Alternativas a Reforma do IPE Saúde
Servidores públicos apontam ao menos seis alternativas ao plano de reestruturação do IPE Saúde apresentado pelo Piratini
Governo Leite calcula que reposição inflacionária de 32% para titulares do sistema cobriria o déficit anual, mas ressalva que opção é inviável por amarras fiscais e legais
08/05/2023 - CARLOS ROLLSING
Existem duas vertentes de pensamento entre os críticos da proposta do governo Eduardo Leite para a reforma do IPE Saúde: uma parte entende que a única opção é a adoção de um plano de recuperação das perdas salariais acumuladas desde 2015, já que o contracheque do servidor é a base da arrecadação do instituto; enquanto outra parcela admite buscar alternativas e diversificação de receitas.
O Palácio Piratini diz que o IPE Saúde, sistema médico e hospitalar que atende cerca de 1 milhão de pessoas, em maioria servidores públicos estaduais e seus dependentes, registrou cerca de R$ 440 milhões de déficit em 2022, média de R$ 36 milhões ao mês. Para equilibrar as contas, apresentou a aliados políticos uma proposta calcada em aumentar a alíquota de contribuição mensal dos servidores, de 3,1% para 3,6%, iniciar a cobrança por dependente, variável entre R$ 49,28 e R$ 501,90, e elevar de 40% para 50% a coparticipação em consultas e exames.
As críticas do funcionalismo público e da oposição têm foco no impacto que as medidas irão causar nos contracheques dos servidores mais humildes. Em análise de caso concreto, caso as novas regras trazidas pelo governo sejam aprovadas na Assembleia Legislativa, uma merendeira com dependentes no IPE Saúde teria seu salário líquido reduzido de R$ 1.424,37 para R$ 816,06.
— Essa pessoa não vai ter alternativa. Se essa reforma for viabilizada, não terá chance de os menores salários continuarem no IPE Saúde. Eles vão ter de escolher entre comer ou pagar o plano — avalia a economista Anelise Manganelli, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Para ela e outros críticos, a ideia do Piratini levará à "desfiliação em massa” entre servidores de baixa renda, que terão de engrossar as filas do SUS.
A proposta do governo tem redutores por faixa etária que beneficiam os mais jovens sob a ótica de que, em geral, eles adoecem menos e fazem menor carga sobre o sistema. Essa regra estabelece um limite de pagamento de mensalidade que levará os jovens de altos salários a terem diminuídas suas contribuições ao IPE Saúde.
— O governo joga tudo nas costas do servidor e traz esse projeto de Robin Hood invertido. Aumenta a contribuição dos mais pobres e alivia a dos altos salários — afirma Sérgio Arnoud, presidente da Federação Sindical dos Servidores Públicos no Estado do Rio Grande do Sul (Fessergs).
Confira, a seguir, as alternativas apontadas por servidores para o IPE Saúde para além da reestruturação delineada pelo Palácio Piratini.
Aumento salarial para recuperar as perdas inflacionárias
Entre 2015 e 2022, houve apenas uma reposição salarial geral para o funcionalismo gaúcho, de 6%, realizada no ano passado e, ainda assim, abaixo da inflação da época. O Dieese aponta que os servidores públicos sofreram perdas salariais de 56% somente com a inflação no período. Como a base da arrecadação do IPE Saúde é a alíquota sobre os salários, o apontamento é de que a estagnação da receita do plano — ou o crescimento abaixo do ritmo das despesas — é consequência natural.
O governo estadual admite que, caso fizesse reposição salarial de 32% para os titulares do IPE Saúde, patamar abaixo das perdas acumuladas, a situação financeira estaria resolvida. Essa fórmula injetaria cerca de R$ 480 milhões por ano nos cofres do IPE Saúde, cobrindo o déficit. A Secretaria Estadual da Fazenda ressalva, contudo, que amarras fiscais e legais impedem a adoção do mecanismo (veja nota mais abaixo).
— A alternativa é o governo fazer a recomposição gradual dos nossos salários. Não se resolve em um ano só. Precisa de paciência. Assim como gradativamente foram falindo o IPE Saúde, gradativamente poderão salvá-lo com os reajustes — diz a presidente do Cpers, Helenir Aguiar Schürer, que considera a posição do Piratini “cômoda”.
A alternativa é o governo fazer a recomposição gradual dos nossos salários. Não se resolve em um ano só. Precisa de paciência. Assim como gradativamente foram falindo o IPE Saúde, gradativamente poderão salvá-lo com os reajustes.
HELENIR AGUIAR SCHÜRER/ Presidente do Cpers
A avaliação das categorias é de que um calendário de reposição salarial precisa ser negociado. Isso, paulatinamente, elevaria a arrecadação do sistema de saúde.
— A lógica de mercado serve apenas para apresentar o IPE Saúde como um plano privado, comercial, mas não para fazer a analogia com os trabalhadores da iniciativa privada que recebem anualmente os seus dissídios. Isso resolveria a questão da receita. O funcionalismo está há nove anos sem reposição inflacionária — comenta Antonio Augusto Medeiros, presidente do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Poder Executivo do Rio Grande do Sul (Sintergs).
Outra avaliação é de que a proposta do governo, caso aprovada, será uma solução de curto prazo por seguir o modelo de estagnação salarial — o Piratini sinaliza não ter condição de discutir qualquer reposição em 2023.
— Aumentar a alíquota e manter o arrocho vai dar uma folga temporária. Como a base na qual a alíquota incide fica parada, a solução logo vai ser corroída pela inflação. Essa é a razão fundamental das contas do IPE Saúde — declara o deputado estadual Pepe Vargas (PT), um dos oposicionistas que tem se dedicado ao tema.
O funcionalismo considera que a intenção do Piratini individualiza o sistema e “acaba com o caráter solidário”. Por esse conceito, os salários altos e jovens fariam contribuições maiores para auxiliar a manutenção de um plano que atendesse os menores contracheques e os idosos. Essa equação começou a ser prejudicada quando o Judiciário decidiu que a filiação ao IPE Saúde não era obrigatória, o que levou à saída de servidores sobretudo do topo do serviço público.
Questionada sobre a possibilidade de resolver o problema com um cronograma de reposição salarial, a Secretaria Estadual da Fazenda apontou a alternativa como inviável. Diz a nota: “Não há espaço fiscal, financeiro e nem legal para um reajuste nesse patamar. No período de 2015 a 2017, o Estado parcelava ou atrasava salários, não pagava o décimo-terceiro em dia e mantinha uma liminar (a partir de 2017) para não pagar, também, parcelas da dívida com a União. Portanto, esses foram alguns dos motivos pelos quais não houve reposição naquele período. O caixa não oferecia condições de assumir qualquer encargo financeiro a mais”.
A manifestação da Fazenda ainda diz que “em 2022, com as alterações na legislação federal que retiraram R$ 5 bilhões da arrecadação do Estado (perdas de ICMS dos combustíveis e da energia elétrica), novamente houve um descompasso entre receitas e despesas. Em 2023, o Rio Grande do Sul voltou ao limite prudencial para gastos com pessoal. Nessa situação atual, a Lei de Responsabilidade Fiscal prevê um conjunto de medidas para promover sua adequação, tais como a vedação de reajustes salariais e nomeações de servidores, ressalvadas as reposições de servidores das áreas de educação, saúde e segurança. Além disso, no cenário atual de perdas de arrecadação, não há espaço para reajustes acima da inflação sob pena de descumprimento de compromissos do Regime de Recuperação Fiscal”.
A Fazenda ressalta que, caso concedesse reposição salarial de 32% aos titulares do IPE Saúde, o que equacionaria as contas do sistema, o impacto anual na despesa do Estado alcançaria todo o funcionalismo e somaria R$ 8 bilhões. A nota do governo diz que há “total incapacidade de honrar reajustes nesses patamares”.
Novas receitas
Para o presidente da Fessergs, Sergio Arnoud, o IPE Saúde deveria contar com fontes de financiamento adicionais, assim como acontece com o SUS. O entendimento é de que o sistema atende cerca de 10% da população gaúcha, retira pressão do SUS e, por isso, seria merecedor da construção de receitas extras.
Uma pequena parte do ICMS pago pelos servidores, nas suas transações comerciais cotidianas, poderia render uma parcela para auxiliar um fundo do IPE Saúde. Seria a mesma coisa que o governo faz ao devolver parte do ICMS para as famílias carentes. SERGIO ARNOUD/ Presidente da Fessergs
— Temos cerca de 350 mil servidores estaduais ativos e inativos e mais 50 mil pensionistas. Uma pequena parte do ICMS pago pelos servidores, nas suas transações comerciais cotidianas, poderia render uma parcela para auxiliar um fundo do IPE Saúde. Seria a mesma coisa que o governo faz ao devolver parte do ICMS para as famílias carentes (programa Devolve ICMS) — aponta Arnoud.
Para questionar sobre essa hipotética alternativa, a reportagem solicitou entrevista com o presidente do IPE Saúde, Bruno Jatene, mas não houve retorno.
Contribuição patronal dos pensionistas
Em 2019, uma subcomissão da Assembleia Legislativa apurou os problemas, já crescentes à época, e eventuais soluções para o IPE Saúde. Uma das conclusões da análise foi de que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário teriam dívida de R$ 637 milhões com o IPE Saúde. O montante, apontou o relatório, se formou por conta da inadimplência dos Poderes com a contribuição patronal ao instituto dos pensionistas do Estado.
O passivo refere-se ao ano de 2018 para trás. Uma legislação foi aprovada permitindo o parcelamento do débito em 240 meses, o que aliviaria as prestações aos cofres públicos. A partir de 2019, a contribuição passou a ser recolhida regularmente. A hipotética existência dessa dívida também foi registrada em relatório de auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) de 2018. Relator da subcomissão da Assembleia, o deputado estadual Pepe Vargas (PT) considera esse recolhimento, com valores atualizados, uma possibilidade para desafogo temporário. Contudo, ele avalia que há ausência de informações do Palácio Piratini sobre a manutenção total desse passivo ou se parte dele já foi quitado.
— O Tribunal de Contas do Estado reconheceu a dívida e repassou o valor do principal, mas ficou faltando juro e mora. Há controvérsia sobre a incidência de correção — relata Filipe Leiria, presidente do Sindicato dos Auditores de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (Ceape-Sindicato).
Após a publicação da reportagem, o IPE Saúde informou que a dívida principal — sem a incidência de correção monetária, que é controversa — é de R$ 329 milhões. Deste montante, R$ 191 milhões correspondiam à dívida do Poder Executivo com as contribuições patronais e foram quitados em 2022. Resta um passivo de R$ 138 milhões a ser acertado, devido por diferentes órgãos públicos.
Pagamento corrigido pelos imóveis
Uma legislação de 2018 permitiu que 217 imóveis de propriedade do IPE Saúde, os quais integravam o Fundo de Assistência à Saúde (FAS), fossem repassados para a posse do Estado. Eram bens que compunham uma tentativa de dar mais lastro financeiro ao instituto. Parte deles já foi negociada pelo Estado e há previsão de que o dinheiro seja devolvido pelo Estado ao FAS. Em agosto de 2022, o IPE Saúde informou que outros imóveis em situação complexa, cuja titularidade era controversa, ainda poderiam resultar na transferência de novas propriedades do FAS para o Estado.
Entidades do funcionalismo avaliam que o IPE Saúde deveria ser ressarcido, com valores atualizados pelos bens, o que poderia dar um ligeiro respiro.
Após a publicação da reportagem, o Palácio Piratini informou que o número de imóveis do IPE Saúde em posse do Estado ou em processo de transferência já soma 399. Até o momento, 21 bens foram vendidos e 20, permutados, com arrecadação em ambos modelos. Para fazer as compensações, o governo repassou ao IPE Saúde a quantia de R$ 32 milhões. Falta pagar ao instituto R$ 671,2 mil, o que está em trâmite. Também foi destacado que outros 65 imóveis originários do IPE Saúde estão no fluxo de vendas, cuja arrecadação prevista é de R$ 15,2 milhões. O valor irá ingressar na conta do Estado e, depois, será transferido ao instituto.
Precatórios e RPVs
O funcionalismo aponta que o Estado reteve parcelas de contribuições ao IPE Saúde ao fazer o pagamento de precatórios e de requisições de pequeno valor (RPVs) entre 2010 e 2021. A maioria desses títulos quitados junto a servidores teve origem na chamada Lei Britto, um aumento salarial previsto em lei e que, na prática, não se materializou. O problema é que, após descontar os valores, o Estado teria os deixado no caixa único, sem fazer a transferência ao IPE Saúde.
É algo grave. O Estado deveria identificar os valores, estabelecer um cronograma e fazer os repasses. Existe uma cultura histórica de não repasse ao IPE Saúde.
FILIPE LEIRIA/Presidente do Ceape-Sindicato
— Foi identificado que ocorria a retenção, mas não o repasse. Tanto é procedente que isso mudou recentemente. A partir de meados de 2021, o departamento de precatórios do Judiciário, quando tem de fazer a retenção, passou a transferir direto para o IPE Saúde — afirma Filipe Leiria, presidente do Ceape-Sindicato.
Ele diz que a contabilização do eventual passivo dependeria de um trabalho técnico e aprofundado.
— É algo grave. O Estado deveria identificar os valores, estabelecer um cronograma e fazer os repasses. Existe uma cultura histórica de não repasse ao IPE Saúde — comenta Leiria.
Segregação de massa
Já realizada em regimes de previdência, a alternativa manteria os atuais beneficiários vinculados ao IPE Saúde nas regras de hoje. Os futuros funcionários, ao ingressar na carreira pública, fariam parte de um novo plano, com as reestruturações propostas pelo governo. Se isso for feito, a tendência é de que, ao longo do tempo, o sistema atual do IPE Saúde deixe de ficar financeiramente pressionado.
Também poderia ser prevista a migração para o novo plano dos atuais servidores que levariam vantagem no modelo proposto pelo Palácio Piratini, como os jovens e altos salários.