Adoecimento Docente
Adoecimento Docente: A urgente luta por condições humanas de trabalho na educação paranaense
Rossano Rafaelle Sczip -
O triste caso da professora traz à luz um quadro de violência contra a saúde dos professores no PR
Na última quinta-feira (17), uma professora da rede estadual do Paraná veio a falecer. As informações que acompanharam a entristecedora notícia dão conta de que o médico da servidora havia lhe solicitado um novo afastamento. No entanto, de acordo com o comprovante de licença emitido pela Divisão de Perícia Médica (DPM), órgão da Secretaria de Administração e da Previdência, o seu pedido foi indeferido no dia 15 de outubro, dois dias antes do seu falecimento.
De acordo com o documento da DPM, o pedido da professora foi negado tendo em vista meras questões burocráticas de prazo e ausência de Classificação Internacional de Doenças (CID), informações que, com certeza, poderiam lhe ser solicitadas. O mais grave, no entanto, foi a alegação de que a professora teria um “benefício de licença médica superior ao previsto na literatura médica”, e, portanto, deveria estar em acompanhamento no Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou em Clínica Dia, como se fosse algo simples e fácil de se encaminhar. O burocrata que analisou o caso, por certo não se deu ao trabalho de conversar com a professora. O que importava mesmo, é que a “papelada” estivesse preenchida corretamente.
O triste caso da professora traz à luz um quadro de violência institucionalizada contra a saúde dos trabalhadores da educação paranaense e um grave e escandaloso desrespeito aos médicos que, apesar de acompanharem os professores em seus tratamentos, vêem seus diagnósticos serem desacreditados, sentindo-se forçados a apresentar soluções paliativas diante da sistêmica redução de dias ou mesmo negação das licenças. Ao servidor resta condescender-se a infeliz constatação de que a única política de saúde para o trabalhador da educação da rede estadual do Paraná, ofertada pelo governo, é a punição e a desconfiança em seu diagnóstico, como ficou explícito na negativa dada pela perícia do Estado à docente.
Esse lamentável episódio escancara o descaso do governo com a saúde dos servidores públicos estaduais que, além das corriqueiras dificuldades com o serviço de saúde ofertado pelo estado, precisam, agora, administrar sua vida funcional. As ferramentas digitais de gestão (diga-se: uberização) impostas pelo governo têm acarretado em acúmulo de novas funções, intensificação do trabalho e ampliação da jornada, visto que, para além das atividades relacionadas à docência, todos os registros burocráticos do dia a dia da nossa atividade estão, agora, sob nossa responsabilidade, como por exemplo o controle do ponto e o registro de atestados e licenças médicas. Aquilo que antes era efetuado por um servidor da escola, precisa, agora, ser executado pelos próprios professores.
As ferramentas de gestão são complexas e exigem tempo e atenção para o seu preenchimento, principalmente aquelas relacionadas às justificativas médicas. Além disso, as orientações para a marcação de consultas para realizar a perícia são confusas. A falta ou o atraso de registros sobre o nosso comparecimento no trabalho ou justificativas de ausências impactam em punição e descontos, configurando-se em motivos de aflição e, não raras vezes, de incertezas por parte dos servidores.
Infelizmente, o caso narrado acima não se trata de exceção. A regra imposta pela perícia é restringir ao máximo o número de licenças médicas solicitadas, mesmo quando se refere a transtornos mentais e comportamentais. Quando se compara o número de dias solicitados pelos médicos que acompanham os professores com CID entre F00 e F99 com os dias concedidos pela perícia, verifica-se que, em média, mais da metade dos dias são negados. Os dados da SEAP sobre licenças médicas para estes diagnósticos, referentes aos anos de 2022 e 2023, bem como de janeiro a agosto de 2024, revelam a sistêmica negação da totalidade dos dias solicitados.
Em 2022, a média de solicitações por mês foi de 702, totalizando 8.424 ao longo do ano. No ano seguinte, a média foi de 688 solicitações por mês, frente a um total de 8.258. Até agosto de 2024, a média de solicitações chegou a 636, totalizando, até então, 5.089. Os dados abaixo se referem unicamente às licenças médicas para tratamento dos professores efetivos da rede estadual do Paraná. As outras modalidades de licenças não foram analisadas.
É importante destacar que, mantendo-se a média mensal registrada até o mês de agosto de 2024, poderemos ultrapassar as 7.500 solicitações ao final do ano. Outra informação fundamental desse gráfico é que, considerando-se a média das solicitações de licenças médicas para tratamento de transtornos mentais e comportamentais até o mês de agosto de cada ano, os números pouco se alteram.
Os números mais reveladores, no entanto, são aqueles relativos à diferença entre o total de dias solicitados pelos médicos e os dias concedidos pela Divisão de Perícia Médica (DPM), conforme o gráfico abaixo:
A observação do gráfico evidencia que o número de dias concedidos pela DPM é significativamente inferior aos dias de afastamento solicitados pelos médicos que acompanham os professores efetivos e diagnosticam suas doenças. Segundo os dados da SEAP, nos últimos três anos a média de dias não concedidos de licenças médicas foi de 55,68%. Mesmo no ano de 2024, de janeiro a agosto, a média de dias negados alcançou quase 54%.
Os dados acima revelam um pequeno aumento no percentual de dias concedidos e, consequentemente, uma pequena queda dos dias não concedidos. Em um primeiro momento, poderia-se imaginar, erroneamente, que o governo estaria mudando sua perspectiva em relação ao adoecimento docente. Na verdade, tais dados apontam para outras constatações, como por exemplo, a queda no número de professores efetivos nos últimos anos.
Como dito anteriormente, os dados fornecidos pela SEAP englobam os anos de 2022 e 2023, e até o mês de agosto de 2024. Desse modo, nossa análise entre o percentual de queda no número de dias não concedidos de licenças médicas e sobre a relação entre o percentual de queda no número de professores efetivos irá se concentrar no ano de 2023 conforme o gráfico a seguir:
Primeiramente, cabe reforçar que o percentual de negativas da DPM ao longo de todo o período em análise (2022 - ago. 2024), apesar de apresentar queda, permaneceu acima dos 50%. Ou seja, mais de 50% dos dias solicitados para o tratamento dos professores foram negados.
Segundo, que a proporção entre dias não concedidos e professores efetivos de 1,96% significa que, para cada 1% de redução no número de professores, houve uma redução de aproximadamente 1,96% nos dias não concedidos. Ao contrário do que seria esperado, a redução no número de professores efetivos não pode ser apontada como a principal causa da diminuição dos dias não concedidos.
Entretanto, esses dados apontam para outros problemas que, com toda certeza, fazem diminuir as solicitações de afastamento da sala de aula: a sobrecarga de trabalho para aqueles que permaneceram nas escolas; a investida do governo para que professores de sala de aula ocupem funções administrativas e extracurriculares, como por exemplo, os responsáveis pela cobrança de metas e utilização das plataformas digitais de aprendizagem, não mais se expondo à dura rotina de sala de aula; o impacto da política punitiva para quem pega atestado médico para tratamento da sua saúde ou de um parente e, ainda, o crescente número de professores contratados temporariamente, que não aparecem nos dados da SEAP. Todo esse conjunto de situações se vincula, substancialmente, à degradação das condições de trabalho, como já apontado em outros textos e à lenta recomposição do quadro efetivo do magistério.
Esse conjunto de dados aqui apresentados desconsideram a situação na qual se encontram os professores contratados em regime temporário e que, portanto, não usufruem dos mesmos direitos que os professores efetivos. Um dos casos mais revoltantes que atinge os professores contratados pelo Processo Seletivo Simplificado (PSS) é o fato de eles não têm o direito de levar seus filhos ao médico, em completa contrariedade ao Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece em seu artigo 5º que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
É tão afrontosa quanto inaceitável tal situação. O próprio ente federado que tem responsabilidades com as crianças e adolescentes na garantia dos direitos à vida, à saúde, à educação, à cultura, ao lazer, à profissionalização, à convivência familiar e comunitária, à liberdade, ao respeito e à dignidade, inclusive de proteger crianças e adolescentes de qualquer forma de negligência, age em desfavor da lei, sendo, ele mesmo, o responsável pelo não cumprimento de suas obrigações, impondo uma situação na qual um trabalhador da educação não possa exercer o direito de acompanhar seu filho ao médico, podendo inclusive ser responsabilizado por negligência como determina o ECA.
A despeito do exposto no ECA, o site da Secretaria da Educação do Estado do Paraná não se furta em esclarecer:
Os atestados médicos são aceitos somente para fins de tratamento de saúde do próprio contratado via PSS, ou seja, não há afastamento para acompanhamento a pessoa da família, mesmo aos filhos, independente da idade. O contratado deve ser orientado que, assim que este estiver de posse do atestado médico, a direção da escola deve ser imediatamente comunicada, a qual não pode permitir que o contratado atue na escola durante a vigência do atestado médico.
Essa situação é mais grave ainda pois, além do ECA, o governo do estado do Paraná afronta a própria CLT, que garante aos trabalhadores e trabalhadoras, tanto o acompanhamento médico de esposa grávida, quanto o acompanhamento médico de filho de até 6 anos de idade uma vez a cada 12 meses. Mesmo que esdrúxula, essa garantia representa um direito estabelecido em lei maior, que, portanto, sobrepõe-se a qualquer norma regulatória ou legislação estadual. Estas não exprimem, ou ao menos não deveriam exprimir, o suporte legal para que tal situação de afronta à garantia à vida, à saúde e ao acompanhamento pelos responsáveis seja justificada.
Surpreende que os soldados rasos da burocracia, aqueles que estão sempre prontos a transformar um banho de piscina em uma batalha naval, que falam grosso com os debaixo e manso com os de cima, ajam exatamente como o governo quer e neguem, de forma tão obsequiosa, de forma autoritária e ao mesmo tempo servil, qualquer atestado apresentado por professoras mães.
É revoltante que a nossa saúde e nossas vidas continuem sendo postas em risco por aqueles que não sabem o que é enfrentar uma sala de aula ou o trabalho em uma escola. Os dados aqui expostos não se referem a diagnósticos simples ou superficiais. Referimo-nos, aqui, aos inúmeros casos de professores e professoras da rede estadual que recorrem à perícia após se descobrirem portadores de transtornos mentais ou comportamentais. Não é uma fratura exposta que possa demandar uma cirurgia, engessamento, repouso. Ao contrário, são doenças praticamente invisíveis, solitárias, que afetam sua vida com tanta intensidade que acabam por conturbar suas relações pessoais, o seu trabalho e seu próprio ser. E, no momento em que mais precisam de amparo, deparam-se com situações ignominiosas, como se a ausência de um braço ou uma perna engessada fosse razão suficiente para alimentar a incredulidade em seus tormentos interiores.
O funesto desenlace da professora, que partiu para sempre dois dias após o cruel decreto que negou a sua licença, revela o lamento silencioso frente a um sistema insensível, onde a esperança se esvai como névoa ao amanhecer.
Ao mesmo tempo, a sistemática negação, seja de parte ou da totalidade dos dias solicitados, transforma-se em um eco doloroso, reverberando nas almas dos que permanecem, como sombras errantes em um labirinto de indiferença, onde cada lágrima não chorada se torna um testemunho da tristeza latente, sussurrando ao vento os segredos de um sonho desvanecido, que não se concretiza. São as oportunidades perdidas que nos permitiriam vislumbrar um lapso de esperança.
Neste cenário de desilusão, a "perda de esperanças" ecoa como um lamento profundo, impregnando o ar com a dor das aspirações desvanecidas. Os "segredos", outrora portadores de sonhos, transformam-se em memórias nebulosas, vestígios de um passado que agora carrega o peso dos caminhos não trilhados. Cada oportunidade perdida é um véu que encobre a incerteza do que está por vir, criando uma atmosfera onde mistérios ainda aguardam revelação. Contudo, mesmo na penumbra da frustração, esses "segredos" guardam em si a semente de valiosas lições, prontas para florescer e guiar os passos rumo a um renascimento, permitindo que os ecos do passado alimentem novas esperanças e aspirações.
É preciso, entretanto, reconhecer que essa esperança desiludida não se traduz em mudança efetiva. Não há esperança sem perspectiva de mudança. Não há perspectiva de mudança sem ação prática. O “esperançar” entoado no vazio pós-moderno ou descolado de seu sentido de vinculação teórica-prática, por si só não produz transformação alguma, como Paulo Freire já alertava. Há inúmeros progressistas, principalmente no campo da educação e do movimento sindical do magistério, que ostentam todo tipo de ícone exaltando a revolução, mas que utilizam o neologismo freiriano muito mais próximo de sua acepção original, de esperar com confiança em um resultado positivo no futuro, numa atitude muito mais próxima da resiliência do que vinculada à dimensão ativa e transformadora que Paulo Freire defendia. É o império da banalidade do otimismo resiliente, preso à linguagem emocional e a retórica moral, às místicas, que exala um ar progressista quando na verdade está completamente desvinculado do pensamento crítico do qual se origina. É sobre esse “esperançar desiludido” que se faz urgente levantar novas bandeiras para além daquelas que já nos acompanham há tempos.
Para superar este estado de coisas torna-se imprescindível:
- Reverter todos os ataques a aposentadoria especial do professor, retornando às condições anteriores a 1998 (reforma de FHC);
- Redução da jornada de trabalho em sala e consequente ampliação da hora atividade até atingir 50% da carga total;
- Reestruturar o Sistema de Atendimento à Saúde ampliando a cobertura de especialidades, de exames e de médicos;
- Fim da terceirização da perícia e submissão da DPM a um conselho com ao menos um representante do magistério estadual;
- Adequação da DPM às novas demandas relacionadas às doenças adquiridas pelo exercício do magistério;
- Desresponsabilização dos servidores pelos registros burocráticos do cotidiano escolar (ponto; atestados; justificativas; etc);
- Reestruturação da contratação no regime PSS de forma a garantir o direito de seus filhos serem acompanhados por seus responsáveis em consultas e tratamentos médicos, e ao direito dos pais acompanharem seus filhos;
- Estabelecer, em lei, o número máximo de alunos por sala de aula, levando em consideração o crescente número de alunos portadores de necessidades especiais e imigrantes;
- Obrigatoriedade de acompanhamento especializado, em sala de aula, aos alunos portadores de necessidades especiais;
- Imediato reconhecimento dos diplomas de Mestrado e Doutorado para fim de promoção;
- Concurso público para professores e pedagogas a fim de aumentar a proporção de efetivos em relação aos temporários.
- Respeito ao plano de carreira, incorporando ao vencimento tanto o vale transporte quanto a Gratificação de Tecnologia e Ensino.
Estas medidas, para além de urgentes, são necessárias para que o esperançar desiludido se converta, cada vez mais, em materialidade transformadora e para que nossas vidas não se esvaziam em um fazer sem sentido.
Edição: Lucas Botelho
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