Alfabetização em pleno 2025

Alfabetização em pleno 2025

 

 

 

Parece até estranho falar de alfabetização em pleno 2025, como se ler e escrever fossem habilidades garantidas, quase automáticas, como respirar ou deslizar o dedo numa tela. Vivemos cercados de palavras, mas reagimos a elas antes de habitá-las. Rótulos chegam antes das histórias. Comunista. Esquerdista. Conservador. Inimigo. Amigo. Palavras que viraram gatilhos, não convites. Talvez por isso ler, de verdade, ainda seja um ato profundamente revolucionário. Ler exige atravessar a repulsa automática, suspender o julgamento herdado, aceitar por alguns minutos não repetir o que todo mundo repete. Pouca gente para para pensar nisso. Pouca gente já tentou ensinar alguém a ler e escrever do zero. E quando tenta, descobre que há algo de profundamente bonito nesse processo. Eu aprendi a ler muito cedo, antes mesmo de ir para a escola, guiado por gestos simples de paciência e repetição dentro de casa. Não falo disso para contar vantagem, mas porque essa experiência moldou tudo o que veio depois. Ler e escrever são métodos. Aprender a ler e escrever é aprender a desmontar o mundo em partes para entendê-lo melhor. Cada pessoa encontra seu caminho quando encontra. Há quem não tenha as condições cognitivas, sociais ou materiais para isso. Há quem precise de ajuda. E ajudar alguém a decifrar o mundo pelas palavras cria uma sensação difícil de explicar, como se, por alguns instantes, a gente participasse da fundação silenciosa de outra vida possível. Talvez seja por isso que escrever sobre pessoas que mudaram o mundo, longe de rótulos e julgamentos fáceis, seja tão prazeroso. Porque, quando olhamos de perto, o que torna alguém verdadeiramente grande não são os atos em si, mas tudo aquilo que vem antes deles. O pensamento, a escuta, a disposição de ver gente onde o mundo insiste em colar etiquetas.

Se tudo isso que eu falei até agora já te tocou, agora deixa eu te contar sobre alguém que levou isso às últimas consequências.

Há homens que passam a vida tentando ser compreendidos. E há aqueles que se tornam compreensíveis demais para o mundo e incômodos demais para a própria casa. Esta crônica nasce desse paradoxo. Um homem citado em universidades que jamais pisaria como aluno, lido em idiomas que não falava, admirado fora enquanto, no país onde nasceu, virou ameaça para quem confunde silêncio com ordem.

Paulo Freire nasceu em 1921, em Recife, num Brasil que ainda não sabia ler a si mesmo. A infância foi atravessada pela fome dos anos 1930. Não a fome abstrata dos livros, mas a que torna o pensamento mais lento e ensina cedo que aprender também depende de ter o que comer. Isso não virou discurso. Virou método. Freire entendeu cedo que ninguém aprende com o estômago em estado de sítio.

Formou-se em Direito, mas escolheu escutar. Escutar, para ele, nunca foi passividade. Era um gesto ativo de reconhecimento do outro. Na educação de adultos, percebeu o óbvio que assustava. As pessoas não eram analfabetas por incapacidade. Eram porque o mundo havia sido escrito sem elas.

Em 1963, em Angicos, alfabetizou cerca de trezentos trabalhadores rurais em pouco mais de um mês. Não foi milagre. Foi dignidade organizada. As palavras vinham do chão da vida. Trabalho. Terra. Pão. Ler deixou de ser decifrar símbolos e passou a ser interpretar a própria existência.

Numa sala simples, talvez mal iluminada, projetava a sílaba “TI” e perguntava o que aquilo dizia. Silêncios, tentativas, olhares. Então surgia TIJOLO. O som deixava de ser abstração. Era matéria. Era aquilo que sustentava casas que não eram suas. Tijolo levava a teto. Teto levava a casa. Casa levava à pergunta que ninguém ousava formular. Por que não é minha? Alfabetizar era nomear o próprio esforço. Não havia um professor despejando saber, mas um grupo descobrindo que também era feito da mesma substância da linguagem.

Isso assustou.

Em 1964, o Brasil mergulhou no Golpe de 1964. Alfabetizar adultos significava permitir que votassem. Permitir que votassem significava mexer na geometria do poder. Freire foi preso, interrogado, tratado como perigo. Não por armas, mas por ensinar pessoas a dizer eu.

Chamaram-no de comunista, esquerdista, subversivo. Isso nunca foi a causa. Foi o álibi. A razão era simples e concreta. Alfabetizar adultos significava transformá-los em eleitores. Transformá-los em eleitores significava incluir quem sempre ficou de fora. Freire não ameaçava o Estado pelo que dizia, mas pelo efeito prático do que fazia. Ele mexia na matemática do poder. E isso não se perdoa.

Veio o exílio. Bolívia. Chile. Educação popular. Reforma agrária. Sempre o mesmo princípio. Ninguém liberta ninguém. Ninguém se liberta sozinho. As pessoas se libertam em comunhão. Fora do contexto, soa como lema. Dentro da obra, é advertência. Toda transformação que não inclui o outro termina parecida demais com dominação.

Essa ideia de comunhão começava em casa. Pouco se fala que, por trás do educador, havia um casal de educadores. Sua primeira esposa, Elza Freire, foi parceira intelectual e presença estruturante do método. A pedagogia do diálogo era a extensão de uma conversa cotidiana, de uma mesa onde educar era gesto amoroso e rigoroso.

Em 1968, escreveu Pedagogia do Oprimido, publicada primeiro fora do Brasil. O livro cruzou continentes. África em descolonização. Movimentos sociais europeus. Universidades norte-americanas que jamais aceitariam um aluno com sua origem. Trabalhou com a UNESCO, lecionou na Harvard University, dialogou com o World Bank. O mundo o reconhecia.

O Brasil, não.

Aqui, virou caricatura. Não se discutia o que escreveu. Discutia-se o medo que seu nome despertava. Reduziram uma obra ética e humana a um rótulo tosco. Comunista. Esquerdista. Como se uma vida coubesse numa palavra usada para encerrar conversa.

Talvez o maior incômodo de Paulo Freire nunca tenha sido político. Foi humano. O rótulo é a forma mais preguiçosa de não ouvir. Rotulamos ideias para não enfrentá-las. Rotulamos pessoas para não conhecê-las. Rotulamos mulheres, pessoas LGBT+, negros, indígenas, pobres, dissidentes. Rotulamos até a dor alheia, desde que ela não nos obrigue a mudar de lugar. O rótulo transforma histórias em objetos. Objetos não falam de volta.

Paulo Freire recusava essa lógica. Não aceitava que alguém fosse reduzido a categoria antes de ser escutado. Sua pedagogia não pedia adesão ideológica. Pedia convivência. Pedia reconhecer que toda pessoa carrega uma narrativa própria e que nenhuma sociedade sobrevive tratando vidas complexas como simplificações convenientes.

Voltou ao Brasil com a anistia, no início dos anos 1980. Não voltou como ícone. Voltou como trabalhador. Em 1989, assumiu a Secretaria de Educação de São Paulo. Formação de professores. Diálogo com a comunidade. Escola viva. Descobriu que mudar estruturas é mais lento do que escrever livros. Desistir nunca foi opção.

Morreu em 1997, sem se tornar consenso. Não nasceu para agradar. Incomodava com delicadeza e insistência. Não oferecia salvação. Oferecia responsabilidade. Plantava perguntas que não cabiam em respostas fáceis.

Décadas depois, seu nome segue em disputa. Reverenciado fora. Atacado dentro. Citado por quem não o leu. Combatido por quem teme a ideia simples e devastadora de que ninguém nasce para obedecer o mundo como ele está.

O que aprendi com Paulo Freire, no fim das contas, foi o que aprendi com as minhas irmãs, muito antes de saber que aquilo tinha nome ou teoria. Elas nunca me ensinaram a escrever. Me ensinaram a ler. E isso bastou. Lembro de perguntar como se escrevia. A resposta veio calma. Primeiro leia. As palavras são blocos de som. Casa tem pedaços. Cada som tem um desenho. As vogais surgiram como chaves, não mapas. A outra, com pouco tempo, me fazia recortar letras de revista e colar bilhetes. Eu escrevia sem escrever. Aprendia sem perceber. Talvez elas nem se lembrem. Eu lembro. Porque o que ficou não foi o método. Foi o cuidado. Não foi a técnica. Foi o gesto. É disso que Paulo Freire falava quando dizia que educar é um ato humano antes de ser político. Ensinar alguém a ler é confiar que essa pessoa pode caminhar sozinha depois. É dividir o mundo, não explicá-lo de cima. Talvez por isso doa tanto ver um país jogar fora um homem desses por causa de rótulos fáceis. Porque, quando fazemos isso, não rejeitamos uma ideia. Desprezamos um gesto. E já passou da hora de o Brasil parar de jogar o bebê fora junto com a água suja da banheira. 

FONTE:

Fagner Oliveira 




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