quin­tilis, sex­tilis, sep­tember, oc­tober, no­vember e de­cember. Mais tarde foram acres­cidos os meses de janus e fe­bru­a­rius.

Para ho­me­na­gear os cé­sares, o se­nado ro­mano mudou os nomes de quin­tilis para julho, em honra do im­pe­rador Júlio César, e sex­tilis para agosto, em honra de César Au­gusto. Como havia a al­ter­nância de 31/30 nos dias de cada mês, não era ad­mis­sível que o mês de Au­gusto ti­vesse um dia a menos que o de Júlio. Assim, ar­rancou-se um dia de fe­ve­reiro. Julho e agosto são os únicos dois meses do ano que se su­cedem com 31 dias cada um.

Po­demos não saber que a po­lí­tica está em tudo, mas está. Porque o ser hu­mano não in­ventou, e acre­dito que nem in­ven­tará, outra ma­neira de or­ga­nizar a sua con­vi­vência so­cial a não ser através da po­lí­tica.


Frei Betto é es­critor, autor de"A mosca azul” (Rocco), entre ou­tros li­vros. Li­vraria vir­tual: frei­betto.org

 

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