Acesso universal à Educação Infantil
Acesso universal à Educação Infantil ainda é desafio orçamentário e estrutural para municípios
Decisão do STF do ano passado determina que crianças de zero a cinco anos sejam atendidas pelo poder público
31/01/2023 - VANESSA FELIPPE
Educação Infantil compreende creches (que atendem crianças de zero a três anos) e pré-escolas (de quatro a cinco anos). Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Lugar de criança é na escola. A afirmação, da qual é difícil discordar, muitas vezes fica só na teoria no caso da Educação Infantil, principalmente nas grandes cidades brasileiras. Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a oferta de vagas em creches e pré-escolas é de responsabilidade do poder público. A grande novidade, que tem gerado mais repercussão, é sobre as creches, que atendem aos pequenos de zero a três anos de idade. Até então, a obrigatoriedade constitucional era para a pré-escola, que recebe as crianças de quatro e cinco anos. Agora, segundo a Suprema Corte, todas as crianças de zero a cinco anos devem ser atendidas e contempladas quando as famílias buscarem uma vaga. No Brasil, a Educação Infantil é uma atribuição do poder municipal.
No entanto, a determinação da Suprema Corte não garante que, na vida real, os pais possam ficar mais tranquilos. Uma pesquisa realiza pela Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, mostra o tamanho do desafio: 52% das 392 cidades (são 497 no total) que responderam aos questionamentos disseram que há fila de espera, em maior ou menor escala, e que não se sentem preparados para cumprir a decisão do STF.
Sessenta por cento afirmaram que não possuem espaços físicos próprios para atender a demanda reprimida; 60% também informaram que não há, em seus territórios, prédios do governo estadual que possam ser cedidos para atividades escolares e 31% têm algum valor atrasado para receber do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Levantamento feito por GZH mostra que, apenas nos cinco maiores municípios gaúchos, mais de 12,6 mil crianças de zero a cinco anos estão na fila de espera por uma vaga, principalmente em creches, onde o déficit é sempre maior do que na pré-escola. GZH consultou as secretarias municipais de educação de Porto Alegre, Caxias do Sul, Canoas, Pelotas e Santa Maria. Na Capital, atualmente, 6,3 mil bebês e crianças de zero a cinco anos estão na fila de espera. Há regiões com maior e menor demanda e há poucas creches no Centro, por exemplo. A rede municipal de ensino tem 42 instituições próprias e 214 conveniadas, que atendem atualmente 28 mil alunos. A Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) afirma que tem trabalhado para reduzir o déficit e que, nos últimos dois anos, ampliou a oferta em creches em 3 mil vagas. Para acabar com a fila de espera, a pasta calcula que seriam necessários cerca de R$ 80 milhões, de imediato.
Em Caxias do Sul, atualmente, a fila de espera tem cerca de 2.506 crianças de zero a cinco anos de idade. A estimativa é de que seriam necessários R$ 30 milhões para sanar o déficit. Em Canoas, a demanda reprimida é apenas para creche, com 2.240 crianças de zero a três anos aguardando para serem chamadas. Para acabar com o déficit, o valor estimado seria de R$ 25 milhões.
Pelotas tem uma lista de espera de 1.648 vagas, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação. Para colocar todas essas crianças em creches e pré-escolas, seriam necessários aproximadamente R$ 35 milhões.
A prefeitura de Santa Maria não informou uma estimativa de lista de espera. A explicação é que a cidade está em processo de matrículas na rede municipal de ensino. No entanto, caso haja compra de vagas para contemplar a todos que ficarem na lista de espera, é possível que o custo aumente em 150%, superando os 15 milhões anuais.
Presidente da Famurs, Paulinho Salermo afirma que respeita a posição do STF e que os municípios precisam de mais ajuda do governo federal.
— Nós temos trabalhado para ampliar o acesso às creches, não fugimos da nossa responsabilidade, mas precisamos de mais recursos por parte da União. A tabela de repasses do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) deveria ser atualizada.
O Fundeb repassa um valor anual para cada município: em 2022, R$ 9.316,76 por aluno na etapa de creche em turno integral. O dilema, destaca Paulinho, é que o custo é maior: em média, um município gasta, por mês, com cada aluno desta etapa R$ 1,2 mil ou R$ 1,3 mil (poderia chegar a mais de R$ 15 mil anuais, portanto). A conta não fecha.
Levantamento realizado em outubro do ano passado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) aponta que os municípios gaúchos vão precisar investir mais de R$ 5,5 bilhões para se adequar à decisão do STF. O cálculo leva em conta apenas as vagas para creche, ou seja, para crianças de zero a três anos, pois o acesso à pré-escola já era obrigatório, tendo filas de espera menores ou inexistentes, segundo o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski.
— No Brasil, o investimento seria de R$ 120 bilhões a mais para cumprir a decisão de imediato e colocar todas as crianças de zero a três anos na creche. Decisão judicial não se contesta, se cumpre, mas me parece que cabe uma reflexão de toda a sociedade: por que só os municípios precisam pagar essa conta? Não é assim que chegaremos a uma educação de qualidade. A Constituição fala que garantir a Educação Infantil é um dever do Estado. Estado envolve todos os níveis, no nosso entendimento — pondera Ziulkoski.
Caminhos possíveis
Para Cezar Miola, presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), o entendimento do STF reconhece uma dívida que o Brasil tem, há muitos anos, com a primeira infância.
— A Educação Infantil, principalmente a creche, ainda não recebeu a atenção e o investimento necessários. E não é só garantir a vaga: cabe assegurar que a criança vai ser bem atendida na escola, incluindo a alimentação, a saúde e os estímulos necessários para o seu desenvolvimento — explica Miola.
Por meio de nota, a assessoria de imprensa do Ministério da Educação (MEC) afirmou que "o ministro Camilo Santana tem reiterado a disposição e a concentração de esforços para a pactuação de um grande projeto pela qualidade da Educação Básica, a ser lançado pelo MEC no próximo mês (em fevereiro)".
Miola também comenta a dificuldade financeira das prefeituras.
— Eu entendo e conheço a realidade dos municípios. Sei que essa decisão vai acarretar custos, mas os gestores precisam eleger prioridades. Aliás, no caso, se trata de uma prioridade já definida constitucionalmente, sobre a qual não há espaço para escolhas, de maneira que os orçamentos precisam contemplar essa política pública. É uma questão de cumprir a lei. Ao mesmo tempo, penso que este tema deve gerar uma grande mobilização nacional. O governo federal precisa encontrar maneiras de ajudar financeiramente os municípios a cumprir essa determinação. Aliás, o apoio técnico e financeiro da União também é obrigação prevista na Constituição — acrescenta Miola.
O presidente da Atricon aponta, ainda, alternativas para unir os poderes em prol da educação. Por exemplo, o novo Fundeb, que foi aprovado no Congresso Nacional em agosto de 2020, com a promulgação da Emenda Constitucional 108/2020, e regulamentado em dezembro daquele mesmo ano. O conselheiro do TCE pontua que o novo Fundeb assegura uma parte específica para a Educação Infantil, reforçando este tipo de investimento: a chamada complementação-VAAT (valor total anual por aluno, uma das parcelas do Fundeb) reserva 50% do montante transferido pela União a municípios para investimento, exclusivamente, na Educação Infantil. O fundo é composto por contribuições dos Estados, Distrito Federal e municípios e por uma complementação da União sobre esses valores. Hoje, o Fundeb representa 63% do investimento público em Educação Básica e, conforme o presidente da Atricon, não pode ser utilizado para o pagamento de aposentadorias e pensões.
Outra iniciativa capaz de ajudar os municípios é o Sistema Nacional de Educação, já aprovado no Senado e que precisa ser votado na Câmara dos Deputados. O projeto que cria o SNE pretende alinhar políticas, programas e ações da União, do Distrito Federal, de Estados e de municípios. A ideia é universalizar o acesso à educação básica e garantir seu padrão de qualidade; erradicar o analfabetismo; garantir a igualdade de oportunidades educacionais; articular os níveis, etapas e modalidades de ensino; cumprir os planos de educação em todos os níveis da Federação; valorizar os profissionais da área, entre outras ações.
— Mantendo as devidas proporções, tendo em vista que são áreas muito diferentes, o SNE poderia representar uma espécie de SUS (Sistema Único de Saúde) da Educação. Serviria para organizar e colocar em prática, com regras e atribuições claras, também um grande regime de colaboração entre os governos federal, estadual e municipal. Já passou da hora de a Educação Infantil ser levada mais a sério no país. Em maior ou menor proporção, ainda há um grande atraso. Vale lembrar que a meta número 1 do Plano Nacional de Educação prevê o atendimento em creches, até 2024, para, no mínimo, 50% das crianças de zero a três anos. Para cumprir esta meta, o Brasil ainda precisaria criar mais 2 milhões de vagas — garante Miola.
Enquanto os maiores municípios do RS têm mais de 12 mil crianças na fila, cidades menores zeram déficit de vagas
A ansiedade de famílias que não conseguem vaga na Capital contrasta com a tranquilidade de pais que contam com creches de boa qualidade e com turno integral
31/01/2023 VANESSA FELIPPE
O acesso universal à Educação Infantil é um desafio para as cidades brasileiras, como apresentado na primeira parte desta reportagem. Somente nas cinco maiores cidades do Rio Grande do Sul, a fila de espera por uma vaga para crianças de zero a cinco anos em creches e pré-escolas ultrapassa 12,6 mil vagas.
Enquanto o debate mobiliza o poder público, a enfermeira Sara Ferreira Zuanazzi, 37 anos, segue na batalha da vida real. Mãe de dois filhos, Lisie e Lucca Ferreira Zuanazzi, nove e três anos de idade, respectivamente, ela luta por uma vaga para o caçula na rede municipal de ensino de Porto Alegre desde 2020. Pelo terceiro ano seguido, a família seguiu todos os passos de inscrição e matrícula que a Secretaria Municipal de Educação exige, sem sucesso.
A situação é ainda mais delicada porque o menino é autista. Como o marido trabalha como segurança das 7h às 19h, Sara se desdobra para dar conta de tudo. Justamente por isso, precisa de uma creche perto de casa, no Bairro Santana.
— Pelo terceiro ano seguido, estamos na fila de espera da escolinha que fica mais perto, mas me disseram que tem cerca de 20 crianças na frente do Lucca. Nas outras duas - porque somos obrigados a selecionar três na hora da inscrição -, conseguimos vaga, mas é inviável por ser longe. Com o trânsito, eu corro o risco de perder o emprego — diz Sara.
As alternativas oferecidas devem ficar a até 2 quilômetros da casa da família, conforme a Defensoria Pública do Estado. As duas oferecidas para Lucca eram mais distantes do que isso. Sara já reduziu sua carga horária de trabalho para levar e buscar o caçula nos atendimentos médicos:
— Não posso fazer menos horas e ganhar ainda menos. O tratamento dele é caro e necessário. O Lucca está evoluindo, não podemos interromper o processo. É frustrante, estou muito ansiosa. Não tem como ser uma creche longe. Infelizmente, vou dizer para darem a vaga para outra criança. Olhamos as escolinhas particulares, mas não temos condições de pagar. Vamos tentar no ano que vem de novo — lamenta Sara.
Lucca não é um caso isolado. A distância entre a moradia e a escola é uma reclamação recorrente das famílias. Na capital, atualmente, 6,3 mil bebês e crianças de zero a cinco anos estão na fila de espera. Há regiões com maior e menor demanda e há poucas creches no Centro, por exemplo. A rede municipal de ensino tem 42 instituições próprias e 214 conveniadas, que atendem atualmente 28 mil alunos.
A Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) afirma que tem trabalhado para reduzir o déficit e que, nos últimos dois anos, ampliou a oferta em creches em 3 mil vagas. Para acabar com a fila de espera, a pasta calcula que seriam necessários cerca de R$ 80 milhões, de imediato.
Caxias do Sul, Canoas, Pelotas e Santa Maria
Porto Alegre não é o único município com esse problema. GZH consultou as cinco maiores cidades do Estado. Em Caxias do Sul, atualmente, a fila de espera tem cerca de 2.506 crianças de zero a cinco anos de idade. A estimativa é de que seriam necessários R$ 30 milhões para sanar o déficit. Em Canoas, a demanda reprimida é apenas para creche, com 2.240 crianças de zero a três anos aguardando para serem chamadas. Para acabar com o déficit, o valor estimado seria de R$ 25 milhões.
Pelotas tem uma lista de espera de 1.648 vagas, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação. Para colocar todas essas crianças em creches e pré-escolas, seriam necessários aproximadamente R$ 35 milhões.
A prefeitura de Santa Maria não informou uma estimativa de lista de espera. A explicação é que a cidade está em processo de matrículas na rede municipal de ensino. No entanto, caso haja compra de vagas para contemplar a todos que ficarem na lista de espera, é possível que o custo aumente em 150%, superando os 15 milhões anuais.
Municípios menores conseguiram zerar a fila
Daiane Both, 36 anos, voltou a trabalhar na segunda quinzena de janeiro, quando terminou a licença-maternidade. Como toda mamãe, o coração da vendedora de Dois Irmãos, no Vale do Sinos, ficou apertado com a "separação" da pequena Sofia, cinco meses. No entanto, como ela própria admite, esta é uma preocupação boa para os pais.
— Estamos muito felizes e tranquilos porque sabemos que ela está bem cuidada enquanto trabalhamos. Nós buscamos a vaga logo depois que eu saí do hospital e conseguimos. A Sofia está em adaptação, vem duas horas por dia, mas eu vejo que ela está feliz. O contato com outras crianças e com as tias está sendo ótimo. Como mãe, eu acho uma pena que nem todas as famílias tenham esse direito garantido — diz Daiane.
Segundo a Secretaria de Educação de Dois Irmãos, o município não tem fila de espera para a Educação Infantil há cinco anos. Atualmente, são atendidas 1.779 crianças de zero a cinco anos, em 12 escolas próprias da rede municipal e também na unidade da Fundação de Assistência Social de Dois Irmãos (Fadi). Ainda há vaga para cerca de 70 alunos. Este resultado foi alcançado com a abertura de novas turmas e constantes melhorias e ampliações nas escolas para atender a procura crescente. A prefeitura investe, por ano, pouco mais de R$ 19 milhões na Educação Infantil.
Campo Bom, também no Vale do Sinos, é outro município sem filas. Desde 2017, foram criadas quase 600 novas vagas no Ensino Infantil da rede pública municipal, 229 só em 2022, quando o déficit terminou. No Bairro Firenze, que ainda não tem atendimento, será construída uma nova escola infantil, com 190 vagas. Todas as 23 unidades oferecem turno integral para os 3,3 mil alunos de zero a cinco anos. A prefeitura também tem convênio com duas instituições privadas. No ano passado, o investimento na Educação Infantil foi de quase R$ 35,5 milhões.
Hoje, Henrique Werner da Silva tem um ano e dois meses. Ele vai na creche desde os quatro meses. A mãe, Fernanda Werner da Silva, 34 anos, é coordenadora pedagógica em Dois Irmãos. Segurança e tranquilidade são as palavras que definem a sensação de quem nunca precisou esperar para colocar o filho na escola.
— Eu não precisei aguardar. Assim que ele completou quatro meses, procurei e tinha vaga para ele. Meu marido e eu trabalhamos fora, então, nós não teríamos opção. Não sei como faríamos. O Henrique fica das 7h15in até as 18h. Ele tem todos os acompanhamentos, como alimentação, hora do soninho, momento das brincadeiras, estímulos educacionais, enfim, tudo. Ele adora e nós ficamos tranquilos — conta Fernanda.
O que fazer se não conseguir a vaga
Por causa da falta de vagas públicas e da impossibilidade das famílias de ficarem aguardando, a judicialização tem sido comum, segundo Andreia Paz Rodrigues, defensora pública e dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente (Nudeca). Em Porto Alegre, a Defensoria Pública do Estado (DPE) fez um acordo com a Smed, que já garantiu acesso para 300 crianças até agora. Por este acordo, não havendo vaga na rede municipal ou conveniada, o município compra a vaga na rede particular. A escola oferecida deve ficar, no máximo, a dois quilômetros de distância da casa ou do trabalho dos pais ou responsáveis. Um novo acordo deve ser assinado em 2023. Uma das principais vantagens é a redução do tempo, da burocracia e dos custos.
— A DPE está em todas as comarcas para ajudar as famílias a conseguirem a vaga desejada. Em Porto Alegre, fizemos este acordo, mas em todas as nossas sedes têm defensores públicos para auxiliar a população. A DPE se dedica aos casos das crianças em maior situação de vulnerabilidade social, com renda familiar mensal de até três salários mínimos. Mas isto não significa que os pais com condições de pagar um advogado não possam entrar na Justiça. Podem — explica Andreia.
- RG/CPF dos pais ou responsáveis.
- Comprovante de residência.
- Comprovante de renda familiar (caso os pais estejam separados, o comprovante da pensão alimentícia).
- Comprovante do horário de trabalho dos pais ou responsáveis.
- Certidão de nascimento da criança ou RG.
- Comprovante de inscrição para as vagas da rede pública ou conveniada.
- Negativa da vaga da Secretaria Municipal da Educação.
- Três orçamentos de escolas particulares, com CNPJ.
- Se a família encontrar-se em situação de vulnerabilidade: relatório do Conselho Tutelar, do CRAS ou CREAS, comprovante de recebimento de auxílio do governo etc.
Para ter outras informações, as famílias podem acessar o site da Defensoria Pública do Estado: www.defensoria.rs.def.br