Alguma coisa está fora da ordem

Alguma coisa está fora da ordem

Alguma coisa está fora da ordem

por Roger Flores Ceccon

 

 



Começo com Gilles Deleuze: o cinema é uma forma de exercer o pensamento, e cineastas são pensadores que pensam não através de conceitos, mas de imagens. Walter Salles é um gênio. Assistir Ainda estou aqui, filme homônimo inspirado na obra de Marcelo Rubens Paiva, é uma experiência singular que atravessa o corpo do telespectador e o joga ao movimento. Mobiliza a pele, as vísceras, as sensações, a memória. Uma obra que machuca, causa medo, indignação, alegria, angústia e faz com que deixemos a sala de cinema com o olhar cabisbaixo, mas num devir revolucionário, um devir gente, humano, demasiado humano. É definitivamente uma obra prima.

A começar pela atuação esplêndida de Fernanda Torres, Selton Melo e Fernanda Montenegro; a trilha sonora conduzida por Tom Zé, Tim Maia, Os Mutantes, Gal Costa e Caetano Veloso; a fotografia, que mescla enquadramentos com planos abertos e fechados; e a narrativa, que explora não apenas a prisão, o desaparecimento e o assassinato covarde do ex-deputado federal Rubens Paiva, mas a profundeza das relações humanas.

O filme, como um todo, é pedagógico e nos aponta pistas para resistir aos podres poderes: precisamos uns dos outros, dos familiares, amigos, companheiros e desconhecidos. Precisamos constituir redes, proteger aqueles que sofrem, que se exilam, que são perseguidos, deixados, abandonados. Cuidar dos oprimidos, dos marginalizados, dos anárquicos. Que a solidariedade e o afeto possam constituir máquinas de guerra para sobreviver ao neoliberalismo, aos militarizados, aos fascistas e à podridão que cheira à carniça pelos cantos do país.  

A capa do filme é certeira: sob um céu azul, num contexto em que Rubens Paiva e os filhos sorriem para uma foto, Maria Eunice, interpretada por Fernanda Torres, olha para o outro lado, séria e preocupada com os camburões do exército que circulam com fuzis à tira colo pelas ruas da zona sul do Rio de Janeiro. A ditadura militar brasileira foi implacável e sanguinolenta. Eram tempos cruéis, como também são os de agora. Os regimes de exceção estão aí, com ouvidos atentos atrás da porta, vivos, à espreita de uma brecha pra novamente ocuparem um lugar ao sol. E matar!

Eu diria que a força de Eunice é a matéria prima do filme. Não é uma força bruta, mas atravessada por cuidado, gentilezas, paciência e implicação com a vida. É resistência pura, como quando, mesmo que com a perversidade do desaparecimento do marido e o pedido do jornalista para que a família faça uma foto marcada por semblantes tristes, ela pede aos filhos sorrirem para a fotografia que será estampada na capa do jornal. Nós vamos sorrir. Sorriam! Eunice, ainda, luta até o fim pela proteção da família e pelo reconhecimento da morte do marido, se transformando, anos depois, numa militante que luta pela proteção dos direitos humanos. Eu diria que Maria Eunice Paiva foi adepta da bondade radical, como apregoa Gilberto Gil.

E o cano da pistola que as crianças mordem, canta Caetano Veloso, na música que dá título a esse texto e sonora a trama do filme. Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial. Como vimos no filme, a ordem é violenta. Ordem e progresso. Pode ser assassina, e portanto é preciso que tudo esteja fora do alcance das ordens que insistem em nos oprimir.

O filme Ainda estou aqui é mais atual do que nunca. É do Brasil de agora, ainda que retrate os horrores da ditadura civil-militar das décadas anteriores. Estamos aqui, ainda, e é preciso sorrir, sorriam, porque amanhã vai ser outro dia.

ROGER FLORES CECCON é professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e do curso de Medicina do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Pós-Doutor em Saúde Coletiva (UFRGS).

 

FONTE:

https://caosfilosofico.com/2024/11/19/alguma-coisa-esta-fora-da-ordem/ 




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